O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (7)

2. O Deus que se revela fidedignamente   (Continuação)

Deus infinito-pessoal que se revela

            As Escrituras nunca tratam de Deus de forma impessoal,  abstrata ou corriqueira, mas, como o Deus infinito-pessoal que se revela[1] e se relaciona de modo significativo e misericordiosamente com os seus.

            As Escrituras evidenciam o valor metafísico da realidade, contudo, não se limitam a isso, por mais importante que seja e, de fato é. Elas tratam dessa questão em termos ontológicos, normativos e existenciais.

            A metafísica está relacionada diretamente com a Lei absoluta de Deus e com os efeitos disso em nossa vida. Isso explica, por exemplo, porque grande parte das Escrituras consiste em narrativa histórica, onde esses aspectos são realçados na vida do povo de Deus em sua obediência ou não, no locus temporal, ao Deus soberano.

            Obviamente, o Deus das Escrituras não é um deus criado pela imaginação do homem projetando em sua criação seus desejos e vícios,[2] o que facilmente conduziria da idolatria ao ateísmo.[3] Aliás, o ateísmo não deixa de ser uma forma de idolatria, visto que o homem passa a adorar a criatura, no caso, a sua suposta poderosa mente, em lugar do Criador (Rm 1.25).

            Frame comenta:

O argumento bíblico a ser mencionado aqui é que ninguém é realmente ateu, no sentido mais sério desse termo. Quando as pessoas se afastam da adoração ao Deus verdadeiro, elas não rejeitam o absoluto em geral. Antes, em vez do verdadeiro Deus, eles adoram ídolos, como Paulo ensina em Romanos 1: 18–32. A grande divisão na humanidade não é que alguns adorem um deus e outros não. Pelo contrário, é entre aqueles que adoram o Deus verdadeiro e aqueles que adoram falsos deuses, ídolos. A adoração falsa pode não envolver ritos ou cerimônias, mas sempre envolve o reconhecimento da asseidade, honrando alguns que não dependem de mais nada.[4]

            Deus não se deixa invadir pela razão humana, ou mesmo pela fé. Ele se dá a conhecer livre, fidedigna e explicitamente. Deus se revela a si mesmo como Senhor.[5] E “Senhorio significa liberdade”, pontua Barth (1886-1968).[6]

            Conhecer a Deus é um privilégio da graça que tem o seu início sempre no Deus Trino (Mt 11.27;1Co 12.3). Deus sabe tudo a nosso respeito, nos conhece mais do que nós mesmos. Nada que lhe digamos é inusitado. Nós, só o conhecemos à medida em que se revela, fala de si mesmo (Sl 139.1-4; 33.13-15; Jo 1.47-48; 2.25).

            “Quanto mais conhecemos Deus, mais compreendemos, e sentimos que seu mistério é inescrutável”, comenta Brunner.[7]

            O maravilhoso mistério a respeito de Deus aumenta em nossa compreensão à medida que mais O conhecemos.[8]    O nosso conhecimento pode ser real e genuíno, porém é fragmentado e limitado.[9] Contudo, devemos nos alegrar em poder conhecer. O Senhor não exigirá mais do que nos foi dado. Mas, o Senhor exige a nossa fidelidade no muito e no pouco.[10]

            Sem revelação nada sei a respeito de Deus. Com a graça objetiva da revelação e o guiar interior do Espírito, é que passo a saber e a descobrir que não sei. É no conhecimento intensivo e experimental de Deus que vamos ampliando reverentemente o nosso conhecimento e descobrindo o quanto ignoramos.

            Sem a revelação, o homem passaria toda a sua vida e estaria na eternidade sem o menor conhecimento de Deus por mais engenhosos que fossem os seus métodos, por mais sistemáticas que fossem as suas pesquisas, por mais que evoluísse a ciência… O homem nunca conseguiria chegar a Deus, ou mesmo à sua ideia: ignoraria eternamente a própria ignorância! Entretanto, Deus continuaria sendo o que sempre foi: o Senhor![11] Todavia, graças a Deus, porque Ele soberanamente se revelou a si mesmo, para que possamos conhecê-lo e render-lhe toda a glória que somente a Ele é devida.

            Em Cristo, nós somos confrontados com o clímax e plenitude da revelação de Deus (Jo 14.9-11; 10.30; Cl 1.19; 2.9; Hb 1.1-4). “Tudo quanto diz respeito ao genuíno conhecimento de Deus constitui um dom do Espírito Santo”, declara Calvino.[12]

            Lewis (1898-1963) escreve de forma perspicaz:

O ateísmo (…) é uma coisa por demais simplista. Se todo o universo não tem sentido, nunca descobriríamos que ele não tem sentido, do mesmo modo que, se não houvesse luz no universo, nem, consequentemente, criaturas com olhos, nunca saberíamos que era escuro. A palavra escuro seria uma palavra sem sentido.[13]

            No entanto, Deus se revelou fidedigna e acessivelmente. “No Filho temos a revelação última de Deus. Da mesma forma como é verdade que quem viu o Filho viu o Pai, também é verdade que quem não viu o Filho, não viu o Pai”, escreve Hendriksen (1900-1982).[14] Jesus Cristo, a plenitude da graça encarnada, é a medida da revelação; o seu padrão e apelo final!

            Bavinck (1854-1921) exulta:

A plenitude do ser de Deus é revelada nEle. Ele não apenas nos apresenta o Pai e nos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelado a Si mesmo e Deus compartilhado a Si mesmo, e, portanto, Ele é cheio de verdade e também cheio de Graça.[15]

            Deus também não é uma mera força impessoal sem nenhum sentido de racionalidade, antes, é o Deus transcendente e pessoal que se revela genuinamente, com quem podemos nos relacionar: ouvir, amar, temer, confiar e orar.[16]

            A linguagem usada para Deus tem um caráter relacional, mostrando um Deus que se relaciona com o seu povo na história.[17] Aliás, é a partir do relacionamento de Deus com a Criação em geral e com o homem em especial, que torna possível a teologia. A revelação é a passagem do Deus consigo para o Deus conosco. Do Deus absconditus  para o  Deus  revelatus. Aspectos do caráter de Deus se revelam propositadamente em suas relações com suas criaturas.[18]

            O mundo do conhecimento pertence a Deus. Ele é o seu autor e revelador. Logo, todo e qualquer conhecimento quer empírico, quer filosófico, quer científico, quer teológico[19] que o homem tenha ou possa ter, é parte do conhecimento de Deus expresso na sua Criação. Desta forma, podemos dizer que não existe conhecimento fora de Deus.

            A realidade pertence a Deus, quem a criou, e lhe confere sentido. Quando, então, nos referimos ao conhecimento que podemos ter do próprio Deus, do seu caráter e majestade, temos de reafirmar a verdade bíblica de que esse conhecimento provém do próprio Deus.

            Esse princípio é fundamental à fé cristã: a revelação de Deus é a única fonte e possibilidade real de conhecermos a Deus.[20] Deus se dá a conhecer e nos capacita a fazê-lo. Sem a revelação não há um sim nem um não referentes a Deus. Sem revelação não haveria nem teísmo, nem ateísmo.

            Portanto, Deus só pode ser conhecido por Ele mesmo. Somente Ele tem autoconsciência completa e exaustiva. Por isso a necessidade de revelação para que possamos conhecê-lo, e nos relacionarmos com Ele.[21] Deus em sua integridade se revela verdadeiramente como é em sua natureza essencial.[22]  Porém, nenhuma de suas perfeições esgota a totalidade de seu ser. Este conhecimento resultante da graça é único, singular e pessoal.[23]

Maringá, 23 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 113.

[2] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Princípios bíblicos de adoração cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[3] “A perda total de significado implícita no ateísmo é de mais para que muitos suportem. As pessoas precisam de alguns valores, alguns padrões, algumas maneiras para orientar suas vidas. Entre essas pessoas, aqueles que continuam a resistir à crença no verdadeiro Deus tornam-se inconsistentes quanto ao seu ateísmo, ou tornam-se idólatras. Se não querem o verdadeiro Deus, terão de procurar outro” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 150).

[4] John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, Phillipsburg, New Jersey: P&R Publishing, 2015, p. 7.

[5] Ver: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 181,186ss.

[6] K. Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, 1/1, p. 306.

[7]Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156.

[8] “O verdadeiro mistério só pode ser entendido como  um mistério genuíno mediante a revelação” (Emil Brunner,  Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 157).

[9] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98, 110.

[10] Veja-se: Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 10.

[11] “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49).

[12] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 12.3), p. 373.

[13]C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979), p. 21.

[14]William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Jo 14.9) p. 657.

[15]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 25-26. “Deus se revelou mais abundantemente no nome ‘Pai, Filho e Espírito Santo’. A plenitude que, desde o princípio, estava no nome Elohim, foi gradualmente desenvolvida e tornou-se mais plena e manifestamente expressa no nome trinitário de Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 150).

[16] “A principal ênfase do cristianismo bíblico consiste na doutrina de que um Deus infinito e pessoal é a realidade final, o Criador de todas as outras coisas, e de que um indivíduo pode se aproximar do Deus santo com base na obra consumada de Cristo, e somente desse modo” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 272).

[17] Cf. Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 740-741; Gottfried Quell, ku/rioj, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 3, p. 1062-1063.

[18]Cf. A.H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 21.

[19] Quanto aos tipos de conhecimento, veja um resumo em: Hermisten M. P. Costa, Introdução à metodologia das ciências teológicas, Goiânia, GO.: Cruz, 2015.

[20] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 207ss.

[21]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 287ss.

[22] “Deus se revela como ele verdadeiramente é. Seus atributos revelados verdadeiramente revelam sua natureza” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98).

[23] “Conhecer a Deus é uma coisa completamente única, singular, visto que Deus é único, é singular” (John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 25).

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