O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (5)

Asseidade divina

            Partindo da asseidade[1] de Deus – sua independência total e absoluta –,  todas as suas demais perfeições, conforme podemos conhecer, se deduzem necessariamente, quer logicamente,[2] quer biblicamente,[3] quer de ambas as formas, visto que a lógica e as Escrituras não estão em contradição e, se completam.[4]

Nomes de Deus

            Ele se revela em doses homeopáticas correspondentes fielmente a seu ser. Conhecemos a Deus pela sua Palavra e atos. Os nomes de Deus são formas importantes e pedagógicas usadas para que possamos conhecê-lo.[5]

            Ninguém pode atribuir nome a Deus. Deus não tem nome no sentido de distingui-lo ou descritivo de sua natureza essencial.[6] Os nomes fazem parte de sua autorrevelação. O desvelar-se adequado e ao mesmo tempo, acomodatício de suas perfeições aludindo a aspectos de sua identidade santa e perfeita.[7]

            No entanto, nem um nome ou todos os nomes coligados esgotam as suas perfeições. Deus em sua simplicidade, não é composto. Na integridade única de seu ser, há perfeição, totalidade e harmonia absoluta. Deus não tem amor, justiça e santidade, por exemplo, mas, é absolutamente amor, justiça e santidade. É absolutamente absoluto!

            Nós podemos conhecer a Deus como Criador porque Ele ao longo da história tem se dado a conhecer claramente na Criação. Nós, cristãos, podemos conhecê-lo pelo nome porque Ele mesmo se apresentou a nós. Ele é quem se autonomeia e mais ninguém.[8] O Criador que se mostra na Criação, é o nosso Pai, conforme nos foi dado a conhecer em Cristo, nosso irmão mais velho. Assim como a revelação, conhecer a Deus sempre é graça!

Diferença qualitativa

            Na Criação nos deparamos com o Ente absoluto que cria do nada e, também com o Ser pessoal que se relaciona com o homem criado à sua imagem.

            Na relação de Deus com o ser humano vemos a sua distinção qualitativa (Deus é o Senhor absoluto, o “Totalmente Outro”) e a sua proximidade pessoal, levada ao clímax em Jesus Cristo, o Deus-encarnado.

Em Cristo Deus fez-se homem. Milagre tremendo, que se por um lado nos aproxima de Deus, por outro, nos dá uma dimensão de sua glória. Somente Deus sendo Deus poderia fazer-se homem e, sem pecado. A partir daí, todo o possível a Deus, torna-se realidade diante de nossos olhos crentes.

Nas palavras de Barth, “Do começo ao fim, a Bíblia guia-nos para o nome de Jesus Cristo”.[9] De fato, as Escrituras caminham integralmente de Deus para o homem, visando, em Cristo,[10] pela fé, trazer o homem de volta a Deus.[11]  

            Calvino pontua:  “A diferença entre Deus e o homem é imensa, e todavia em Cristo vemos a glória infinita de Deus unida à nossa carne poluída, de tal sorte que ambas se tornaram uma só”.[12]

            No homem temos o aspecto apoteótico da criação.[13] Somente o ser humano foi criado à imagem de Deus. Deus o faz com capacidades próprias do ser divino, porém, proporcional à sua humanidade. Por isso é que no homem temos mais revelação sobre Deus do que em todo o resto da criação, ainda que, com frequência, devido ao pecado que distorce o sentido da realidade, esse resto nos fascine mais do que o ser humano. Nada além do ser humano foi criado à imagem do Criador.

            Somente Deus que é tudo em si e de si mesmo (a se), e independente de todas as coisas (“asseidade”) – é o Autotheós e Autopoderoso (Ex 3.14) –, pode mudar a essência das coisas.

            Nós lidamos com experiências do existir, mudando, adaptando e transformando aspectos da realidade conforme Deus nos permite. Assim temos, como exemplo, a química, que na mistura de elementos forma um terceiro que nunca deixará de ser a mistura de outros. No entanto, nada criamos.

 Maringá, 21 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1]Quanto ao conceito, veja-se: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms,  4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 47.

[2] Cf. Gordon H. Clark, Atributos divinos: In: E.F. Harrison, ed., Diccionario de Teologia,  Grand Rapids, MI.: T.E.L.L., 1985, p. 72-74.

[3]Cf. Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, 154-156; Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, NJ.: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1974, p. 206-210.

[4]Cf. John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 453-454, 624 (nota 3).

[5]A palavra “Senhor” geralmente é a tradução do tetragrama hebraico hwhy (YHWH), que é reconhecido como sendo o nome pessoal, real, essencial e pactual de Deus (hw”hoy>) (Yehovah), o qual não é atribuído a nenhum outro suposto deus ou seres angelicais. (Cf. Paulo Anglada, Soli Deo Gloria: O Ser e as obras de Deus, Ananindeua, PA.: Knox Publicações, 2007, p. 35). “O ‘nome’ é Deus em revelação” (Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 139). (hw”hoy>) (Yehovah) é o nome revelacional de Deus (Ex 3.14-15; 6.2-3), “Eu sou o que sou” ou, “Eu sou o que serei” ou ainda: “Eu serei o que serei”. Porém, a sua origem é disputada entre os eruditos, não se tendo uma opinião consensual. (Uma breve, porém, ótima discussão sobre o assunto temos em Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 144-147. Mais atual, porém, menos crítico: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 736-741). No entanto, é o nome com o qual Deus se manifesta a Moisés e pelo nome que quer ser sempre lembrado. (Veja-se: Carl F.H. Henry, Deus, revelação e autoridade: 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 225).

[6] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 253.

[7] “Na Escritura o nome de Deus é autorrevelação. Somente Deus pode dar nome a si mesmo; seu nome é idêntico às perfeições que ele exibe no mundo e para o mundo. Ele se faz conhecido ao seu povo por meio de seus nomes próprios: a Israel, como YHWH, à igreja cristã, como Pai. Os nomes revelados de Deus não revelam seu ser como tal, mas sua acomodação à linguagem humana” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97). Do mesmo modo, ver: Carl F.H. Henry, Deus, revelação e autoridade: 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 225ss.

[8]Deus expressa o seu pensamento e a sua vontade no mundo, na Criação, envolvendo o homem com a manifestação visível da sua glória que é proclamada, apesar do pecado, de forma fecunda nas obras da Criação (Sl 19.1; At 14.17; Rm 1.19,20). (Vejam-se: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299; R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à Teologia Sistemática, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 36-37; R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 31-40).

            Deus, o mundo e o homem são as três realidades com as quais toda a ciência e toda filosofia se ocupam (Herman Bavinck, The Philosophy of Revelation,New York: Longmans, Green, and Company, 1909, p. 83). Pois bem, se Deus não tivesse primeiramente, de forma livre e soberana se revelado (Sl 115.3; Rm 11.33-36) – concedendo ao homem o universo como meio externo de conhecimento que funciona com as suas leis próprias e regulares – toda e qualquer ciência seria impossível. O mundo, inclusive o homem, é o grande laboratório de todas as ciências. Só que, quem “construiu” este laboratório foi Deus, e deixou ao homem a responsabilidade de estudá-lo, descobrindo os “enigmas” que estão por trás das leis que funcionam de acordo com as prescrições do seu Criador. Não pensemos, contudo que Deus criou o mundo apenas para satisfazer a curiosidade humana. Deus o fez como testemunho da sua glória: “A grande finalidade da criação foi a manifestação da glória de Deus” (A.W. Pink, Deus é Soberano,São Paulo: Fiel, 1977, p. 84). Deus ainda hoje não deixou de dar testemunho da sua existência e bondoso cuidado para com o homem (At 14.17). Deus está ativo, preservando a sua criação para o fim proposto por Ele mesmo. “Deus não é mero espectador do universo que Ele criou. Ele está presente e ativo em todas as partes, como o fundamento que sustenta tudo e o poder que governa tudo o que existe” (L. Boettner, La Predestinación,Grand Rapids, Michigan: TELL. [s.d.], p. 33). A Bíblia atesta este fato amplamente (Vejam-se: Ne 9.6; At 17.28; Ef 4.6; Cl 1.17; Hb 1.3) (Veja-se: Confissão de Westminster,Cap. V). Deus faz todas as coisas “conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11/Sl 115.3).

[9]K. Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, II/2, p. 53.

[10] “Não examinamos o Antigo Testamento apenas para encontrar os antecedentes históricos de Cristo e de seu ministério, nem mesmo para buscar referências que façam previsões sobre ele. Temos de encontrar Cristo no Antigo Testamento – não aqui e ali, mas em toda parte” (R. Albert Mohler Jr., Estudando as Escrituras para encontrar Jesus: In: D.A. Carson, org.,  As Escrituras dão testemunho de mim, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 18). “A compreensão evangélica do íntimo relacionamento entre Jesus Cristo e a Escritura é tal, que um apelo a Cristo é simultaneamente um apelo à Escritura, assim como um apelo à Escritura é um apelo a Cristo” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo,  São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 44).

[11] “Cristo se fez conhecido e exibido à vista de todos, porém somente os eleitos são aqueles a cujos olhos Deus abre para que o busquem por meio da fé. Aqui também se exibe um prodigioso efeito da fé, pois por meio dela recebemos a Cristo como ele nos foi dado pelo Pai – ou seja, como aquele que nos libertou da condenação da morte eterna e nos fez herdeiros da vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele fez expiação por nossos pecados para que nada nos impeça de ser reconhecidos por Deus como seus filhos. Portanto, visto que a fé abraça a Cristo, com a eficácia de sua morte e o fruto de sua ressurreição, não carece surpresa se por meio dela obtivermos igualmente a vida de Cristo” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.16), p. 133-134).

[12]João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998,  (1Tm 3.16), p. 100.

[13] “É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador do universo quis fazer algo ‘à sua imagem’, algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, Ele nos criou. Essa descoberta nos dá um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo. Mas nós somos mais semelhantes ao nosso Criador do que qualquer dessas coisas. Somos a culminância da obra criadora infinitamente sábia e hábil de Deus” (Wayne  Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 370). Vejam-se: Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 74; Stuart Olyott, Jonas – O missionário bem-sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012,  p. 75.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *