O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (9)

Conhecimento libertador

            Conhecer a Deus em sua soberania e beleza, portanto, é um dom da graça do soberano Deus. Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que possamos conhecer genuinamente a nós mesmos e as demais coisas da realidade, possibilitando-nos ter uma dimensão adequada de todas as coisas com as quais nos deparemos.[1]

            Em outras palavras, citando Frame: “É um conhecimento acerca de Deus como Senhor, e um conhecimento que está sujeito a Deus como Senhor”.[2] A teologia é o trabalho do servo totalmente comprometido em ouvir e ensinar o que o seu Senhor revelou, rogando a Deus que lhe dê compreensão adequada e que transmita com fidelidade – sem nada acrescentar ou omitir – o que nos foi dado conhecer;

            Somente a partir de um genuíno conhecimento de Deus poderemos nos conhecer verdadeiramente bem como toda a realidade. O conhecimento de Deus possibilita-nos enxergar a realidade em suas múltiplas facetas com os seus valores próprios conferidos pelo próprio Deus que a sustenta. A verdade nos liberta (Jo 8.32) de uma visão puramente terrena ou mesmo, metafísica, para que possamos visualizar cada aspecto da realidade dentro de um referencial fornecido pelo próprio Deus que a criou.

            As Escrituras não tratam a Deus panteística[3] nem deísticamente[4] como normalmente ocorre com o pensamento pagão ao longo da história. Antes, nos mostram tal qual Ele se revela.

Categorias compatíveis: senso religioso e acomodação

            Conforme vimos, essa revelação encontra eco em nós pelo fato de Deus o fazer em categorias compreensíveis à nossa mente[5] – conforme Ele a criou – já que o Senhor se “acomoda” à nossa compreensão.[6]

            A despeito do pecado, continuamos sendo a imagem de Deus, carregando conosco o senso do divino, sendo, portanto, incuravelmente religioso.[7] Além disso, temos o seu Espírito que nos ilumina[8] para podermos ter uma compreensão verdadeira das Escrituras.

            Bavinck sintetiza

Todos os povos ou puxam Deus panteisticamente para baixo, na direção daquilo que é criado, ou o elevam deisticamente, colocando-o infinitamente acima da criatura. Em nenhum dos casos se chega a uma verdadeira comunhão, a uma aliança, a uma religião genuína. No entanto, a Escritura insiste em ambos: Deus é infinitamente grande e condescendentemente bom; Ele é soberano, mas também é Pai; Ele é Criador, mas também é Protótipo. Em uma palavra, Ele é o Deus da aliança.[9]

Provas da existência de Deus?

As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de Deus”, antes, nos apresentam um Deus que fala e age. A Bíblia parte do pressuposto da existência de Deus. Deus é o Senhor. Ele é um ser necessário e concreto.[10] Muito de o seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria e transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).[11] Antes de tratar da matéria, as Escrituras iniciam com o Deus que cria e depois, narra o que realizou.

            As primeiras palavras das Escrituras fornecem o fundamento de toda a nossa compreensão teológica. A negação dessa declaração revelacional de que  “No princípio, Deus”, acarreta a fabricação de um deus esvaziado de seu poder e glória, produto de nossa imaginação e, que pode pavimentar o caminho para um total ateísmo.

            A Palavra de Deus nos ensina que Deus não pode estar limitado pelo universo, que é sua criação: Deus é infinito e, por isso, é imenso e eterno, transcendendo de forma perfeita todas as limitações espaciais e temporais, que são próprias da criatura, não do Criador – entretanto, Deus está presente em todas as suas criaturas e em todos os lugares.

            Com isso não queremos dizer que Deus esteja presente no mesmo sentido em todas as suas criaturas. Deus está em todo ser de acordo com a natureza deles. Desse modo, afirmamos que Deus habita de uma forma no homem e de outra no mundo orgânico, de outro no mundo inorgânico etc. O modo como Deus está em nós, seu povo, é diferente da forma como Ele habita nos incrédulos. Deus está presente agindo soberanamente numa interminável variedade de maneiras.[12]

            Por meio de Isaías, Deus faz registrar:

Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o coração dos contritos. (Is 57.15).

            O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos, e a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.

            Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se distingue da matéria criada. Ele, somente Ele,  é necessário, essencial, eterno e absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é contingente.

            Há também uma diferença Epistemológica porque os escritores bíblicos não estão preocupados em explicar, provar ou demonstrar a existência de Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso. Todo o conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.

Transcendência e imanência

            Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção desta realidade por meio deste Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.

            A Bíblia ensina estas duas verdades:

1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.

2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especialmente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28. Calvino (1509-1564) exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”.[13]

            Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.

Maringá, 25 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1]Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Soberania de Deus e a responsabilidade humana,  Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2016.

[2]John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 56.

[3]Panteísmo [“Pan” (pa=n = tudo, todas as coisas) & “Theós” (qeo/j = Deus)], é a doutrina que ensina que não há nenhuma realidade transcendente e que tudo é imanente; por isso, Deus e o mundo formam uma unidade essencial, sendo, portanto, a mesma coisa, constituindo um todo indivisível; por isso a negação da transcendência de Deus visto que Ele se confunde com a própria matéria, sendo esta a própria manifestação de Deus.

            A Bíblia não confunde Deus com a matéria; antes, afirma que Deus criou a matéria (Gn 1.1) e a sustenta com o seu poder (Cl 1.17; Hb 1.3). Esta distinção entre o Deus Criador e a criação é um ensinamento fundamental das Escrituras.

[4]Deísmo é uma denominação genérica das doutrinas filosófico-religiosas que surgiram em meados do século XVII, as quais, contrapondo-se ao “ateísmo”, afirmavam a existência de Deus; entretanto, negavam a Revelação Especial, os milagres e a Providência. Esse Deus é concebido preliminarmente como a causa motora do universo. Uma das ideias predominantes, era a de que um Deus transcendente criou o mundo dotando-o de leis próprias e retirou-se para o seu ócio celestial, deixando o mundo trabalhar conforme as leis predeterminadas. Uma figura comum ao deísmo do século XVIII era a do relógio de precisão que seria o equivalente ao universo que trabalha sozinho depois de se lhe dar corda. Neste caso, Deus seria uma espécie de relojoeiro distante, apenas observando a sua criação sem “intervir” em suas questões cotidianas. A conclusão chegada pelos deístas é a que as leis que regem o universo são imutáveis. O deísmo consequentemente atribui à Criação a capacidade de se sustentar e se governar por si mesma. Temos aqui um naturalismo autônomo.

            Desta forma, Deus é um proprietário ausente, que não age diretamente sobre a Criação; a única relação existente entre o Criador e a Criação, dá-se por meio de suas leis deixadas, as quais regem o universo de forma determinista. Deus seria regente do universo “apenas de nome”. O deísmo não deixa de ser um ateísmo prático visto que Deus não é considerado de forma concreta na vida de seus adeptos. Deus sai do cenário real e concreto, mas, o destino e o acaso terminam por ser entronizados. (Para maiores detalhes sobre o panteísmo e o deísmo, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, O Homem no teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 96-101).

[5] “As tentativas de explicar a origem e a essência da religião sem fazer referência a Deus e sua revelação cognoscível estão fadadas ao fracasso” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 302).

[6]Veja-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.7), p. 9-10.

[7]“Assim como não se pode encontrar homem algum, por mais bárbaro e mesmo selvagem que possa ser, que não seja tocado por alguma ideia de religião, é certo que todos somos criados a fim de conhecer a majestade de nosso Criador, e tendo-a conhecido, estimá-la acima de todas as coisas e honrá-la com todo temor, amor e reverência” (João Calvino, Instrução na Fé Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 1, p. 11). “Os próprios ímpios são para exemplo de que vige sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus” (João Calvino, As Institutas, I.3.2). Vejam-se também: João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.6), p. 305; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 167.

[8] “As mentes humanas são cegas a essa luz da natureza, a qual resplandece em todas as coisas criadas, até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299). Vejam-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.7), p. 10-11; João Calvino, As Institutas, I.9.3; II.2.19; III.2.33; III.21.3; III.24.2; João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 40.8), p. 229; João Calvino, Salmos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2009, v. 4, (Sl 119.18), p. 184; John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s  Commentaries), 1996,v. VIII/4, (Is 59.21), p. 271; João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.25), p. 109; João  Calvino,  Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p, 374;  João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.11), p. 88-89; (1Co 2.14), p. 93; João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 154; João Calvino, Exposição de Hebreus,  São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 152,154; Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 113; D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 230.

[9]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 580.

[10] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 72.

[11]“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).

[12] Veja-se: João Calvino, As Institutas, I.16.3.

[13] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.

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