O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (4)

Salmo 2: Poder majestoso sobre a morte

No Salmo 2, essencialmente messiânico, lemos:6Eu, porém, constituí (%s;n”) (nasak) (= estabeleci)[1] o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. 7Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei” (Sl 2.6-7).

            O Reinado do Filho é de caráter eterno conforme o decreto estabelecido por Deus. A glória do Filho é eterna (Jo 17.5).[2] Jesus Cristo, o Messias, é Deus. Foi o Pai mesmo quem o constituiu. Esta constatação deve nos conduzir a uma fé reverente, não a uma curiosidade presunçosa.[3]

            O Reinado de Cristo é instituído e preservado pelo próprio Deus Pai.

            João Calvino escreve sobre esse ponto:

A doutrina da eterna duração do reino de Cristo é, portanto, aqui estabelecida, visto que ele não fora posto no trono pelo favor ou pelos sufrágios humanos, mas por Deus que, do céu, pôs a coroa real em sua cabeça, com suas próprias mãos.[4]

   Em Hebreus deparamo-nos com a citação do Salmo 2.7 para indicar a glória e majestade do Messias:

3 Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, 4 tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles. 5 Pois a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho? (Hb 1.3-5).[5]

            No Apocalipse temos ecos do Salmo 2, na declaração da eternidade do Reino do Messias (Ap 1.5; 2.27; 12.5; 19.4-5, etc.).[6]

            Deus permanece no controle de todas as coisas, mesmo em meio à oposição dos presumidamente poderosos, que não conseguem entender que todo o seu poder não lhe é ontologicamente inerente, mas, provêm de Deus.

Em Atos, os discípulos orando, afirmam que a morte de Cristo e a consequente ressurreição estavam sob o controle do Pai: “Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (At 4.28).

            A morte de Cristo que parecia uma vitória de satanás sobre o Reinado do Senhor, não o foi, antes, constituiu-se na realização do propósito de Deus.[7] A ressurreição de Cristo é o coroamento dessa vitória. Sem a sua morte vicária, não haveria ressurreição, onde o poder de Deus se manifestou de maneira esplêndida.

            A ressurreição de Cristo sempre fez parte essencial da pregação apostólica indicando a relevância e profundidade de seu significado para a Igreja. Ela se constitui no alicerce da fé cristã e uma certeza que nos enche de uma viva esperança.

            Paulo pregando em Antioquia demonstra esta realidade citando inclusive o Salmo 2:

32 Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a nossos pais, 33 como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus, como também está escrito no Salmo segundo: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. 34 E, que Deus o ressuscitou dentre os mortos para que jamais voltasse à corrupção, desta maneira o disse: E cumprirei a vosso favor as santas e fiéis promessas feitas a Davi. 35 Por isso, também diz em outro Salmo: Não permitirás que o teu Santo veja corrupção. 36 Porque, na verdade, tendo Davi servido à sua própria geração, conforme o desígnio de Deus, adormeceu, foi para junto de seus pais e viu corrupção. 37 Porém aquele a quem Deus ressuscitou não viu corrupção. (At 13.32-37).

            Da mesma forma escreve aos Romanos: “E foi designado (o(ri/zw) (determinado, constituído, destinado)[8] Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.4).

O poder de Deus além de absoluto é sobre todas as coisas. Comentando o Salmo 135.6,[9] VanGemeren, escreve:

A grandeza de Deus também se estende a seus poderes sobre a terra, o mar e o céu. Ele não está limitado a uma esfera particular a Ele atribuída por suas criaturas, como acontece com as divindades pagãos. O Senhor é Deus sobre todos os domínios em virtude do fato de que é o Criador. A esfera do seu domínio estende-se a tudo, e a sua autoridade é ilimitada.[10]

   Ontologicamente Deus não precisa de nada fora de si mesmo. Ele se basta a si. Ele é “independente e verdadeiramente autopoderoso”, sintetiza Turretini (1623-1687).[11] A criação nada lhe acrescenta ou diminui. Nenhuma alteração ocorre no seu ser[12] que diminua ou aperfeiçoe a sua essência.

Pode fazer tudo como, quando e do modo que quiser

            Deus se apresenta nas Escrituras como de fato é, o Deus Todo-Poderoso (Onipotente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme a sua vontade (Sl 115.3; 135.6; Is 46.10; Dn 4.35; Ef 1.11).[13]

            Ele pode fazer tudo o que quer ou venha a querer, da forma, no tempo e com o propósito que determinar.[14]

           Deus também se mostra coerente com as demais perfeições inerentes a Ele, ou seja: Deus exercita o seu poder em harmonia com todas as perfeições de sua natureza (2Tm 2.13).[15]

            A sua vontade é ética e santamente determinada. O poder de Deus se harmoniza perfeitamente com a sua vontade.[16] Em outras palavras: “A vontade de Deus é uma com seu ser, sua sabedoria, bondade e todas as suas outras perfeições”, comenta Bavinck (1854-1921).[17]

Se agencia por meio das causas externas

Contudo, por graça, Ele se agencia também por intermédio das causas externas para concretizar o seu propósito. Por exemplo: Deus poderia, se quisesse e tivesse estabelecido, salvar a todos os homens independentemente da Palavra (Bíblia) e da fé em Cristo, entretanto, ele assim não faz. Esta não é a sua forma ordinária de agir porque sábia e livremente estabeleceu o critério de salvação, que é pela graça, sempre pela graça, que opera mediante a fé por meio da Palavra (Rm 10.17; Ef 2.8).[18] Deus sempre age de forma compatível com a sua perfeita justiça.[19]

Bavinck (1854-1921), mais uma vez é-nos útil aqui ao escrever: “Sua vontade é idêntica ao seu ser, e a teoria do poder absoluto, que separa o poder de Deus de suas outras perfeições, é somente uma abstração vazia e impermissível”.[20]

            Deus é tão eterno quanto o seu poder. Conforme indicamos, Ele sempre foi e será o que é, independentemente de qualquer elemento externo a Ele. Deus existe eternamente de si,  por si e pra si.[21] Por isso que a Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte apenas do fato consumado de que Deus existe, manifestando o seu poder em Seus atos criativos (Gn 1.1).

            Portanto, Ele não sofre influência de ninguém, de nenhuma causa externa. Ele faz tudo conforme o conselho da sua vontade. (Sl 106.8; Is 40.13-14; Dn 3.17-18; 4.35; Rm 9.15; 11.34-36; Ef 1.5,11).

Maringá, 20 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] *Sl 2.6; Pv. 8.23.

[2]“E, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.5).

[3] Veja-se: C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: Libros CLIE, 1989, v. 1, (Sl 2.7), p. 21-22.

[4] João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 21.2), p. 457-458.

[5] Cf. Peter C. Craigie; Marvin E. Tate, Psalms 1-50,2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 2), p. 69; James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 2), p. 25-26; Willem A. VanGemeren, Psalms: In: Frank E. Gaebelein, gen. ed., The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, MI.: Zondervan, 1991, v. 5, p. 65-66; D.A. Carson, Jesus, o Filho de Deus: O título cristológico muitas vezes negligenciado, às vezes mal compreendido e atualmente questionado, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 46ss. (Especialmente).

[6]“E da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra. Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados” (Ap 1.5).

[7] “A morte do Senhor Jesus Cristo na cruz do Calvário não foi um acidente; foi obra de Deus. Foi Deus quem o ‘manifestou’ ali” (David M. Lloyd-Jones, A cruz: A justificação de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1980, p. 3).

[8]*Lc 22.22; At 2.23; 10.42; 11.29; 17.26,31; Rm 1.4; Hb 4.7.

[9]Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos(Sl 135.6).

[10]Willem A. VanGemeren, Psalms: In: Frank  E. Gaebelein, gen. ed., The Expositor’s Bible Commentary,  Grand Rapids, Mi: Zondervan, 1991, v. 5, (Sl 135.6), p. 820.

[11]François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 334. Do mesmo modo, veja-se também a p. 547. Veja-se o instrutivo e edificante capítulo de MacArthur: John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 91-107.

[12]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 550.

[13] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).

[14]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 326-327.

[15] “Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13).

[16] “Deus tem poder para fazer tudo quanto Ele queira; e com certeza a pessoa que tenta separar o poder de Deus de Sua vontade, ou retratá-lo como incapaz de fazer o que Ele queira, o que o tal faz é simplesmente tentar rasgá-lo em pedaços” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 78.18), p. 212). (Veja-se também: João Calvino, As Institutas, Campinas, SP.; São Paulo: Luz para o Caminho; Casa Editora Presbiteriana, 1985-1989, III.23.2). “Quanto a nós, basta-nos lembrar apenas duas coisas importantes: de um lado, o direito de Deus é supremo e absoluto, e acima do qual não podemos pensar nem falar, e Ele pode fazer com o que é seu tudo quanto lhe apraz; de outro, Ele é sempre santo e agradável à natureza perfeitíssima de Deus, de modo que em seu uso Ele nada faz em oposição à sua sabedoria, bondade e santidade” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 336). Do mesmo modo, veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 247.

[17]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 247.

[18]“E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17). “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2.8).

[19]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 36.5), p. 128.

[20]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 254.

[21] Veja-se uma boa discussão sobre isso em R.C. Sproul, Razão para Crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 80-83. Do mesmo modo, ver: Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98.

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