Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (1)
Quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso. – João Calvino (1509-1564). [1]
Por mais miserável que seja a vida presente, é uma bênção de Deus aos fiéis, visto que ao sustentar-nos e conservar-nos nela, lhes dá um claro sinal e testemunho de Seu amor, e do amor paternal que lhes tem. –João Calvino.[2]
Introdução
A Epístola aos Efésios é de uma beleza incomparável em sua relação vital entre teologia e vida cristã. Paulo ao escrevê-la, inspirado por Deus, trata de assuntos que permeiam o propósito eterno de Deus o qual é pleno de sabedoria, bondade, justiça e amor. Ao mesmo tempo o apóstolo discorre sobre temas vivenciados cotidianamente por todos os seres humanos: questões comportamentais, relação familiar – com todos os seus ingredientes –, vida social e, a vida religiosa.
Possivelmente, em Efésios, entre todas as epístolas paulinas, tenhamos de forma mais contundente a simbiose entre doutrina e vida; conhecimento de Deus e prática de vida. Ela é um sublime e majestoso tratado teológico-devocional.
John Stott (1921-2011) inicia o seu Comentário, dizendo: “A carta aos Efésios é um resumo, muito bem elaborado das boas novas do cristianismo e de suas implicações. Ninguém pode lê-la sem ser compelido a adorar a Deus e a ser desafiado a melhorar a sua vida cristã”.[3]
De fato, toda doutrina bíblica, todo o seu estudo e conhecimento, devem nos estimular à santidade.[4] O conhecer a Deus deve promover em nós sentimentos corretos em relação a Ele que se manifeste em obediência sincera.[5] A obediência é a expressão máxima do amor.
A experiência não é fundamento da doutrina, porém, a demonstra e ilustra. A nossa experiência, portanto, deve ser sempre avaliada à luz da verdade[6] revelada na Palavra.[7] Craig acentua: “Pessoas que simplesmente andam na montanha russa da experiência emocional estão roubando de si mesmas uma fé cristã mais rica e profunda ao negligenciar o lado intelectual dessa fé”.[8]
Como nos parece óbvio, para obedecer a Deus é preciso conhecer o que Ele deseja de nós. O conhecer não se transforma mecanicamente em obediência. Por sua vez, a ignorância não carrega consigo o manto sagrado e místico de uma obediência sincera e pura.
O conhecimento meramente intelectual satanás também o possui.[9] Porém, o conhecimento real, fruto a graça de Deus (Mt 11.27; 2Pe. 3.18), é um ingrediente essencial. O conhecimento correto da doutrina, portanto, é vital para nos conduzir em alegre obediência glorificando a Deus em nossa vida.[10]
Calvino (1509-1564) nos ensina que “a doutrina é a mãe pela qual Deus nos gera”.[11] Por isso, “o tesouro da sã doutrina é inestimável, e nada há para se temer mais do que o risco de perdê-lo”.[12] Satanás, com sua astúcia, envida esforços para obscurecer a doutrina de Cristo a fim de nos desviar da verdade (2Co 4.4-6).[13]
Em Efésios temos uma relação direta entre a doutrina, o culto e a vida. De fato, sempre que ocorre a dissociação entre esses três elementos, somos conduzidos a uma atrofia espiritual que prejudica todo o corpo.[14] Calvino (1509-1564) resume: “O genuíno propósito da doutrina é adequar nossa união a fim de desenvolvermos o varão perfeito, à medida da plena maturidade (Ef 4.14)”.[15]
O Deus glorioso, os Seus feitos redentores e as implicações destas realidades na vida da igreja se constituem no grande tema de Efésios: ela é essencialmente teológica. A Pessoa do Deus Bendito (Ef 1.3) perpassa todos os versos da Epístola conduzindo-nos à gratidão por Deus ter-nos, por graça, propiciado conhecê-Lo em Seus atos abençoadores. A sublimidade de Efésios está no Seu conteúdo e este, alimenta e fortalece a nossa fé.[16]
Efésios pode ser considerada “uma das mais divinas composições do homem”.[17] Como curiosidade cito que João Knox (1514-1572), o pai do presbiterianismo, quando estava moribundo, em seu leito, frequentemente pedia que os “Sermões sobre a Carta aos Efésios”, de Calvino, fossem lidos perante ele.[18]
1. Contexto histórico
a) Ocasião e emissários
Paulo escreveu Efésios por volta do ano 61-63 AD., quando estava preso (Ef 3.1; 4.1; 6.20) em Roma. A Carta foi escrita pouco depois de Colossenses e Filemon. O emissário foi Tíquico, acompanhado de Onésimo (Ef 6.21-22; Cl 4.7-9).
b) Tema
Um dos objetivos de efésios, é: “Descrever a gloriosa graça-redentiva de Deus para a Igreja, derramada sobre ela a fim de que pudesse ser uma bênção para o mundo, e pudesse permanecer unida contra todas as forças do mal, e assim glorificar seu Redentor”.[19]
O assunto de Efésios é a Igreja. Assim, podemos considerar como tema da Epístola, O propósito glorioso de Deus para com a Sua Igreja no tempo e na eternidade.[20]
São Paulo, 27 de março de 2019
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 38.
[2] João Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 189. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962, p. 69. Veja-se também: João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 62,64; João Calvino, As Institutas, III.9.3.
[3]John R..W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 1. À frente: “A carta inteira, portanto, é uma combinação magnífica da doutrina cristã e do dever cristão, da fé cristã e da vida cristã, daquilo que Deus fez através de Cristo e do que nós devemos ser e fazer em decorrência” (John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, p. 9).
[4]Veja-se: O. Palmer Robertson, Jonas – um estudo sobre compaixão, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 54.
[5]Veja-se: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 59.
[6] Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certeza Espiritual, v. 3), 2006, p. 55.
[7] “No reino do misticismo espiritual, alguns têm deixado a autoridade da Palavra de Deus e estabelecido a autoridade da experiência” (Paul N. Benware, A obra do Espírito Santo hoje: In: Mal Couch, ed. ger., Os Fundamentos para o Século XXI: Examinando os principais temas da fé cristã, São Paulo: Hagnos, 2009, p. 402).
[8]William L. Craig, A Verdade da Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2004. p. 14.
[9]Veja-se: Davd M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 125.
[10] Vejam-se: D. Martyn Lloyd-Jones, A Vida de Paz, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 26; D. Martyn Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 113-114; 126-127.
[11]João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.24), p. 141.
[12]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.19), p. 50. Quanto ao perigo das sutilezas que nos afastam da simplicidade do Evangelho, veja-se: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.4), p. 30; (Tt 1.1), p. 300.
[13]Veja-se: João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.14), p. 129.
[14]“A fé envolve a verdade de Deus (doutrina), encontro com Deus (culto) e servir a Deus (vida). A inseparabilidade desses três elementos é vista repetidas vezes nas Escrituras e na história do povo de Deus” (W. Robert Godfrey, A Reforma do Culto: In: James M. Boice, et. al. eds. Reforma Hoje, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 155).
[15] João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.12), p. 141.
[16]“A sublimidade do estilo e linguagem corresponde com a sublimidade dos temas, e excede a quase todas outras suas Epístolas. É mui justo que aqueles aos quais escreveu, fossem cristãos por longo tempo alicerçados na fé” (R. Jamieson, et. al. Comentario Exegetico y Explicativo de la Biblia, 6. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1977, v. 2, p. 268).
[17]Essa frase de T. Coleridge (1772-1834) é citada por diversos autores. Vejam-se alguns exemplos: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 10, p. 69; Broadus D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 268; F.F. Bruce, El Mensaje del Nuevo Testamento, Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1975, p. 49; William Hendriksen, Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 41.
[18]Cf. Broadus D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, p. 268; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, v. 10, p. 69; Douglas Bond, A poderosa fraqueza de John Knox, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 34.
[19] W. Hendriksen, Efésios, p. 80.
[20] Podemos enumerar alguns outros temas sugeridos: “A Igreja Gloriosa” (W. Hendriksen, Efésios, p. 81 e 83); “A Glória de Deus em Cristo e Sua Igreja” (Hoke Smith, Efesios: el Propósito eterno de Dios, Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1976, p. 16); “O propósito de Deus em Cristo para Sua Igreja” (Francis Foulkes, Efésios: introdução e comentário, São Paulo, Mundo Cristão; Vida Nova, (1979), p. 14); “Privilégios e responsabilidades espirituais da Igreja” (R.H. Gundry, Panorama do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1978, p. 349); “A Epístola da Igreja” (Merril C. Tenney, O Novo Testamento: Sua Origem e Análise, São Paulo: Vida Nova, 1972, p. 335); “A glória da Igreja, como a sociedade que se identifica na história com o eterno propósito de Deus revelado em Cristo” (C. H. Dodd, Efesios: In: F.C. Eiselen, et. al., eds. Comentario Bíblico de Abingdon, 2. ed. Buenos Aires; México: Editorial “La Aurora” e Casa Unida de Publicaciones, 1951, § 883. p. 416).