Teologia da Evangelização (87)

2.4.9.4. Uma demonstração prática da doutrina (Continuação)

 A Companhia dos Pastores de Genebra liderada por Calvino esforçou-se intensamente pela evangelização da França, chegando, em alguns casos, até mesmo cidades suíças ficarem desguarnecidas de pastores devido também, ao entusiasmo e voluntariado destes em difundir o Evangelho naquele país.

 Calvino que lutava em diversas frentes, tendo também como objetivo consolidar a reforma em Genebra, onde enfrentou forte oposição – especialmente dos Libertinos, liderados pelo poderoso Ami Perrin (c.1500-1561), até 1555 –, quando teve alguma paz com a vitória, passando a ser a sua autoridade incontestável.[1]   

A fina percepção de Calvino fora demonstrada décadas antes, estando em Genebra há poucos meses, já lamentava a falta de pastores comprometidos mais intensamente com o ministério. Escreve, então, ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536. Na ocasião ele estava em  Lausanne em companhia de Viret e Farel, tendo participado do Debate de Lausanne, iniciado no dia 2 de outubro.

Se os ventres preguiçosos que estão com você, que gorjeiam juntos tão docemente à sombra, fossem tão dispostos quanto são faladores, correriam juntamente para cá para tomarem parte do labor para si mesmos, visto que há tão poucos de nós. Quase não dá para acreditar no número tão pequeno de ministros, comparado ao tão grande número de igrejas que carecem de pastores. Como desejo, ao ver a extrema necessidade da igreja, que, embora sejam poucos em número, houvesse ao menos entre vocês alguns homens de coração reto que pudessem ser induzidos a ajudar! Que o Senhor o guarde.[2]

    Mesmo confiante na soberania de Deus que operava poderosamente por meio do Evangelho valendo-se dos meios propostos por Ele mesmo, Calvino entendia que “certamente nada retarda tanto o progresso  do reino de Cristo como a escassez de ministros”.[3] “Um pregador do Evangelho, portanto, deve ter como sua meta, na realização de seu ofício, oferecer a Deus as almas purificadas pela fé”.[4] Por outro lado, “a infidelidade ou negligência de um pastor é fatal à Igreja”.[5]

Medeiros, tratando sobre o grande interesse missional dos pastores da Suíça, escreve, possivelmente com um tom melancólico: “Ao que parece, era mais fácil e mais rápido encontrar tais obreiros na Genebra do século 16 e enviá-los para a América do Sul do que para uma agência missionária contemporânea recrutar um pastor hoje para o trabalho missionário”.[6]

          A despeito de intensas perseguições na França e a possibilidade bastante concreta da morte em seu campo de trabalho, o número de missionários voluntários não diminuía. Calvino ensinava que “a Igreja de Deus jamais subsiste sem inimigos”.[7]

          Muitos dos alunos de Genebra quando voltavam para seus países, com o coração em chamas, levavam consigo a Palavra, esforçando-se por difundir o Evangelho consistentemente visto em Genebra.

          A perseguição e o martírio faziam parte involuntários deste nobre ideário. Contudo, vezes sem conta, este era o preço. Lawson diz que devido a isso, a Academia de Genebra ficou conhecida como a “Escola da Morte, de Calvino”.[8]

          Assim, o trabalho se desenvolveu rapidamente. Como escreveu o respeitado historiador católico francês, Delumeau (1923-2020) a respeito desses calvinistas: “Convertiam mais pelo exemplo que pela propaganda”.[9] De fato, especialmente se considerarmos que no período de 1555-1562, ao que parece  não regressaram de Genebra a França mais do que algumas dezenas de refugiados, já que os 88 descritos se dirigiam também a outros países. O segredo estava na realidade, em sua intensa dedicação ao seu chamado.[10]

          Em 03.09.1554, Calvino escreveu à igreja de Poitou, que experimentava ótimo crescimento e, ao mesmo tempo, pressões externas:

Que cada um de vocês procure atrair e ganhar para Jesus Cristo aqueles que puder e, em seguida, aqueles que considerarem capazes, depois de acurado exame, sejam recebidos (na igreja) mediante o consentimento de todos. (…) Mostrem que o Evangelho de nosso Senhor Jesus é uma luz para o seu caminho,  a fim de que não errem  como os filhos das trevas.[11]

          Em 1555 havia 5 igrejas reformadas em território francês (Paris, Meaux, Angers, Poitiers e Loudun).[12]  Sobre isso, escreve Walker (1860-1922), aludindo aos frutos dos esforços de Calvino: “Uma grande Igreja nacional, pela primeira vez na história da Reforma, foi criada independente de um Estado hostil; e a obra foi a que Calvino deu o modelo, a inspiração e o treinamento”.[13]

          A despeito de Calvino não conseguir atender a demanda da França, no envio de tantos pastores, a obra crescia de forma admirável. Entre 1555 e 1566, cento e vinte pastores foram enviados pela Companhia de Pastores para França.[14]         

          Contudo, não eram suficientes.

          Em  1558, surgiram não menos do que vinte igrejas. No início de 1559, mais setenta e duas e, em 1561, não menos de 90 igrejas na França.[15]

          Calvino (1509-1564) e seu discípulo Antoine de la Roche Chandieu (De Chandieu) (1534-1591), provavelmente com a ajuda de T. Beza (1519-1605) e Pierre Viret (1511-1571),  elaboraram A Confissão Francesa ou Gaulesa, constituída de 35 capítulos.

Maringá, 07 de outubro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Ver: Robert M. Kingdon, Calvinist Religious Agression: In: J.H.M. Salmon, The French wars of religion: How important were religious factors?  Massachusetts: D.C. Heath and Company, 1967, [p. 6-11], p. 6.; Émile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme – I. La Réformation, Paris: Presses Universitaires de France, 1961, v. 1, p. 298-304. No entanto, antes de ter algum alívio quanto  a esses adversários, teve que tratar de mais uma questão.  Os Libertinos  tentando gerar uma animosidade contra Genebra, difundiram várias calúnias em outros cantões Suíços  contra Calvino e as pessoas que o apoiavam.  A pedido de seu colega e amigo Bullinger, pastor em Zurique,  que lhe informou das narrativas difundidas que seduzia a alguns, Calvino teve que explicar detalhadamente o que havia acontencido em Genebra (Veja-se a Carta de Calvino (15.06.1555) apresentando a sua versão dos fatos  («descrição total e exata desse caso»), que poderia ser aclarada, corrigida e explicada por um tal Otham, amigo de ambos, que coincidentemente estava de partida para Zurique. (In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 127-134).

[2] In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30.

[3] Carta de Calvino a Bullinger, escrita em 12.03.1562. In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983,  p. 263.

[4]João Calvino, Romanos,2. ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, (Rm 15.16), p. 507.

[5] João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.16), p. 126.

[6] Elias Medeiros, O compromisso dos reformadores calvinistas com a propagação do evangelho a todas as nações. (https://www.martureo.com.br/wp-content/uploads/2017/10/o-compromisso-dos-reformadores_elias-medeiros.pdf) (Consultado em 26.03.2021).

[7]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 46.6), p. 334.

[8]Steven J. Lawson, A Arte Expositiva de João Calvino,  São José dos Campos, SP.: Fiel,  © 2008, 2010, p. 26.

[9] Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 149. Calvino comenta: “A primeira preocupação é sem dúvida a de ser uma boa pessoa, e isto é verificado não só pelos feitos externos, mas também por uma consciência íntegra; porém, a segunda preocupação consiste no fato de que as pessoas no meio das quais você vive devem reconhecer que de fato você é uma boa pessoa. (…) O cristão deve sempre ter o cuidado de viver uma vida que produza a edificação de seu próximo e tomar cuidadosas precauções para que os ministros de Satanás não encontrem desculpas para caluniá-los, trazendo com isso a desonra de Deus e a ofensa dos homens de bem” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 8.21), p. 181,182). “A doutrina será de pouca autoridade, a menos que sua força e majestade resplandeçam na vida do bispo como o reflexo de um espelho. Por isso ele diz que o mestre seja um padrão ao qual os discípulos possam seguir” (J. Calvino, As Pastorais,São Paulo:  Paracletos, 1998, (Tt 2.7), p. 331).

[10] Richard Stauffer,  L Réforme (1517-1564),  Paris: Presses Universitaires de France, 1970, p. 98-99.

[11] To The Brethren of Poitou. In:  Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 6 (Letters, Part 3), 1983, p. 70.

[12]Cf. Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: (1533-1633): In: W.S. Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, [p. 87-109],  p. 89; Richard Stauffer,  L Réforme (1517-1564),  Paris: Presses Universitaires de France, 1970, p. 99; Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 149.

[13]Williston Walker, John Calvin: The Organiser of Reformed Protestantism 1509-1564, New York: Schocken Books, © 1906, 1969, p. 385.

[14] Williston Walker, John Calvin: The Organiser of Reformed Protestantism 1509-1564, New York: Schocken Books, © 1906, 1969, p. 384-385; Carl Lindberg,  As Reformas na Europa,  São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 337. Cairns, diz que “mais de 150 pastores, treinados em Genebra, foram mandados à França, entre 1555  1556”   (E.E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 257).

[15] Corpus Reformatorum (v. 57). Ioannis Calvini Opera Quae Supersunt Omnia, Guilielmüs Baum; Edüardüs Cünitz; Edüardüs Reüss, eds., Brunsvigae:  Apud C.A. Sohwetschke et Filium, 1885, v. 21, col. 710-771); Williston Walker, John Calvin: The Organiser of Reformed Protestantism 1509-1564, New York: Schocken Books, © 1906,1969, p. 384-385.

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