Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (22) – A Ortodoxia Protestante (3)

Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (21) – A Ortodoxia Protestante (2)

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 3. Elementos geradores

Para que possamos fazer uma análise objetiva deste período, temos de considerar alguns pontos ligados ao seu contexto histórico.

 

A. A Educação formal da época

Apesar de a filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.) ter perdido em grande parte a sua força desde a Renascença, ela permaneceu como matéria de estudo em muitas universidades. Isto porque a suposta irrelevância de Aristóteles não era unânime. Houve debates prolongados entre aqueles que defendiam a superioridade da Filosofia de Platão (427-347 a.C.) e aqueles que sustentavam a supremacia de Aristóteles (384-322 a.C.) (Universidade de Pádua, fundada em 1222).[1] O Cardeal Basílio Bessarion (1403-1472), mesmo sendo partidário da supremacia platônica – por considerar que Platão se aproximou melhor da verdade do cristianismo –, procurou adotar uma atitude conciliatória, escrevendo em 1469 uma obra intitulada: Contra um Caluniador de Platão, na qual dizia: “Amo a Platão e amo a Aristóteles, venerando a ambos como dois homens sapientíssimos”.[2]

 

Philipp Melanchthon

Entre os protestantes, por exemplo, Ph. Melanchthon (1497-1560)[3] – um “eminente humanista”[4] na Universidade em Wittenberg (1518), que é considerada “a Meca do protestantismo”;[5] Pedro Mártir Vermigli (1500?-1562), em Oxford (1548); Jerônimo Zanchi (1516-1590), em Estrasburgo (1553) e depois em Heidelberg (1568); Conrado Gesner, em Zurique e Teodoro de Beza (1519-1605),[6] em Genebra (1558), continuaram dando ênfase ao pensamento aristotélico, ainda que não do mesmo modo Escolástico.[7]

 

Nesse tipo de formação, a lógica dedutiva de Aristóteles tinha grande ênfase, bem como o seu aspecto sistemático formal, contribuindo para a elaboração de um pensamento sistemático e coeso. A ortodoxia protestante demonstrou ser possível utilizar a filosofia aristotélica sem os pressupostos da teologia romana.

 

B. A controvérsia Protestante

“As controvérsias do século XVII eram inevitáveis no desenvolvimento da vida da igreja”, conclui Leith.[8] De fato, quando a Reforma proclamou o direito do juízo privado, num primeiro momento, estava rejeitando a autoridade final da Igreja; num segundo momento, inevitavelmente, estava contribuindo para a existência de compreensões diferentes dentro do próprio Protestantismo, o que de fato houve… Portanto, a disputa entre Lutero (1483-1546) e Zuínglio (1484-1531) a respeito da Santa Ceia (1529) e as controvérsias calvinistas posteriores referentes à predestinação (Dort), fomentaram de forma acentuada a necessidade de uma maior sistematização doutrinária, cada vez mais minuciosa.[9] Acrescente-se a isso, um inimigo comum existente: a igreja romana que, por meio da Contra-Reforma – no espírito do Concílio de Trento (1545-1563) –, recuperava terreno desde meados do século XVI, sendo os jesuítas instrumentos poderosos[10] para “reconverter os adeptos do protestantismo”,[11] tendo o reforço do Index (1543), e da Inquisição.[12]

 

C. A confiança na razão

Os teólogos posteriores à Reforma, estavam mais abertos às exigências da razão, dispostos a examinarem as implicações decorrentes desta ou daquela doutrina, procurando manter um sistema coerente, que pudesse ser compreendido e ensinado. Um perigo evidente, é a tentativa, ainda que nem sempre consciente, de reduzir a vida cristã à razão, esquecendo-se que ela é mais do que isso.[13] Todavia não nos parece que era este o seu desejo; antes, partindo do princípio de que Deus é senhor de todo o saber, de toda a verdade,[14] lançaram-se em sua busca, compreendendo que tal tarefa é uma prerrogativa do homem.

 

Continuaremos no próximo post.

 

 

 

São Paulo,13 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] Veja-se: Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1993, p. 191ss. Abbagnano coloca a questão nesses termos: “Os platônicos viam no platonismo a síntese do pensamento religioso da Antiguidade e, por conseguinte, no regresso ao platonismo, a condição do renascimento religioso. Os aristotélicos viam no aristotelismo o modelo de ciência naturalista e, por conseguinte, no regresso ao naturalismo, o renascimento da pesquisa na natureza” (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1984, v. 5, § 360, p. 109).

[2]Vejam-se: Guillermo Fraile, Historia de la Filosofia, Madrid: La Editorial Catolica, 1966, v. 3, p. 101ss.; Johannes Hirschberger, História da Filosofia Moderna, 2. ed. São Paulo: Herder, 1967, p. 26ss.; Nicola Abbagnano, História da Filosofia, v. 5, § 353, p. 90ss.; § 360, p. 109ss; Federico Klimke; Eusebio Colomer, Historia de la Filosofía, 3. ed. Barcelona: Editorial Labor, 1961, p. 385ss.

[3]“De caráter conciliador e amante da erudição, Melanchthon não rompe com o humanismo da Pré-reforma. Por isso, os estudos de nível secundário na Alemanha não deixam de ter, em sua época, analogias com os dos colégios católicos.” (Maurice Debesse, A Renascença: In: Maurice Debesse; Gaston Mialaret, organizadores, Tratado das Ciências Pedagógicas, São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1977, v. 2, p. 234). Todavia as escolas protestantes, desempenharam um relevante papel social e religioso. O historiador Paul Monroe (1869-1947) diz: “Nenhuma prova mais concludente pode ser citada para demonstrar a eficiência das escolas protestantes como fatores de reforma dos males sociais e eclesiásticos e de estabelecimentos de igrejas, do que a adoção dos mesmos meios por parte da Igreja Católica Romana.” (Paul Monroe, História da Educação, 11. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 183). A Reforma teve uma influência maior sobre a educação do que o Humanismo. (Cf. René Hubert, História da Pedagogia, 2. ed. (refundida), São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 41). Melanchthon tinha um caráter sistemático; ele contribuiu, a despeito do pensamento contrário de Lutero(*), para a revitalização do pensamento de Aristóteles na Alemanha, limitando contudo, o seu aristotelismo à dialética, à retórica e à Filosofia prática, apresentando excelente contribuição no campo da ética a partir do seu comentário da Ética de Aristóteles, intitulando-o de Philosophiae Moralis Epitome (1535) (Cf. Johannes Hirschberger, História da Filosofia Moderna, p. 33; Philip Schaff, History of the Christian Church, v. 7, p. 369-370). Ele estimulou em Wittenberg o estudo das Matemáticas, Política; da Língua Grega, Hebraica e Latina, bem como de historiadores e oradores da antiguidade. (Veja-se também: Guillermo Fraile, História da Filosofia Moderna, p. 138ss.). Melanchthon (1497-1560), como já vimos em outro lugar, foi quem escreveu a primeira obra de teologia sistemática do período da Reforma, intitulada “Loci Comunnes” (abril de 1521). (Loci Communes, St. Louis: Concordia Publishing House, 1992). Nela Melanchthon segue a ordem da Epístola aos Romanos. (Vejam-se: Philip Schaff, History of the Christian Church, v. 7, p. 368-370; L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistematica, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1932, p. 79).

 

(*)        Sobre Aristóteles, Lutero disse: “Quem quiser filosofar sem perigo em Aristóteles precisa antes tornar-se bem tolo em Cristo” (Martinho Lutero, O Debate de Heidelberg (1518): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS. Sinodal/Concórdia, 1987, v. 1, tese 29, p. 39).”Se Aristóteles tivesse conhecido o poder absoluto de Deus, ter-lhe-ia sido impossível afirmar que a matéria permanece por si mesma” (Martinho Lutero, O Debate de Heidelberg (1518): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, v. 1, tese 34, p. 39-40). No entanto, conforme assinala John H. Gerstner, “Lutero reconhecia o valor do filósofo grego para a política, a retórica, e assuntos semelhantes.” (John H. Gerstner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 38).

[4] G. Fraile, História da Filosofia Moderna, p. 139. Mesmo havendo dúvida em determinados círculos protestantes a respeito do humanismo, Melanchthon insistia: “Quem quer que hoje, sob pretexto da religião, abomina as boas letras, é mais feroz do que um urso e mais ímpio do que jamais foram os epicureus turcos” (Apud N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México, Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 260). Kristeller afirma que “Melanchton, o defensor da retórica contra a filosofia que, sob muitos aspectos da Alemanha luterana, teve mais influência do que o próprio Lutero e foi responsável pela tradição humanística nas escolas protestantes alemãs até ao século XIX”. (Paul Kristeller, Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, Lisboa: Edições 70, (1995), p. 90).

[5]Cf. René Hubert, História da Pedagogia, p. 44.

[6] Sob a influência de Beza, a Lógica Silogística de Aristóteles veio a ser um componente essencial no currículo da Academia de Genebra. (Veja-se: Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, p. 194). Beza exerceu uma influência considerável sobre os Reformados; ele que sucedeu a Calvino na Academia de Genebra, lecionando teologia durante quarenta anos (1559-1599) e escrevendo entre outras obras, Tractationes Theologicae (1570-1582) (3 Vols.), na qual expôs a Teologia Reformada, usando a lógica aristotélica. (Veja-se: Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, p. 72).

[7]Cf. R.J. Vandermolen, Escolasticismo Protestante: In: Walter A. Elwell, ed. EHTIC., v. 2, p. 43.

[8]John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 172.

[9] Veja-se: Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, p. 70.

[10] “Reagindo contra a explosão violenta do heroísmo dos homens da Renascença, o jesuitismo pregava a doutrina da submissão e proclamava a obediência sistemática (…). Mas esta abdicação formal da vontade, assim pregada, não era simplesmente uma regra de consciência religiosa; pois o jesuitismo soubera conciliar a transcendência com a realidade, e dar ao misticismo um caráter prático. Era uma ordem da moral positiva, e o primeiro princípio da educação: o sacrifício da vontade é uma abdicação real, nas mãos dos confessores e ministros de Deus, padres da Companhia” (J.P. Oliveira Martins, Historia de Portugal, 6. ed. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora, 1901, Tomo 2, p. 86).

[11]Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 284. (Veja-se: W. Robert Godfrey, Calvino e o Calvinismo nos Países Baixos: In: CSIMO., p. 133).

[12]Com a sua ironia costumeira, Voltaire (1694-1778), em 1764, escrevendo no seu Dicionário Filosófico, sobre a “Inquisição”, diz: “A Inquisição é, como se sabe, uma invenção admirável e absolutamente cristã destinada a tornar o papa e os monges mais poderosos e a tornar todo um reino hipócrita” (Inquisição: In: François M.A. Voltaire, Dicionário Filosófico, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 23), 1973, p. 228).

[13]Veja-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 172-173. Em 1675, Spener (1635-1705) escreveria: “Quando o homem deixa que o paladar se acostume a outras coisas atraentes à razão, aquelas (a simplicidade e os ensinamentos de Cristo) tornam-se-lhe insípidas” (Phillip J. Spener, Mudança Para o Futuro: Pia Desideria, Curitiba, PR.; São Bernardo do Campo, SP.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico. Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996, p. 48).

[14] Aliás, conforme já citamos com mais detalhes, esta concepção tem uma longa tradição na Igreja; apenas para ilustrar, cito algumas passagens que julgo suficientes: Justino, Mártir, no segundo século: “…. Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável” (Justino, Segunda Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, XIII.4. p. 104). Agostinho (354-430): “Todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa verdade, uma vez reconhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersticiosas que se encontram até nos Livros sagrados” (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.19. p. 122). S. Tomás de Aquino (1225-1274): “Ninguém pode entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito trabalho e diligência. Este trabalho, muito poucos estão dispostos a assumi-lo por amor à ciência, embora Deus tenha colocado este desejo no mais profundo do coração humano” (Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 8), 1973, IV, p. 67). Calvino (1509-1564): “Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus” (J. Calvino, As Institutas, II.2.15). “… Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus” (J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318). B. Pascal (1623-1662): “Submissão e uso da razão, eis em que consiste o cristianismo” (B. Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 16), 1973, IV. 269, p. 110). Blaise Pascal, expressou bem a compreensão do limite da razão, ao escrever: “A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a percebê-lo. Pois, se as coisas naturais a ultrapassam, que dizer das sobrenaturais?” (B. Pascal, Pensamentos, IV. 267. p. 110).

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