Jesus Cristo, o Senhor da igreja, vocaciona, dá autoridade e cuida de seus ministros – A propósito pelo dia do pastor

 

Uma das formas pelas quais Deus se vale para cuidar de sua Igreja, é vocacionando e habilitando seus pastores para, por meio deles, alimentar e cuidar de seu rebanho.

Lucas descreve de forma sucinta e reverente a vocação do Apóstolo Paulo e a comissão de Ananias:

 

Mas o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel; pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome. Então, Ananias foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, dizendo: Saulo, irmão, o Senhor me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas, para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo. (At 9.15-17).

 

Mais tarde, Paulo pôde escrever a Timóteo: “Sou grato para com aquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel, designando-me para o ministério” (1Tm 1.12).

 

No seu chamado, Paulo reconhecia a autoridade apostólica conferida pelo Senhor para a edificação da Igreja:  “Porque, se eu me gloriar um pouco mais a respeito da nossa autoridade, a qual o Senhor nos conferiu para edificação e não para destruição vossa, não me envergonharei” (2Co 10.8/2Co 13.10;1Co 5.1-5).

 

Calvino acentuou a responsabilidade do presbítero. Entende que Deus Se dignou em consagrar a Si mesmo “as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar sua própria voz” (João Calvino, As Institutas, IV.1.5). Deste modo, os pastores não estão a seu próprio serviço, mas de Cristo; eles não buscam discípulos para si mesmos, mas para Jesus Cristo.

No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:

 

Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever.[1]

 

De fato, o Senhor que vocaciona os seus ministros também os capacita concedendo graça para realizarem a sua obra. Aliás, Deus sempre age assim. Ele não chama pessoas supostamente capacitadas. Quem de nós é suficiente? Também, não nos veste com fantasias com faixas e títulos que para nada mais servem senão para exibir a nossa vaidosa fragilidade. Não. A nossa suficiência vem de Deus. Isso é graça abundante (2Co 3.5/1Co 3.5; 4.7). Em síntese, Deus torna os seus escolhidos, por sua constante assistência, pessoas competentes para realizarem a obra por Ele designada. Isso não significa perfeição ou a impossibilidade de quedas e evidente fragilidade durante o processo.

 

Calvino sabia disso. Por volta de 1556, escreveria: “É Deus quem nos equipa com o Espírito de poder. Pois aqueles que, por outro lado, revelam grande força, caem quando não são sustentados pelo poder do Espírito de Deus” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 1.7), p. 204).

 

Tornemos às Escrituras.

 

Paulo durante a sua Primeira Viagem Missionária já se ocupava em fortalecer as igrejas, inclusive, constituindo as lideranças, rogando a Deus o discernimento para isso. Assim, mesmo correndo risco de morte, corajosamente voltou à região onde sofrera grande perseguição,[2] para fortalecer os irmãos. Parece que em Atos a pregação do Evangelho e a difusão do Reino, envolviam ser alvo de perseguição e morte. Os “heróis” de Atos tinham a cruz como companheira constante. A glória pressupõe a cruz. Esta pavimenta por vezes o caminho do cristão (At 14.22; Rm 8.17/2Tm 2.10-12[3]).[4]

 

Dentro do propósito apostólico de fortalecer e consolidar as igrejas a fim de que o Evangelho não caísse no esquecimento e as igrejas seguissem estruturadas com seus ofícios ordinários,[5] a sua agenda envolvia a eleição de presbíteros para que continuassem o ensino na igreja.[6] A rapidez do processo descrito pode ser explicada pela conversão de muitos judeus que, certamente, estavam familiarizados com as Escrituras do Antigo Testamento e, também, pelo trabalho missionário judaico entre os pagãos.[7] Lucas narra:

 

Sobrevieram, porém, judeus de Antioquia e Icônio e, instigando as multidões e apedrejando a Paulo, arrastaram-no para fora da cidade, dando-o por morto. Rodeando-o, porém, os discípulos, levantou-se e entrou na cidade. No dia seguinte, partiu, com Barnabé, para Derbe. E, tendo anunciado o evangelho naquela cidade e feito muitos discípulos, voltaram para Listra, e Icônio, e Antioquia, fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus. E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição[8] de presbíteros, depois de orar com jejuns, os encomendaram (parati/qhmi = confiar, entregar) ao Senhor (ku/rioj) em quem haviam crido. (At 14.19-23).

 

Notemos que os presbíteros que foram eleitos eram entre os crentes; os que criam no Senhor (At 14.23). E mais: eles, como todos os demais crentes, foram confiados ao Senhor da Igreja. Os presbíteros terão responsabilidades espirituais maiores (At 20.28), contudo, por graça, não são autônomos; continuam sendo do Senhor. Somente o Senhor pode nos confirmar em nosso trabalho e ofício. É Ele quem dirige e preserva a Igreja. A igreja deve orar por seus presbíteros. Os presbíteros devem orar pela igreja, reconhecendo a sua total incapacidade em conduzir o povo de Deus sem a bênção do Senhor. Orar é expressar a convicção de nossa total incapacidade e, ao mesmo tempo, total confiança no Senhor. Portanto, os presbíteros devem buscar instrução, discernimento e amparo no Senhor, à quem foram confiados.

 

Calvino comentando o texto, fala dos motivos da oração por parte de igreja:

 

O primeiro era que Deus os dirigisse com o Espírito de sabedoria e discrição a fim de que todos escolhessem os homens melhores e mais aptos. Pois bem sabiam que não eram dotados com tão grande sabedoria, que fossem isentos de engano, nem pusessem demasiada confiança em sua diligência pessoal, que não soubessem que a ênfase primordial é posta na bênção divina. Assim vemos diariamente que os critérios dos homens erram onde não se manifesta nenhuma diretriz celestial, e que em todos os labores nada resulta se a mão divina não estiver com eles. Estes são os genuínos auspícios dos santos: invocar o Espírito de Deus para que presida seus conselhos. E se esta é a regra a observar-se em todas as nossas atividades, então, no que diz respeito ao governo da Igreja, o qual depende inteiramente de sua vontade, devemos tomar todo cuidado para nada tentarmos senão tendo-o por Líder e Presidente.

Ora, seu segundo propósito em orar era para que Deus dotasse com os necessários dons àqueles que eram eleitos pastores. Pois o cumprimento deste ofício, tão fielmente quanto se deve, é uma atividade mais árdua do que a força humana é capaz de suportar. Portanto, imploram o auxílio divino também nesta conexão, com Paulo e Barnabé assumindo a liderança.[9]

 

Em outro lugar, acrescenta:

 

Como compreendessem estarem a fazer cousa de todas a mais séria, nada ousavam tentar senão com suma reverência e solicitude. Mais do que tudo, porém, aplicaram-se às preces, nas quais a Deus pedissem o Espírito de conselho e discernimento.[10]

 

Aqui está um grande conforto para a igreja e, em especial para os presbíteros e líderes em geral. Permaneçamos no âmbito de nossa vocação. A nossa esfera é anunciar a Palavra, alimentar e cuidar do rebanho. No entanto, não temos autoridade para ultrapassar a Palavra, nem dispomos de poderes para converter ninguém. Não queiramos ir além do que nos foi proposto e confiado. Somos pregadores e testemunhas. O sobrenatural desta missão pertence a Deus que revela já de início o seu misericordioso poder ao transformar pecadores em pregadores. Sem esta compreensão, corremos o sério risco de nos esgotarmos terrivelmente em nossas ansiedades criadas pela falta de compreensão do Evangelho de Deus, do que somos e de nossa missão.[11] A Grande Comissão não falhará; ela está totalmente sob a autoridade e poder do Deus Triúno.[12]

 

Um dos graves problemas com os quais nos deparamos em todas as esferas em nosso país, ainda que não exclusivamente, é a falta de autoridade moral.[13] Quando ativa ou passivamente, o desleixo, a corrupção e os abusos são cometidos em todas as esferas, num primeiro momento podemos ter uma justa indignação. Com o passar do tempo e o agravamento da situação, esta indignação inicial tende a assumir a postura de revolta individual e coletiva ou, ainda que não necessariamente de modo excludente, a ironia e o deboche. Neste processo, quer de forma coletiva e pública, quer mais sutilmente, de modo velado, o desrespeito às autoridades constituídas se torna comum.

 

Na questão eclesiástica local, pelo fato de estarmos muito próximos de nossos irmãos, onde a sua vulnerabilidade se torna mais evidente, podemos perder a dimensão da nobreza e responsabilidade de seu ofício, nos tornando críticos e levianos, pouco ou em nada nos lembrando de orar por eles.

 

Paulo promoveu a eleição de presbíteros em cada igreja. A igreja deveria votar com apurado senso de reverência, confiando estes homens ao Senhor, conscientes de sua responsabilidade na condução da igreja.

 

A vocação para um ofício eclesiástico não significa a deificação de alguém, antes a graça do chamado na vida de um pecador que, como os demais irmãos, está em busca de uma maior obediência a Deus.

 

Ministros, sejamos fiéis a Deus no cumprimento de nosso chamado. Igreja, agradeça a Deus pelos seus Ministros, honre-os e lhes obedeçam enquanto permanecerem fiéis às Escrituras. Assim, a Igreja do Senhor será abençoada e Deus será glorificado.

 

 

São Paulo, 31 de outubro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, p. 23.

[2] “A popularidade universal está para os falsos profetas, assim como a perseguição para os verdadeiros” (John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3. ed. São Paulo: ABU, 1985, p. 44).

[3]“Fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” (At 14.22). “Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17). 10 Por esta razão, tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com eterna glória. 11 Fiel é esta palavra: Se já morremos com ele, também viveremos com ele; 12 se perseveramos, também com ele reinaremos; se o negamos, ele, por sua vez, nos negará” (2Tm 2.10-12).

[4]“Sofrimento, aflição, tribulações e testes – estes são dons que Deus nos dá para nosso crescimento, as pedras de pavimentação necessárias no caminho que conduz à plenitude de caráter e de alegria” (Bruce Ware, Cristo Jesus homem: Reflexões teológicas sobre a humanidade de Jesus Cristo, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 108).

[5]“O programa missionário, para ser completo, há de visar à fundação de igrejas que a si mesmas governem, sustentem e promovam os meios de sua propagação. Foi sempre este o propósito e a prática do apóstolo Paulo”, escreveu em 1919 Erdman (1866-1960), antigo professor de Princeton (Charles R. Erdman, Atos dos Apóstolos, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960, p. 112).

[6]Veja-se: John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 19, (At 14.23), p. 27.

[7] “Duvido que, em poucos meses, Paulo pudesse indicar presbíteros numa congregação inteiramente composta de ex-pagãos e ex-idólatras. Nesse caso, é quase certo que teria havido um período de transição de missão para igreja, enquanto os presbíteros estariam sendo ensinados e treinados” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: Até os confins da terra, São Paulo: ABU, (A Bíblia Fala Hoje),1994, (At 14.21-28), p. 267).

[8] A eleição aqui descrita parece ter sido feita pelo levantar das mãos (Xeirotone/w = xei/r = “mão” & tei/nw = “estender”), ainda que não necessariamente (* At 14.23; 2Co 8.19). Aliás, este costume não era estranho na Antiguidade. A votação era normalmente feita pelo ato de levantar as mãos; em Atenas por aclamação, ou por folhas de votantes ou pedras; em caso de desterro, o voto era secreto. (Veja-se o enriquecedor artigo de Sir Ernest Barker, Eleições no Mundo Antigo. In: Diógenes (Antologia), Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, n° 2, p. 27-36). Vejam-se também: William F. Arndt; F. Wilbur Gingrich A Greek-English Lexicon of the New Testament, Chicago: The University of Chicago Press, 1957, p. 889; E. Lohse, xeirotone/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 9, p. 437; Horst Balz; G. Schneider, eds. Exegetical Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1999 (Reprinted), v. 3, p. 465; Simon J. Kistemaker, Comentário do Novo Testamento: Atos, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (At 14.23-24), p. 43-46; R.C.H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, (Commentary on the New Testament), 1998, (At 14.23), p. 585-588. Quanto à disputa entre presbiterianos e episcopais concernente à interpretação do texto, veja-se o presbiteriano: J.A. Alexander, A Commentary on The Acts of the Apostles, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, © 1857, 1991 (Reprinted), v. 2, (At 14.23), p. 65-66. Calvino tem uma palavra equilibrada sobre a “eleição” dos presbíteros: “Daí, ao ordenar pastores, o povo tinha uma eleição soberana; mas, no caso de haver alguma desordem, Paulo e Barnabé presidem como moderadores. Esta é a maneira como devemos entender a decisão do Concílio de Laodicéia, o qual proíbe que a eleição seja entregue ao povo comum” (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 19, (At 14.23), p. 28).

[9]John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 19, (At 14.23), p. 28.

[10]J. Calvino, As Institutas, IV.3.12.

[11]“As pessoas ansiosas são cativadas por toda e qualquer forma de certezas que se lhe ofereçam, não importando quão irracionais sejam elas. Tais pessoas tornam-se vulneráveis a influências estranhas, e fazem coisas tolas” (J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005, p. 102).

[12] Veja-se: Michael Horton, A Grande Comissão, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 27-39.

[13]“O problema básico do mundo de hoje é problema de autoridade. O caos no mundo se deve ao fato de que, em todas as áreas da vida, as pessoas perderam todo o respeito pela autoridade, quer entre as nações ou entre regiões, quer na indústria, quer em casa, quer nas escolas, ou em toda e qualquer parte. A perda da autoridade! E, em minha opinião, tudo começa realmente no lar e na relação matrimonial” (D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 87).

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