Teologia da Evangelização (31)

2.4.3.2.2.2.2. O privilégio e a responsabilidade dos que pregam  (Continuação)

Na Reforma Protestante do Século XVI, a compreensão sobre a igreja foi enfatizada no sentido de “povo de Deus”, não simplesmente como um edifício ou uma organização institucional,[1] mas sim, como povo constituído por Deus que se reúne para adorar a Deus, sendo a Igreja caracterizada pela exposição fiel da Palavra e correta administração dos Sacramentos.[2]

            A Reforma teve como um de seus marcos fundamentais o “reavivamento” da pregação da Palavra.[3] “A divulgação da Bíblia na língua vernácula dos povos foi o centro do movimento em todos os países da Europa”, interpreta Schalkwijk.[4] Ela foi caracterizada pela “emergência de uma nova pregação”.[5]

            Cito novamente o sumário de George:

Os reformadores queriam que a Bíblia lançasse raízes profundas na vida das pessoas que foram chamadas para servir. A Palavra de Deus não devia ser apenas lida, estudada, traduzida, memorizada e usada para meditação; ela também devia ser incorporada à vida e à adoração na igreja. A concretização da Bíblia foi muito claramente expressa no ministério de pregação, que recebeu nova preeminência na adoração e na teologia das tradições da Reforma.[6]

Calvino, fiel à sua compreensão da relevância da pregação bíblica,[7] usou de modo especial, o método de expor integralmente e aplicar[8] quase todos os livros das Escrituras à sua congregação.[9] A sua mensagem se constitui em um monumento de exegese, clareza[10] e fidelidade à Palavra, e soube aplicá-la com maestria aos seus ouvintes.

            Calvino optou por uma interpretação que considerava  ser a única bíblica, visto que para ele, “o genuíno significado da Escritura é único, natural e simples”.[11] Por isso,  a importância de se entender o sentido das palavras[12] e o contexto histórico[13]  ou “circunstância” da passagem.[14]

            “Quando passagens da Escritura são tomadas à revelia, e não se presta nenhuma atenção ao contexto, não nos admira que equívocos dessa natureza surjam com frequência”, comenta Calvino.[15] Sustentava que competia ao intérprete entender o que o autor quis dizer e o seu propósito.

            Ele entendia que “a pregação é um instrumento para a consecução da salvação dos crentes” e, que “embora não possa realizar nada sem o Espírito de Deus, todavia, através da operação interior do mesmo Espírito, ela revela a ação divina muito mais poderosamente”.[16]

            Em outro lugar: “O ‘Espírito’ está unido com a Palavra, porque sem a eficácia do Espírito, a pregação do Evangelho de nada adiantará, mas permanecerá estéril”.[17] A Palavra não tem eficácia própria, não opera por si mesma (ex opere operato), antes pela ação do Espírito Santo.[18]

            É o Espírito quem confere poder à pregação do Evangelho; por isso não há lugar para vanglória: “Todo o poder da ação (…) reside no Espírito mesmo, e assim, todo o louvor deve ser inteiramente atribuído a Deus somente”.[19]

            Referindo-se ao púlpito de Genebra sob o pastorado de Calvino, Lawson afirma: “Esse púlpito se tornou um trono do qual a Palavra de Deus reinava, governando os corações daqueles que se uniram no esforço histórico de reformar a igreja”.[20]

            Cito aqui um fato bastante conhecido que ilustra bem a seriedade de Calvino para com o culto e a pregação da Palavra.

            Por insistente pedido dos magistrados Calvino volta de Estrasburgo para Genebra (13.09.1541). Era uma manhã de terça-feira.

            A semana passa rapidamente. Há muito que fazer. São 18 de setembro de 1541, domingo cedo. Muitos entre o povo estão excitados. Calvino, querido por grande parte e indesejado por outros, vai pregar pela manhã. Momento de expectativa. O que dirá? O próprio Calvino narraria o acontecido, meses depois (janeiro de 1542), em carta a um amigo, demonstrando a sua prática de lectio continua:[21]

Quando preguei, todos estavam muito alertas e ansiosos. Mas, omitindo completamente qualquer menção daqueles assuntos sobre os quais eles com certeza esperavam ouvir, dei uma breve explicação sobre nosso ofício. Depois acrescentei uma modesta recomendação de nossa fé e integridade. Após esse prefácio, tomei a exposição de onde havia parado – gesto pelo qual indiquei que havia interrompido o meu ofício de pregar apenas por um tempo em vez de ter desistido completamente.[22]

            Um estudioso da vida e pensamento de Calvino, William Wileman (1848-1944), escreveu: “Como expositor da Escritura, a Palavra de Deus era tão sagrada para ele como se a tivesse ouvido dos lábios de seu Autor”.[23]

            Lutero (1483-1546) em certa ocasião disse: “Eu prego como se Cristo tivesse sido crucificado ontem, ressuscitado dos mortos hoje e estivesse voltando ao mundo amanhã”.[24]  Ele acentuou que “Não há tesouro mais precioso nem coisa mais nobre na terra e nesta vida do que um verdadeiro e fiel pastor ou pregador”.[25]

            Karl Barth (1886-1968), independentemente da divergência que temos em muitos de seus pensamentos, nos exorta corretamente: “Para ser positiva, a pregação deve ser uma explicação da Escritura”.[26]

            Em outro lugar:

Aquele que deseja pregar deve estudar mui atentamente seu texto. Em vez de atenção, seria melhor dizer “zelo”, ou seja, esforço de aplicação para descobrir o que se diz neste texto que está aí diante de seus olhos. Para isso é necessário um trabalho exegético, científico. Porque a Bíblia é também um documento histórico; nasceu em meio da vida dos homens.[27]

            Não precisamos inventar a mensagem. Por graça, nós conhecemos a Deus e experimentamos o conteúdo da Palavra, do qual somos beneficiários; afinal, Deus operou e tem operado maravilhas em nossa vida.

            O pregador é o primeiro a usufruir dos benefícios do que prega. Antes de proclamar a Palavra, em sua preparação do sermão, dirigida pelo Espírito, ele tem sido instruído, confrontado, desafiado e consolado.[28]

            A indagação de extrema relevância para todos aqueles que estudam as Escrituras com sinceridade, é: “O que este texto significa para mim?”[29] Esta deve ser a pergunta do pregador a si mesmo, humildemente diante do texto em submissão ao Espírito.

 Osborne nos chama a atenção para o aspecto devocional na elaboração do sermão:

A preparação de sermões deve ser um exercício devocional (um encontro em primeira pessoa) antes de se tornar um evento de proclamação (um encontro em segunda pessoa). Os pregadores devem continuamente se colocar diante do texto em vez de meramente se colocar por trás do texto para aplicá-lo a essa ou aquela situação na igreja.[30]

Dentro de uma abordagem mais ampla, toda a igreja tem experimentado a essência da mensagem que proclama, afinal, fomos tirados das trevas para a luz, como escreve Pedro:

9 Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou (kale/w)das trevas para a sua maravilhosa luz; 10 vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia. (1Pe 2.9-10).

            A admoestação do grande pregador britânico, antecessor de Lloyd-Jones na Capela de Westminster, Campbell Morgan (1863-1945), é-nos pertinente: “A obra suprema do ministro cristão é a obra da pregação. Este é um dia no qual um de nossos maiores perigos é fazer mil pequenas coisas enquanto ignoramos uma coisa, a pregação”.[31]

            Lembremo-nos sempre.  Soberana e poderosamente Deus emprega a sua Palavra como instrumento de nossa salvação e edificação. Do mesmo modo, Ele partilha conosco deste privilégio: sermos agentes humanos na concretização de seu propósito salvador, anunciando o Evangelho. Portanto, não nos detenhamos, antes, preguemos a Palavra com fidelidade, sabedoria, intensidade e submissão.

 São Paulo, 05 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Lutero (1483-1546) enfatizou que, “nem trabalho em pedra, nem boa construção, nem ouro, nem prata tornam uma igreja formosa e santa, mas a Palavra de Deus e a sã pregação. Pois onde é recomendada a bondade de Deus e revelada aos homens, e almas são encorajadas para que possam depender de Deus e chamar pelo Senhor em tempos de perigo, aí está verdadeiramente uma santa igreja” (Jaroslav Pelikan, ed. Luther’s Works, Saint Louis: Concordia Publishing House, 1960, v. 2, (Gn 13.4), p. 332).

[2] Veja-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 330ss.

[3] Vejam-se: John H, Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 125; Roland H. Bainton, Martin Lutero, 3. ed. México: Ediciones CUPSA., 1989, p. 391; W. Stanford Reid, A Propagação do Calvinismo no Século XVI: In: W. S. Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 49. Podemos dizer que na Reforma houve uma revitalização da Pregação Bíblica. A Palavra de Deus passou a ser pregada com ênfase e, a pregação passou a ser estudada considerando-se a sua natureza e propósito, No período da Renascença e da Reforma houve diversas contribuições neste campo (Para uma amostragem destas, Veja-se: Vernon L. Stanfield, The History of Homiletics: In: Ralph G. Turnbull, ed. Baker’s Dictionary of Practical Theology, 7. ed. Michigan: Baker Book House, 1970, p. 52-53).

[4] Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630-1654), Recife, PE: Fundarte, (Coleção Pernambucana, 2ª Fase, v. 25), 1986, p. 22,23. Ver também, p. 227,228.

[5]Marc Lienhard, Martin Lutero: tempo, vida e mensagem, São Leopoldo: Editora Sinodal, 1998, p. 97.

[6]Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 181.

[7] Ele escreveu: “…. Quão necessária é a pregação da Palavra, e quão indispensável é que a mesma seja realizada continuamente” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 3.6), p. 103). Veja-se: também AsInstitutas, IV.1.9-11. Falando sobre a sua vocação, Calvino diz: “… Deus, me havendo tirado de minha originariamente obscura e humilde condição, considerou-me digno de ser investido com o sublime ofício de pregador e ministro do Evangelho” (J. Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 37).

[8]Veja-se: T.H.L. Parker, Calvin’s Preaching, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1992, p. 79ss. “Na pregação de Calvino o método expositivo dos pregadores da Reforma encontrou ênfase. Seus comentários eram frutos de sua pregação e aula, e seus sermões eram comentários ampliados e aplicados. (…) (O seu estilo) mostra-nos como o comentarista obteve o melhor do pregador. Contudo os seus sermões não eram meros comentários. Ali temos uma agilidade de percepção, uma firmeza no posicionamento, um poder de expressão que aliados fazem o pensamento da Escritura marcar e produzir sua impressão sem o auxílio da arte do orador” (Edwin C. Dargan, A History of Preaching, Grand Rapids, Mi.: Baker Book House, 1954, v. 1, p. 449).

[9] Uma tabela parcial sobre o que Calvino pregava durante a semana (de manhã e de tarde) e aos domingos, pode ser encontrada em: T.H.L. Parker, The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin, Cambridge, England: James Clark & Co. © 1947 (Reprinted: 2002), p. 160-162. (Agora em português: T.H.L. Parker, Os Oráculos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 155-157). Do mesmo modo: T.H.L. Parker, Calvin’s Preaching, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1992, p. 150-152.

[10] “Os comentários de Calvino são modelos de clareza e excelência” (Moisés Silva, O Argumento em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/1 (2000), p. 7).

[11]João Calvino, Gálatas,(Gl 4.22), p. 140. “Que proveito há se porventura alguém se interessa apenas por especulações curiosas? Que proveito há se porventura ele só adere à letra da lei e não busca a Cristo? Que proveito há se ele perverte o significado natural com as interpretações estranhas a ela? O apóstolo tem boas razões para lembrar-nos da fé que está em Cristo, a qual é o centro e a suma da Escritura.” [João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.15), p. 261-262]. (Ver também: João Calvino, AsInstitutas, IV.17.22). Sanday e Headlam afirmam que Calvino “era sem dúvida o maior dos comentaristas da Reforma. Ele é claro, lúcido, honesto e direto” (William Sanday; Arthur C. Headlam, A Criticial and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans,5. ed. Edinburgh: T. & T. Clark, 1975 (reimpression), p. ciii). Quanto ao sentido único do texto, vejam-se a opinião semelhante de outros Reformadores in: Walter C. Kaiser Jr., Uma Breve História da Interpretação: In: Walter C. Kaiser Jr.; Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 216-217.

[12] Cf. João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 18.5,8), p. 363-364, 368-369. Ele inclusive evitava o emprego de palavras não utilizadas nas Escrituras, ainda que soubesse ser impossível cumprir isso à risca. Nas Instituições, falando sobre a palavra “mérito”, faz um apelo: “Quanto a mim, fujo com todas as forças da alma de todas as contendas que se travam por causa de palavras; mas eu gostaria que sempre fosse mantida pelos cristãos esta sobriedade: que, não havendo necessidade ou algum propósito, não façam uso de palavras alheias à Escritura que possam gerar muito escândalo e pouco fruto” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, (II.6) v. 2, p. 225).

[13]Cf. Juan Calvino, Institución, IV.16.23.

[14] Cf. João Calvino, AsInstitutas, III.17.14.

[15] John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 7/1, (Is 14.12), p. 442.

[16]João Calvino, Romanos,2. ed. (Rm 11.14), p. 407.

[17] John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids: Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 8/4, (Is 59.21), p. 271.

[18]Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.25), p. 109.

[19]John Calvin, “Commentary on the Prophet Ezekiel,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Ez 2.2), p. 96.

[20]Steven J. Lawson, O Pregador da Palavra de Deus. In: Burk Parsons, ed. João Calvino Amor à Devoção, Doutrina e Glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 95.

[21] Não sabemos quem foi o destinatário da carta. Uma possibilidade é que tenha sido o importante geógrafo, matemático, astrônomo e hebraísta alemão que lecionou em Heidelberg e depois em Basileia, Sebastian Münster (1489-1552), antigo aluno de Conrad Pellicanus (1478-1556), um dos tradutores da Bíblia de Zurique (1529).

[22]A.-L. Herminjard, Correspondance des Réformateurs des les pays de langue française, recueillie et publiée avec d’autres lettres relatives a la Réforme, Genève: G. Fischbacher, © 1886, Facsimile Publisher 2017, v. 7, p. 412; I. Calvini. In: Herman J., Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 11, colunas 365-366.

[23]William Wileman, “John Calvin. His Life, His Teaching & Influence,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 100.

[24]Lutero, Apud: Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 64.

[25] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 336.

[26] Karl Barth, La proclamación del Evangelio, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1969,p. 22. Ver também a página 37.

[27] Karl Barth, La proclamación del Evangelio, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1969, p. 56-57.

[28] “Até mesmo o sermão deve ser o produto do Espírito Santo” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 357).

[29]Quanto à importância dessa pergunta, veja-se: Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 111.

[30]Grant Osborne, A Espiral Hermenêutica: Uma nova abordagem à interpretação bíblica,São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 570.

[31] G. Campbell Morgan, Preaching, London: Marshall, Morgan & Scott, © 1955, 2. impression, 1960, p. 11.

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