O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (17) – Final

Considerações finais

Os cristãos precisam pensar sobre o pensamento. (…) A maioria dos seres humanos, contudo, nunca pensa profundamente sobre o ato de pensar. (…) Devido à devastação intelectual causada pela queda, temos a obrigação  de pensar sobre o ato de pensar. Essa é a razão pela qual o discipulado cristão é, também, uma atividade intelectual.  – R. Albert Mohler Jr.[1]

Pensar e pensar sobre o pensar

            Na Segunda Epístola destinada a Timóteo, Paulo se despede. Apresenta instruções finais e palavras de encorajamento ao seu discípulo mais próximo. Escreve então: Pondera (noe/w) (= atentar, compreender, pensar, entender) o que acabo de dizer, porque o Senhor (ku/rioj) te dará compreensão (su/nesij) (= entendimento, inteligência, discernimento) em todas as coisas” (2Tm 2.7).

            Pensar, pensar sobre o pensar é algo salutar e muito desafiante e abençoador. Somos destinados ao pensar. Devemos nos valer deste privilégio, próprio do ser humano, concedido pelo Criador.

            Precisamos aprender que a fé não elimina a nossa responsabilidade de pensar. Pensar não exclui a nossa fé. Pelo contrário, é por fé que nos aventuramos no campo da pesquisa, certos de que podemos conhecer.

Portanto, ambas as atitudes devem caracterizar a vida do cristão a fim de que a nossa fé seja compreensível e a nossa razão seja guiada pela fé.  A nossa fé e a nossa inteligência devem caminhar de mãos dadas em submissão a Deus.

O pensar confuso, destituído de fundamento, leva-nos à confusão. O seu repetir e propagar cria uma estagnação social em todos os níveis. A confusão intelectual é uma das raízes de repetições infindáveis que sufoca a possibilidade de crescimento, ajudando a perpetuar o erro, o equívoco e o que é obsoleto em sua constituição e prática.  

            João Calvino (1509-1564), escreveu com propriedade:

Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação, que o apóstolo Paulo chama renovação da mente [Rm 12.2], tem sido ignorada por todos os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo viva e reine.[2]

            O Senhor nos dá compreensão, nos faz ter entendimento de toda a realidade. O real não é uma mera utopia, antes, é acessível e, portanto, conhecível. Não vivemos num mundo de imagens, mas, de realidade, por mais desagradável que essa possa se configurar a nós em determinadas circunstâncias. No entanto, precisamos refletir a respeito.

Não basta ler, é preciso refletir. O que me faz pensar que o caminho para a compreensão das coisas é um pensar intenso, humilde e submisso a Deus. Nem sempre as coisas se mostram a nós de forma clara e evidente. Precisamos pensar a respeito.

Matrizes intelectuais

     Além da vulnerabilidade de nossos órgãos dos sentidos, conforme viemos,  todos temos matrizes intelectuais – bem fundamentadas ou não – que conferem determinado sentido à realidade por ela ser percebida como tal.

     A realidade é o que é, no entanto, nós a percebemos mediante contornos conferidos e mediados por nossa experiência. O nosso lugar social privilegia a nossa percepção. O que nos privilegia também nos delimita. Não somos oniscientes. Portanto, no que acreditamos, de certa forma, determina a construção de nossa identidade. Isto é válido dentro de uma perspectiva cultural como individual.

     Cada época é caracterizada por determinadas crenças as quais moldam a sua visão de mundo.[3] Todos temos a nossa filosofia, adequada ou, não, de vida.[4] Esta filosofia é a nossa cosmovisão. É esta cosmovisão que nos permite ser como somos, e fornecem elementos de padronização para a nossa cultura.

     Schaeffer (1912-1984) está correto ao declarar que “as ideias nunca são neutras ou abstratas. Têm consequências na maneira como vivemos e agimos em nossa vida pessoal e na cultura como um todo”[5] Cosmovisão é algo inescapável ao ser humano. Todos a temos.[6] Por sua vez, toda cosmovisão, consciente ou não, tem uma matriz ontológica que traz consequências epistemológicas que são determinantes para a nossa vida e conduta.

            Como vimos, o mundo do conhecimento pertence a Deus. Ele se revela fidedignamente nos possibilitando conhece-lo real e pessoalmente.

 A epistemologia antecede à lógica e esta, por mais coerente que seja, se partir de uma premissa equivocada nos conduzirá a conclusões erradas e, portanto, a uma ética com fundamentos duvidosos e inconsistentes. Indo um pouco além, porém, significativamente longe, devemos afirmar com Sire, que a ontologia antecede à epistemologia.[7]Antes do conhecer, há o ser. Se houver um conhecimento universal, porém, equivocado, isso não mudará a essência da coisa. Se todos negassem a existência de Deus, isso não mudaria o fato de Deus ser o que é. O meu conhecimento, certo ou errado, muda a minha relação com o real, porém, não a essência da coisa.

            Deve ser dito também, que toda verdade é lógica, no entanto, por algo nos parecer lógico, não significa que seja verdadeiro. Portanto, a questão epistemológica antecede à práxis e em grande parte a determina.  

            Na declaração de Cristo: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6), significa que temos nele a verdade epistemológica (Caminho); verdade ontológica ou metafísica (Verdade em essência) e a verdade existencial (Vida). Em Cristo temos o fundamento e modelo de interpretação e conhecimento da verdade. A verdade absoluta personificada e, a verdade que serve de padrão absoluto e final para a nossa existência.

A história é regida por Deus que age por meio dos meios ordinários e extraordinários para cumprir o Seu propósito glorioso. Jesus Cristo, O enviado de Deus, é o próprio Deus que confere sentido à História e à nossa existência; no final, na consumação da história, nós seremos glorificados nele e Ele será glorificado em nós e por nós (Jo 17.10/2Ts 1.10-12).

            O apelo último da fé cristã é a autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. O nosso apelo não é à razão ou à experiência, mas ao Deus encarnado. Nele, encontramos a Verdade e o sentido de todas as coisas.[8]

Conhecimento e Santo Temor

            Outro aspecto que desejo pontuar relaciona-se ao conhecimento de Deus e o santo temor.

            O temor que Deus inspira é notório nas páginas das Escrituras. Esse temor não ocorre por não conhecermos o seu amor e bondade, antes, pela dimensão de sua grandeza e santidade que ultrapassam qualquer padrão e se mostra, portanto, a nós, de modo terrível, impenetrável e incomensurável. Desse modo, Deus é para ser amado, mas, também, temido. Nada se compara a Ele.

            A compreensão correta deve nos conduzir a atitudes compatíveis. Assim sendo, o senso da grandeza incomensurável de Deus deve nos conduzir não à especulação, mas, ao santo temor em obediência e culto.

            Os salmistas se alegram no temor de Deus, cientes da sua santa majestade: “Porque grande é o SENHOR e mui digno de ser louvado, temível (arey”) (yare) mais que todos os deuses” (Sl 96.4). “Celebrem eles o teu nome grande (lAdG”) (gadol) e tremendo (arey”) (yare), porque é santo (vAdq’) (qadosh)” (Sl 99.3).

            O nosso santo temor acompanhado de uma atitude condizente, alegra o Senhor. A Palavra nos ensina que o Deus abençoa os que o temem: “Ele abençoa os que temem (arey”) (yare) o SENHOR, tanto pequenos como grandes” (Sl 115.13)

            Esse Deus que é Rei glorioso e temível, é nosso pastor, aquele que por graça se tornou acessível e que cuida pessoalmente de nós.

            Poder conhecer a Deus, nos relacionar genuinamente com Ele, saber que Ele ouve as nossas orações, nos fala por meio de sua Palavra, habita em nós por intermédio do seu Santo Espírito, é uma alegria indizível, reverente, altamente estimulante e desafiadora a vivermos conforme o seu glorioso propósito para nós, como o povo redimido, e sua propriedade.

A piedade para tudo é proveitosa. Que as nossas pesquisas e reflexões sejam guiadas por Deus e, que perseveremos nesse espírito. Amém.


Maringá, 01 de julho de 2022.

 Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] R. Albert Mohler Jr., O modo como o mundo pensa: Um encontro com a mente natural no espelho e no mercado. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer,  São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 44,45,54).

[2] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 184 (Veja-se a nota 5 in loc.).

[3]Veja-se: Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 19.

[4] Veja-se: J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 27-28.

[5]Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 258.

[6]Ver: James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 158.

[7]Ver: James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito, Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 77-109.

[8]Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 24.

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