A lenda do Corpus Christi e o significado real da Ceia do Senhor (2)

3. Profissão da nossa fé

Pelo que já tratamos, fica evidente que a Ceia é para os crentes em Cristo. Quando participamos da Eucaristia, declaramos a nossa fé em Cristo,[1] naquele que Se ofereceu voluntariamente em nosso lugar, para nos redimir do pecado; deste modo, também atestamos a eficácia do Seu sacrifício em favor de Sua Igreja. É por isso que “assim que se erige um altar, a cruz de Cristo é subvertida. Ora, se na cruz Ele se ofereceu em sacrifício, para nos santificar para sempre e nos adquirir eterna redenção [Hb 9.12], indubitavelmente a força e eficácia deste sacrifício persiste sem fim”, enfatiza Calvino.[2]

     “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (1Co 11.26)

A Ceia tem um sentido de rememoração pública dos benefícios conquistados por Cristo para nós; portanto, participar da Ceia assume um caráter de testemunho desses benefícios: “Sempre que eles [os crentes] comem o pão e bebem o vinho, professam sua fé em Cristo como seu Salvador, e sua fidelidade a Ele como o seu Rei, e solenemente se comprometem a uma vida de obediência aos Seus divinos mandamentos”.[3]

 

Por isso, não podemos participar da Ceia sem analisar o significado deste ato. A Ceia nos leva à reflexão e avaliação de nossa fé, sob o escrutínio da Palavra de Deus, a fim de que, pelo Espírito, possamos lapidá-la e solidificá-la em Cristo. A Ceia é, portanto, para os crentes, para aqueles que já declararam publicamente a sua fé. Assim sendo, quando comemos do pão e bebemos do vinho, estamos, neste ato, renovando publicamente a nossa fé, declarando que o sacrifício de Cristo não foi em vão; que Ele nos alcançou por Sua graça, que vivemos pela fé no Cristo que morreu e ressuscitou por nós. Na Ceia “protestamos que somos do povo de Deus, e fazemos profissão de nossa cristandade….”.[4]

 

4. Certeza de Sua presença

Esta foi talvez a questão mais problemática concernente à Ceia, mesmo entre os Protestantes. Antes de adentramos à questão teológica, passemos, ainda que rapidamente, pela questão epistemológica:

A questão da presença pode ser observada pelo menos a partir de dois critérios:[5]

 

  • De forma objetiva: Tomando como referência o objeto.
  • Do sujeito que percebe.

 

Decorrentemente:

 

A presença não indica necessariamente proximidade ou distância nem se opõe a uma ou a outra. Deste modo:

 

  1. Por eu não perceber o sol à noite e percebê-lo ao dia, não significa que ele esteja mais distante à noite e mais próximo durante o dia.
  2. A luz que incide com a mesma intensidade nos olhos daquele que tem o seu nervo ótico funcionando adequadamente bem como sobre aquele que não o tem, gera sensações diferentes. O primeiro percebe com maior intensidade a luz do que o segundo. Este de forma gradual conforme o seu nível de atrofia.

 

Em ambos os exemplos nós responderíamos conforme perceberíamos ou não os estímulos, no entanto, a verdade sendo o que é,[6] continuaria como tal.

 

Pois bem: Quando participamos da Ceia, com fé, sabemos:

 

a) Cristo está presente em nossas mentes e corações.

 

b) Cristo está presente como Aquele que confere eficácia aos elementos da Ceia.

 

Independentemente disso, também sabemos:

 

c) Que Cristo está presente como sustentador de todas as coisas.

 

Portanto, não há dúvida quanto à presença de Cristo no Sacramento da Ceia. A questão é como Ele está presente.

 

1) Para os católicos e luteranos, Ele está presente fisicamente no pão e no vinho.[7]

 

2) Para nós Reformados, Ele está presente espiritualmente, não estando fisicamente associado aos sinais. Não nos alimentamos fisicamente dele. E, se o fizéssemos, qual o proveito?[8] A Ceia nos fala de algo espiritual.[9]

 

3) Ainda que a Natureza humana de Cristo não possa estar em toda parte,[10] por meio de Sua Natureza divina Ele se faz presente como representante do Cristo encarnado, do qual a Natureza divina, infinita e onipresente, jamais esteve separada.

 

4) A Ceia é um memorial. Ele não é morto outra vez. (Lc 22.19).[11] Cristo instituiu a Ceia como memorial de sua despedida como meio de proclamação de sua graça que se manifesta em Sua entrega.[12] “Só se tem memória de coisas ausentes e passadas, não daquelas presentes”.[13] Como vimos, Cristo está fisicamente presente no Céu e espiritualmente presente na Ceia, usufruído por meio da fé. A sua presença espiritual, por meio do Espírito, que gera e alimenta a nossa fé, não é menos real do que seria a sua presença física. Essa comunhão com Cristo é bastante viva nos servos de Deus (Gl 2.20).

 

Ao participarmos da Mesa do Senhor, temos a certeza da Sua presença abençoadora por meio do Seu Espírito. Pela fé nós “comemos” o Seu corpo e “bebemos” o Seu sangue, sendo alimentados em nossa fé. Na Ceia, é Cristo mesmo Quem nos recebe e ministra as Suas bênçãos. “A Igreja é sua casa”.[14] Portanto, Ele é o nosso Anfitrião. Cristo está presente espiritual e eficazmente, comunicando as bênçãos do pacto ao Seu povo. É Ele quem nos convida, recebe, alimenta, fortalece, conserva e renova a nossa vida e a nossa alma nos dispondo à eternidade.

 

Jesus nos diz: “Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir tomou um cálice e, tendo dado graça, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos” (Mt 26.26-27).

 

Calvino comenta:

 

Confesso, naturalmente, que a fracção do pão é um símbolo, não a própria cousa. Mas, isto posto, concluiremos corretamente que pela exibição do símbolo, no entanto, a própria cousa é exibida. Pois, a menos que haja alguém de querer chamar a Deus enganador, nunca ouse dizer se por Ele proposto um símbolo vão.[15] Portanto, se pela fração do pão representa verdadeiramente o Senhor a participação de Seu corpo, mui longe de duvidoso deve ser que verdadeiramente aí o depare e exiba. E aos pios esta regra é absolutamente de suster-se: que vezes quantas veem os símbolos instituídos pelo Senhor, aí cogitem e se persuadam por certo estar presente a verdade da cousa representada. Pois, a que propósito à mão te estende o Senhor o símbolo de Seu corpo, senão para que mais certo te faça de sua verdadeira participação? Ora, pois, se verdadeiro é um sinal visível oferecer-se-nos para selar a dádiva de uma cousa invisível, recebido o símbolo do corpo, confiemos não menos dar-se-nos, por certo, também o próprio corpo.[16]

Digo, portanto, que no mistério da Ceia, mediante os símbolos do pão e do vinho,[17] Cristo Se nos exibe verdadeiramente, e deveras, Seu corpo e sangue, nos quais cumpriu toda obediência no interesse de conseguir-se-nos a justiça, para que, com efeito, primeiro, com Ele coalesçamos em um só corpo, então, feitos partícipes de Sua substância, em plena participação de todos os Seus benefícios, também o poder Lhe sintamos.[18]

 

Durante o Seu Ministério terreno, Jesus dissera: “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20).

 

Agora Ele habita em nós e em Sua igreja, pelo Espírito (1Co 3.16; 6.19); Ele não nos deixou abandonados (Jo 14.1-3;16-18).

 

Portanto, participar da Ceia significa declarar publicamente a certeza da presença de Deus em nós por intermédio do Espírito de Seu Filho. A Santa Ceia assume, deste modo, o sentido de manifesto de companhia. Ainda que Jesus não esteja conosco fisicamente, não estamos sozinhos. O Cristo que foi para junto do Pai, voltará.

 

Maringá, 19 de junho de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 


[1]“Todos aqueles que participam da Ceia do Senhor professam assim serem cristãos. Porém para ser cristão um homem deve ter um competente conhecimento de Cristo e de Seu Evangelho” (Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing Co. 1986, v. 3, p. 623).

[2] João Calvino, As Institutas, (2006), IV.18.3.

[3]L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 657. Veja-se: Charles Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, (s.d.), p. 222-223.

[4]João Calvino, Catecismo de la Iglesia de Ginebra: In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962, Perg. 362.

[5] Veja-se esta argumentação de forma mais ampla em: François Turretini, Compêndio de Teologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 606-608.

[6] “O verdadeiro é o que é em si (…) é o que é” (Agostinho, Solilóquios, São Paulo: Paulinas, 1993, II.5.8. p. 76-77.

[7] “Da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária” (Confissão de Augsburgo, Art 10). (http://www.luteranos.com.br/conteudo/a-confissao-de-augsburgo – Consulta feita em 19.06.19).

[8] Veja-se a posição de Jonathan Edwards in: Joel R. Beeke; Mark Jones, orgs. Teologia Puritana: Doutrina para a vida.  São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 1053.

[9] Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 577; François Turretini, Compêndio de Teologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 608-609.

[10] Veja-se: Consensus Tigurinus, Art. 25.

[11]“E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim” (Lc 22.19).

[12] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 556.

[13]François Turretini, Compêndio de Teologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 616.

[14] João Calvino, Pequeno tratado da Santa Ceia (1541): In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 146.

[15] Veja-se: Confissão Belga, (1561), Art. 33.

[16] João Calvino, As Institutas, IV.17.10. Vejam-se também: As Institutas,  IV.17.1; J. Calvino, Catecismo de la Iglesia de Ginebra, Perguntas, 353-356. “Os sinais são o pão e o vinho, nos quais o Senhor nos apresenta a verdadeira, todavia espiritual, comunicação de seu corpo e sangue. Essa comunicação é satisfeita com o vínculo de seu Espírito e não requer a presença da carne encerrada sob o pão ou o sangue sob o vinho” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO.: Logos Editora, 2003, Art. 29, p. 75-76).

[17] Na ceia pascal o vinho tinto deveria ser servido sempre que possível (Cf. J. Jeremias, Isto é o Meu Corpo, São Paulo: Paulinas, 1978, p. 38). Calvino, por sua vez, não considera isso relevante (João Calvino, As Institutas, IV.17.43). Da mesma forma Hodge. Este ainda afirma que historicamente na Ceia do Senhor o vinho sempre foi misturado com água. (Veja-se: Charles Hodge, Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1474-1476).

[18] J. Calvino, As Institutas, IV.17.11.

3 thoughts on “A lenda do Corpus Christi e o significado real da Ceia do Senhor (2)

  • Pingback: A lenda do Corpus Christi e o significado real da Ceia do Senhor (2) | CFNEWS

  • 16 de agosto de 2020 em 21:54
    Permalink

    Qual a base bíblica para afirmar que a ceia “alimenta a nossa fé”? Ou que na ceia, Jesus “administra as suas bençãos?” Favor citar versículos.

    Resposta
  • 19 de agosto de 2020 em 11:55
    Permalink

    Jo 5.51,53-57. Ainda que os textos não se refiram necessariamente à Ceia, envolvendo, no caso, a sua obra expiatória, decorrentemente e, de forma profética nos fala da Ceia como um meio usado pelo Senhor para nos comunicar as bênçãos envolvidas na salvação como a lembrança de sua obra, o anuncio de sua morte e regresso triunfante, implicando tudo isso em santificação. O nosso realizar hoje (Comer e beber), sendo renovado continuamente envolve a certeza de que o Senhor que foi morto e ressuscitou é real em nossa vida, bem como a certeza de sua volta (1Co 11.23ss).

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *