Teologia da Evangelização (5)

 d) Teologia Integral: Reflexão humilde e vida

Uma teologia que toca a mente, deixando de afetar o coração, não é a verdadeira teologia cristã. – Alister McGrath.[1]

A teologia nada tem a ver com isolamento frio e clínico, nem com fórmulas e frases secas e vazias. O que importa nela é como aprender mais sobre o Deus vivo e amoroso, e servi-lhe por inteiro com a mente e o coração. Para aprender mais sobre Deus é preciso estar mais perto dele e buscar com afinco o dia em que finalmente estaremos com Ele. ‒ Alister McGrath.[2]

               A reflexão teológica deve ser sempre um prefácio à ação[3] sob a influência modeladora do Espírito que nos instrui pelo Evangelho. “Uma igreja que só reflete e não atua é semelhante ao exército que passa o tempo fazendo manobras dentro do quartel”, compara Costas (1942-1987).[4] A nossa reflexão e ação devem estar sempre acompanhadas e dominadas pela oração fervorosa e sincera:“Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei”(Sl 119.18).[5]

            Godfrey categoriza de forma precisa: “A fé envolve a verdade de Deus (doutrina), encontro com Deus (culto) e servir a Deus (vida). A inseparabilidade desses três elementos é vista repetidas vezes nas Escrituras e na história do povo de Deus”.[6]

            Talvez aqui esteja uma das armadilhas mais sutis para nós Reformados. Prezamos a doutrina, entendemos ser ela fundamental para a vida cristã, no entanto, nesta justíssima ênfase e compreensão, podemos nos esquecer da importância vital da piedade.[7] Notemos que não estou dizendo que isto aconteça conosco com frequência ou, que este seja o nosso ponto fraco, apenas observo que devemos vigiar neste flanco, para que o inimigo não alcance êxito em seu desígnio destruidor.

            As nossas ênfases, mesmo sendo corretas, por vezes tendem a ocultar ou obscurecer aspectos importantes, diferentes, mas não excludentes daquilo que enfatizamos. Aprender com ênfases diferentes que partam de pressuposições semelhantes, pode ser muito enriquecedor. As nossas perguntas podem ser diferentes, mas, com propósitos semelhantes dentro do Reino. É preciso que peçamos a Deus humildade e discernimento a fim de aprendermos a ouvir o outro.

Entre tantas outras virtudes, algo admirável em Salomão é a sua capacidade de ouvir. O mesmo rei que ouviu com atenção as inquietantes perguntas da rica rainha de Sabá, apresentando respostas que a deixaram “sem ar” (1Rs 10.1-7), ouviu também aquelas duas prostitutas que tinham uma questão certamente mais grave: a vida ou morte de um filho (1Rs 3.16-28). A sabedoria que Deus lhe concedeu foi socializada nas questões cotidianas (1Rs 10.4-8) e excepcionais de seu reinado.

            Paulo fala dos “desígnios” de Satanás(2Co 2.11),[8] indicando a ideia de que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias. Ele emprega toda a sua “energia” (2Ts 2.9).[9]Neste texto fica claro que Satanás se vale de todos os recursos a ele disponíveis, contudo, como não poderia ser diferente, amparado na “mentira” – que lhe é própria (Jo 8.44)[10] –, para realizar os seus propósitos.

            Lloyd-Jones (1899-1981), assim se expressou:

O ministro do Evangelho é um homem que está sempre lutando em duas frentes. Primeiro ele tem que concitar as pessoas a se interessarem por doutrina e pela teologia, todavia não demorará muito nisso antes de perceber que terá que abrir uma segunda frente e dizer às pessoas que não é suficiente interessar-se somente por doutrinas e teologia, que você corre o perigo de se tornar um mero intelectualista ortodoxo e de ir ficando negligente quanto à sua vida espiritual e quanto à vida da Igreja. Este é o perigo que assedia os que sustentam a posição reformada. Essas são as únicas pessoas realmente interessadas em teologia, pelo que o diabo vem a eles e os impele para demasiado longe na linha desse interesse, e eles tendem a tornar-se meros teólogos e só intelectualmente interessados na verdade.[11]

            Calvino está convencido de que ninguém pode “provar sequer o mais leve gosto da reta e sã doutrina, a não ser aquele que se haja feito discípulo da Escritura”.[12] E, que “só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito”.[13] Portanto, “O conhecimento de todas as ciências não passa de fumaça quando separada da ciência celestial de Cristo”.[14] Deste modo, “O homem que mais progride na piedade é também o melhor discípulo de Cristo, e o único homem que deve ser tido na conta de genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no temor de Deus”.[15]

            Ao longo da História diversos teólogos têm insistido neste ponto. O luterano Davi Chyträus (1530-1600) – aluno de Melanchthon (1497-1560) –, resumiu bem este espírito, quando escreveu em 1581: “Demonstramos ser cristãos e teólogos muito mais através da fé, da vida santa e do amor a Deus e ao próximo, do que através da astúcia e das sutilezas das polêmicas”.[16] Ele também costumava repetir aos seus alunos durante o ano: “O estudo da teologia não deve ser conduzido através da rixa e disputa, mas pela prática da piedade”.[17]

            A Teologia – que a muitos faz estremecer de reverência ou de espanto –[18] na forma que estamos analisando, tem o sentido de procura bíblica pelos fundamentos da evangelização, não uma teorização ou especulação[19] que venha satisfazer o nosso intelecto.[20]

            Na realidade, a especulação, ainda que tenha muitos adeptos, tende a nos afastar da verdade, da pureza do Evangelho.[21] A profundidade teológica está aliada ao conhecimento experimental[22] de Deus em Cristo (Jr 9.24; Os 6.3; Mt 11.27; Jo 14.6,9; 2Pe 3.18) e, como escreveu Packer em lugares diferentes: “Conhecer a Deus é um relacionamento capaz de fazer vibrar o coração do homem”.[23] “O conhecimento da grandiosidade de Deus deveria tanto nos humilhar (nos diminuir!) quanto nos elevar à adoração”.[24]

            Nesta série, quando estamos iniciando o estudo concernente à Teologia da Evangelização, desejo agradecer a Deus a oportunidade que Ele me concedeu de poder estudar este assunto. Apesar de este tema ter sido alvo de minhas reflexões desde os meus tempos de estudante, somente por volta de 1994 pude me deter nele com mais vagar. Agora, novamente volto a estudá-lo, tendo as mesmas convicções e, ao mesmo tempo, maior consciência de sua relevância e necessidade para a vida da Igreja.

            Meu desejo é que este estudo seja edificante para todos os irmãos, como o foi e tem sido para mim e, que mediante uma compreensão mais clara do significado da Evangelização, possamos sair a campo, com maior entusiasmo, no poder do Espírito (At 1.8).

            Este tema por si só, revela duas preocupações extremamente relevantes: 1) O desejo de evangelizar e 2) Conhecer com maior profundidade, o fundamento teológico da evangelização. Por outro lado, podemos notar que estes anseios trazem em seu bojo uma constatação, quiçá ainda não plenamente consciente, de que nem tudo o que se tem chamado de Evangelização, tem um fundamento bíblico-teológico, por isso a necessidade de se estudar o assunto.

            Algumas pessoas ao ouvirem o nosso tema, talvez ficassem a pensar sobre o seu significado, perguntando-se se “evangelizar não é simplesmente evangelizar”. Ora, de fato, evangelizar deve ser evangelizar, caso contrário não seria evangelização. (Desculpem-me a tautologia). Mas, que significa evangelizar? Quais os fundamentos da evangelização? Que pressupostos carregamos conosco quando evangelizamos? Quais são as metas da evangelização? Estas são algumas das questões que pretendemos analisar biblicamente em nosso estudo, procurando encontrar na Palavra de Deus as respostas para que possamos nos conduzir segundo o seu propósito.

Maringá, 04 de julho de2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] Alister E. McGrath, Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 67.

[2] Alister McGrath, Teologia para amadores, São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 69.

[3] “Para aquele que é intelectualmente dotado, é muito mais fácil ser um cristão no campo do pensamento do que naquele comportamento prático; e ainda o bom teólogo sabe muito bem que o que realmente conta diante de Deus não é simplesmente o que alguém pensa, mas o que alguém pensa com tal fé que se torna ato. Porque somente essa fé ‘que atua pelo amor’ é considerada” (Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004,v. 1, p. 119-120).

[4]Orlando E. Costas, Qué Significa Evangelizar Hoy?, San José, Costa Rica: Publicaciones INDEF., 1973, 3.442. p. 45.

[5]“A oração é sempre necessária como instrução (…). Transmitir conhecimento não basta. É igualmente essencial que oremos – que oremos por nós mesmos, para que Deus nos faça receptivos ao conhecimento e à instrução; que oremos para sermos capacitados a agasalhar o conhecimento recebido e aplicá-lo; que oremos para que não fique só em nossas mentes, e sim que se apegue aos nossos corações, dobre as nossas vontades e afete o homem todo. O conhecimento, a instrução e a oração devem andar sempre juntos; jamais devem estar separados” (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 98).

[6]W. Robert Godfrey, A Reforma do Culto: In: James M. Boice, et. al. eds. Reforma Hoje, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 155.

[7] Vejam-se, entre outros: D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 8, 85-86, 165, 254; D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 101-103,127; D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 393.

[8]“Para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios (no/hma)(2Co 2.11). A palavra traduzida por “desígnio” (no/hma), ocorre cinco vezes no NT., sendo utilizada apenas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano” (Platão, Político,São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 3), 1972, 260d), “intenção maligna”, “intrigas”, “ardis”. Com exceção de Fp 4.7, a palavra sempre é usada negativamente no NT. No/hma é o resultado da atividade do nou=j (mente); (J. Behm, noe/w, etc. In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 4, p. 960). “É a faculdade geral do juízo, que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os veredictos, conforme as influências às quais tem sido expostas” (J. Goetzmann, Razão: In: Colin Brown, ed. ger. ONovo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 32).

[9]“Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia (e)ne/rgeia) de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira” (2Ts 2.9). Satanás atua de forma eficaz na consecução dos seus objetivos: e)ne/rgeia (energeia) – “trabalho efetivo” –, de onde vem a nossa palavra “energia”, passando pelo latim, “energîa”. Esse substantivo é empregado tanto para Deus (Ef 3.7; 4.16; Fp 3.21; Cl 1.29; 2.12) como para Satanás (2Ts 2.9). Estando este subordinado à e)ne/rgeia de Deus (2Ts 2.11). E)ne/rgeia e seus derivados, no NT., descreve sempre um poder eficaz em atividade sobre-humana, por meio da qual a natureza de quem a exerce se revela (Veja-se: W. Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento,p. 51-57).

[10]“Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44).

[11]D. M. Lloyd-Jones, Os Puritanos: suas origens e seus sucessores,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1993, p. 22.

[12] João Calvino, As Institutas,I.6.2. Os verdadeiros discípulos da Escritura tornam-se “discípulos da Igreja” (Ver: João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.13), p. 126).

[13] J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374.

[14]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.20), p. 60.

[15]João Calvino, As Pastorais,(Tt 1.1), p. 300. Para maior detalhamento deste ponto, ver: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

[16]D. Chyträus, Apud Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Bernardo do Campo, SP.; Curitiba, PR.: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião;  Encontrão Editora, 1996, p. 114 e 30. (Veja-se também, Spener, Ibidem.,p. 102-117).

[17] D. Chyträus, Apud  Ph. J. Spener, Pia Desideria,São Bernardo do Campo, SP.: Imprensa Metodista, 1985, p. 30. (Esta frase de Chyträus foi omitida na edição mais recente, citada supra, conforme explicação do editor).

[18]Quanto à estupefação que a palavra “teologia” causa, Veja-se: por exemplo: Helmut Thielicke, Recomendações aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo: Sepal, 1990, 69p.; William Hordern, Teologia Protestante ao Alcance de Todos, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1974, p. 11ss.

[19] Se a especulação indevida é um mal; devemos observar também, que mal semelhante é negligenciar o estudo daquilo que Deus nos revelou em Sua Palavra. Calvino (1509-1564) nos advertiu quanto a isto, dizendo: “As cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra” (As Institutas,III.21.4). Alhures, ele observa que a sabedoria consiste em reconhecer os nossos limites. “Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura”(As Institutas,III.23.8).

            Calvino orientou-nos pastoralmente: “Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a mais” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 330).

            “Aqueles que inquirem curiosamente acerca de tudo, e que jamais ficam satisfeitos, podem com justiça ser chamados ‘questionadores’. Em suma, as coisas mantidas em elevada estima pelos eruditos da Sorbonne são aqui condenadas pelo apóstolo. Porquanto toda a teologia dos papistas nada é senão um labirinto de questões” (João Calvino, As Pastorais,(Tt 3.9) p. 355).

            Do mesmo modo, diz Agostinho: “Ignoremos de boa mente aquilo que Deus não quis que soubéssemos” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/1), 1998, v. 1, (Sl 6), p. 60).        

[20] “O propósito da teologia não é satisfazer nosso intelecto e sim nos instruir nos caminhos de Deus, para que cresçamos até à maturidade e à plenitude de obediência a Ele. Essa é a razão por nos engajamos em teologia” (R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à Teologia Sistemática, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 30).

[21] “O fútil ensino dos sofistas, erguendo-se em airosas especulações e sutilezas, não só obscurecem a simplicidade da doutrina genuína com suas implicações, mas também a oprimem e a fazem desprezível, já que o mundo quase sempre se deixa levar pela aparência externa” (João Calvino, As Pastorais,(1Tm 6.20), p. 186).

[22] Somente aquele que conhece experimentalmente a Deus pode confiar no Seu poder e descansar nas Suas Promessas. Vejam-se: J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 9-35; A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 5; A.W. Pink, Enriquecendo-se com a Bíblia, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1979, p. 15-27; Leon L. Morris,Lucas: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1973, p. 160.

[23] J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 29.

[24]J.I. Packer, A Oração do Senhor, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 32.

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