O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (6)

2. O Deus que se revela fidedignamente 

Revelação verdadeira e finitude

Uma das maiores e, certamente, a primeira vitória do inimigo é a vitória de quebrar a moral do crente. Se ele pode fazer um cristão acreditar que nenhuma revelação redentora sobrenatural é necessária para o homem, porque sua mente é normal e precisa apenas da verificação mútua do companheiro para guiá-la em seu voo, então, Satanás conseguiu muito. O liberalismo atual é um excelente exemplo dessa vitória. O fato de que um naturalismo puro, como o liberalismo, ainda deva ter um lugar dentro de uma igreja cristã mostra que os cristãos dormiram no posto. – Cornelius Van Til (1895-1987).[1]

            Como é óbvio, a nossa mente finita não consegue compreender completamente as perfeições de Deus.[2] Deus em sua “racionalidade absoluta” transcende a nossa capacidade racional. No entanto, como escreveu Hodge (1797-1878), “A razão é necessariamente pressuposta em toda a revelação. Revelação é a comunicação da verdade à mente. (…) A comunicação da verdade pressupõe a capacidade de recebê-la. Não se podem fazer revelações a brutos e irracionais”.[3]

            Transcender a nossa racionalidade não é o mesmo que dizer que algo é “incrível” (Aliás, expressão muito usada por jovens nos anos de 1970 para se referirem piedosamente a Deus). Deus não nos desafia a crer no incrível – impossível de ser crido –, mas, a crer no seu poder e promessas.[4]

            Aliás, um pressuposto fundamental de nossa epistemologia, é a capacidade de conhecer. O agnosticismo seria um suicídio intelectual com todas as suas ramificações na integridade, espiritual, social e moral do ser humano.[5]

O alcance e limite de nosso conhecimento é determinado pela revelação. O não revelado não pode ser objeto de nossas especulações.  Os nossos passos devem se limitar ao que Deus nos deu a conhecer. Quando Deus se cala, nos calamos. Quando Ele para, devemos parar admirados em reverência e gratidão.

            Gilson  (1884-1978) sumaria:

A revelação cristã não é somente necessária para que se possa crer no Deus da religião cristã, como também não tem sentido imaginar que se possa conhecer a existência desse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação.[6]

Os nossos passos devem se limitar ao que Deus nos deu a conhecer. Quando Deus se cala, nos calamos. Quando Ele para, devemos parar admirados em reverência e gratidão.

            A revelação de Deus também não é completa no sentido de abarcar total e exaustivamente o ser de Deus.[7] Porém, podemos dizer que qualitativamente, “como Deus se revela, assim ele é”.[8] Não há uma representação artificial naquilo que Ele nos dá a conhecer. Portanto, muitíssimos de seus atos soberanos nos escapam. O finito não pode comportar o infinito! No entanto, podemos conhecer a Deus genuína e verdadeiramente à luz de sua autorrevelação.

            Bavinck (1854-1921)  assim coloca a questão:

Não é contraditório (…) dizer que um conhecimento é inadequado, finito e limitado e ao mesmo tempo é verdadeiro, puro e suficiente.[9]
O conhecimento absoluto, plenamente adequado de Deus, é, portanto, impossível.[10]
Nosso conhecimento de Deus não é, e, de fato, não pode ser, exaustivo: ele é analógico e ectípico.[11]

            Não conhecemos a essência de Deus em sua completude,  porém, podemos conhecê-la à medida que Ele se revela, visto que a sua revelação “desvela” facetas de sua natureza eterna, tais como, bondade, justiça, santidade, graça, amor, etc.[12]

            O nosso Deus é grandioso e incomparável; seus pensamentos são inatingíveis e insondáveis;[13] é o Rei da glória.[14]

Um dos fundamentos da doutrina cristã é a certeza de que cremos em um Deus soberano,[15] e Todo-poderoso[16] que nos ama e se dá a conhecer pessoalmente a nós.

Sem a revelação de Deus seria impossível crer ou falar de Deus. No entanto, nós podemos conhecê-lo genuína e pessoalmente: Conhecido ([d;y”) (yada’)[17]é Deus em Judá; grande (lAdG”) (gadol), o seu nome em Israel” (Sl 76.1).

            A consciência do mistério inescrutável de Deus a temos pela revelação.  O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação. Sem a revelação de Deus não há teísmo, ateísmo nem agnosticismo. É no encontro significativamente pessoal com Deus que tomamos conhecimento de nossas limitações.

            O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos, e a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.

As Escrituras não são especulativas

As Escrituras não se perdem em especulações. Isso por dois motivos óbvios: Deus como senhor de todo o conhecimento e verdade, de nada precisa saber. Todo o saber lhe pertence; nada lhe é derivado.[18] O segundo motivo é que Ele não deseja que o seu povo se perca em especulações de assuntos não revelados.

Guiar-se por especulações significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer. “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer (1926-2020).[19]

A Bíblia é um livro descritivo e extremamente prático. Ela não discute, por exemplo, sobre a existência de Deus ou faz abstrações de sua natureza e essência, antes, parte do pressuposto da existência do Deus Todo-poderoso que se revela criando com sabedoria e poder todas as coisas. Portanto, antes de um conceito e mais do que uma teoria ou abstração, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[20] É o Deus que se relaciona e cuida de seu povo.

A história do povo de Israel é de certa forma a história da revelação concreta de Deus na História: no tempo e no espaço. “A Escritura, em sua totalidade, é o próprio livro da providência de Deus”, resume Bavinck (1854-1921).[21]

            Schaeffer (1912-1984), argumentando em prol da genuinidade da revelação de Deus em forma de proposição e história, escreve:

Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na História, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido a sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria qualquer sentido!”

Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo.[22]

Deus é o Senhor eterno antes e independentemente de sua Criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés (Sl 90.2).

            Moisés por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (2Pe 1.20-21), narrando os atos criadores de Deus, sem se preocupar em falar com mais detalhes a respeito daquele que mediante a sua Palavra, faz com que do nada surja a vida, criando o universo, estabelecendo suas leis próprias, as preservando e, avaliando a sua criação como boa.

            Moisés apenas apresenta o Deus Todo-poderoso exercitando o seu poder de forma criadora, segundo o seu eterno propósito. Deus existe − este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo a sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn 1.1,26,27; Sl 33.6,9; Jo 1.1-3; Hb 11.3), o qual criou as coisas com sabedoria (Pv 3.19).

Maringá, 22 de junho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1]Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, v. 1, p. 12, E-book.  Posição 170 de 715.

[2]“Somos seres humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento, e não os ultrapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160). “Deus não pode ser apreendido pela mente humana. É mister que Ele se revele através de sua Palavra; e é à medida que Ele desce até nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). “A teologia reformada sustenta que Deus pode ser conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (…). Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora de questão: ‘Finitum non possit capere infinitum’.” (L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 32). Do mesmo modo Schaeffer (1912-1984): “A comunicação que Deus tem com o homem é verdadeira, mas isto não significa que seja exaustiva. Esta é uma distinção importante que precisamos sempre ter em mente. Para conhecer qualquer coisa exaustivamente, precisaríamos ser infinitos, como Deus. Mesmo na vida eterna não seremos assim” (Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, Jaú, SP.: Refúgio; ABU., 1981, p. 143). Vejam-se também: João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.19), p. 64; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação,  São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97-99; Charles Hodge, Systematic Theology,Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co. 1986, v. 1, p. 535; J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20;   Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional: um Nuevo paradigma para hacer Teologia, Jenison, Mi.: The Evangelical Literature League, 1994, p. 79-80; Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,  p. 35-36; John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 168, 175ss.

[3]Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 37.

[4] Veja-se: Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 39.

[5] “Primária e fundamental, para a epistemologia revelacional, é a afirmação de que o homem pode ter um conhecimento verdadeiro da realidade. Nenhuma forma de agnosticismo é consistente com qualquer forma de cristianismo” (Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, v. 1, p. 7).

[6]Étienne Gilson, O Filósofo e a Teologia, São Paulo; Santo André, SP.:Paulus; Academia Cristã, 2021, p. 88.

[7] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 33.

[8] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação,  São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 114.

[9] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110, 113. Da mesma forma, veja-se: Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 59.

[10] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, v. 2, p. 110.

[11]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 99. Wollebius classifica esse conhecimento como “teologia derivada” (Veja-se: Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã,  Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 30).

[12] Vejam-se: John M. Frame,  A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 168, 175ss.; João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Edições Paracletos, 1997,(Rm 1.19), p. 64.

[13]“O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios (hb’v’x]m;) (machashabah) do seu coração, por todas as gerações” (Sl 33.11). “Quão grandes (ld;G”) (gadal), SENHOR, são as tuas obras! Os teus pensamentos (hb’v’x]m;) (machashabah) (desígnios, intentos) que profundos!” (Sl 92.5).

[14] 7Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. 8Quem é o Rei da Glória (dAbK’) (kabod)? O SENHOR, forte e poderoso, o SENHOR, poderoso nas batalhas. 9Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória (dAbK’) (kabod). 10Quem é esse Rei da Glória (dAbK’) (kabod)? O SENHOR dos Exércitos, ele é o Rei da Glória (dAbK’) (kabod) (Sl 24.7-10).

[15] 33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).

[16] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).

[17] ([d;y”) (yada’). Este conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7; 25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14), ver (Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8); perfeito conhecimento (Sl 37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3); conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3); intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18); compreender (Sl 73.16); aprender (Sl 78.3); ensinar (Sl 90.12); fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).

[18] “A verdade das criaturas, por exemplo, seria sem sentido sem a verdade de Deus, mas a verdade de Deus não depende do mundo que ele criou. Ele conhece todas as coisas por si mesmo, conhecendo sua natureza e seu plano eterno, e cria a verdade sobre o mundo real por meio de suas obras de criação e providência. Nosso conhecimento depende do dele (Sl 36.9), mas o dele não depende de nada, a não ser dele mesmo” (John M. Frame,  A doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 455).

[19]J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.

[20]Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.

[21]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 607.

[22]Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.

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