Teologia da Evangelização (37)

2.4.3.2.2.3. Arrependimento (Continuação)

O arrependimento consiste em uma mudança de mente, ocasionando um sentimento de “tristeza piedosa”[1] pelos nossos pecados, que se caracteriza de forma concreta em seu abandono,[2] refletindo isso na adoção de novos valores, ideais, objetivos e práticas.

Um falso arrependimento é gerador de condenação justamente pela sensação enganosa de perdão e, a autocondescendência para continuar pecando.[3]

            O arrependimento sincero é uma “concessão”, um presente[4] de Deus. O genuíno arrependimento é-nos propiciado pela bondosa disciplina de Deus: “Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento (meta/noia) para a salvação” (2Co 7.10/2Tm 2.25). “A bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (meta/noia) (Rm 2.4/At 11.18; Hb 12.17).

            O arrependimento distingue-se, assim, do remorso, que é apenas uma tristeza por um ato pecaminoso, em geral, percebido por causa das consequências, ainda que parciais, do seu pecado (Jr 3.7). Esta tristeza (remorso) pelo pecado faz parte do arrependimento, contudo, ela sozinha é insuficiente.[5] O remorso é negativo enquanto o arrependimento se completa positivamente.[6]

            Saul, quando percebe a injustiça que cometia contra Davi o perseguindo para matá-lo, chorou amargamente. Seu choro, entretanto, foi de remorso, não de arrependimento, visto que o seu comportamento não mudou de modo permanente:

13 Dos perversos procede a perversidade, diz o provérbio dos antigos; porém a minha mão não está contra ti. 14 Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegue? A um cão morto? A uma pulga? 15 Seja o Senhor o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão. 16 Tendo Davi acabado de falar a Saul todas estas palavras, disse Saul: É isto a tua voz, meu filho Davi? E chorou Saul em voz alta. (1Sm 24.13-16).   

            Owen  (1616-1683) argumenta:

Quando um homem corrige o seu pecado somente com argumentos sobre o resultado ou o castigo devido a este, isso é um sinal de que o pecado tem grande domínio sobre a vontade, e que no coração há uma superabundância de malícia (Tiago 1:21). Tal homem não se opõe em nada  à sedução do pecado e à concupiscência no coração, porém teme a vergonha entre os homens ou o inferno de Deus e estaria suficientemente resolvido em seu coração a cometer o pecado não fosse o castigo que o acompanha. Isso é viver na prática do pecado. (…) Aqueles que são de Cristo e que se conduzem na sua obediência dentro de princípios do evangelho têm a morte de Cristo, o amor de Deus, a detestável natureza do pecado, a preciosidade da comunhão com Deus, uma profunda aversão ao pecado como pecado, para se opor contra qualquer sedução do pecado, a todas as obras, esforços, reivindicações da concupiscência que tenham no coração. Assim foi com José.  “Como eu faria isto?”, ele diz, “e pecaria contra meu Senhor”, meu bom e gracioso Deus? [Gn 39:9].[7]

Os casos de Esaú e Judas, por exemplo, refletem uma atitude de remorso, não de arrependimento, conforme resume Michel, dizendo que Judas, em sua atitude, exibe “remorso e não arrependimento. Judas vê que é culpado em sua ação e não suporta seu fardo. O remorso de Judas (Mt 27.3) e de Esaú (Hb 12.17) não tem o poder de vencer a operação destruidora do pecado”.[8]

A graça do arrependimento

            O arrependimento é por si só fruto da graça de Deus; é uma tristeza produzida por Deus em nossos corações. Somente a verdadeira convicção do pecado, resultante da contemplação do Deus santo, pode nos conduzir à consciência de nossa pobreza espiritual e ao choro de arrependimento pelos nossos pecados.

            Os que assim agem serão consolados pelo próprio Deus. Este consolo trará alegria eterna para o seu povo: “Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6.21).

            Portanto,  “a fé e o arrependimento não devem ser reputados coisas meritórias mediante as quais merecemos o perdão. Pelo contrário, são os meios pelos quais nos apropriamos da graça de Deus”, escreve Morris (1914-2006).[9] Em síntese: “O arrependimento não está no poder do homem”, reafirma Calvino.[10] Por isso, ele é próprio do novo homem.[11] Deste modo, podemos falar como nos Cânones de Dort, “que o homem crê e se arrepende mediante a graça que recebeu”.[12]

            Watson (c. 1620-1686) ilustra:

Um homem permaneceu muito tempo no pecado. Por fim, Deus o detém, mostra-lhe o risco desesperador que ele corre, e ele se enche de angústia. Não demora, a tempestade da consciência é soprada para longe, e ele se tranquiliza. Então conclui que é um verdadeiro penitente porque sentiu alguma amargura por seu pecado. Ninguém se engane: isso não é arrependimento. Acabe e Judas tiveram alguma inquietação mental. Uma coisa é ser um pecador aterrorizado, outra é ser um pecador arrependido. O sentimento de culpa é suficiente para gerar terror. A infusão da graça gera arrependimento.[13]

            O arrependimento bíblico consiste em voltar-se total e integralmente para Deus.  Envolve uma atitude de abandono do pecado e uma prática da Palavra de Deus.[14] Esta prática consiste nos “frutos do arrependimento”.

            Paulo, testemunhando diante do rei Agripa a respeito do seu ministério, diz:

19Pelo que ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial, 20mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judéia, e aos gentios, que se arrependessem (metanoe/w) e se convertessem a Deus praticando obras dignas (a)/cioj) de arrependimento (meta/noia).(At 26.19,20. Vejam-se também: At 20.21/Lc 3.8).

            Considerando o nosso progresso espiritual em direção ao modelo definitivo, Jesus Cristo, Calvino (1509-1564) destaca três elementos essenciais no arrependimento os quais devem nos acompanhar em toda vida cristã: “O ensino do arrependimento contém a regra do viver santo; ele demanda negação de nós mesmos, mortificação de nossa carne e meditação sobre a vida celestial”.[15]

Em outro lugar:

Esta restauração, na verdade, não se consuma em um momento, ou em um dia, ou em um ano; antes, através de avanços contínuos, ainda que amiúde de fato lento, Deus destrói em seus eleitos as corrupções da carne, os limpa de sua imundície e a si os consagra por templos, renovando-lhes todos os sentimentos à verdadeira pureza, para que se exercitem no arrependimento toda sua vida e saibam que não há nenhum fim para esta luta senão na morte.[16]

Julgo que aquele que aprendeu a ficar profundamente insatisfeito consigo mesmo aprendeu muito de proveito, não para permanecer estacionado neste lamaçal, sem dar um passo além; antes, pelo contrário, de modo que se apresse para Deus e por ele suspire; para que, enxertado na morte e na vida de Cristo, se aplique ao perpétuo arrependimento.[17]

São Paulo, 12 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Se Deus nos esmaga com tristeza piedosa, isso é um ato de pura graça. É o seu ato de misericórdia para nos levar à fé e à conversão” (R.C. Sproul, O que é arrependimento? São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014, p. 43). Veja-se:  Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 141.

[2]Analisando diversas passagens bíblicas, Bavinck, conclui: “A conversão sempre consiste em uma mudança interna de mente que leva as pessoas a olharem para seu passado pecaminoso à luz da face de Deus; conduz à tristeza, desgosto, humilhação e confissão de pecados; e é, tanto interna quanto externamente, o começo de uma nova vida ético religiosa” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 142). Veja-se também: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-480).

[3] Vejam-se algumas ilustrações sobre “falso arrependimento” em: Thomas Watson, A Doutrina do Arrependimento, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2012, p. 17ss; John Owen, Para vencer o pecado e a tentação, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 109; Jim Elliff, Arrependimento ineficaz. (http://www.ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/253/O_Arrependimento_Ineficaz) (Consulta feita em 06.05.21).

[4] “O arrependimento é um presente do Cristo que subiu ao céu, no seu glorioso ofício de Mediador” (Sinclair B. Ferguson, Arrependimento, Recuperação e Confissão: In: James M. Boice; Benjamin Sasse, orgs. Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 143).

[5] Quanto à confusão feita nas traduções entre arrependimento e remorso, veja a excelente obra de meu antigo mestre, Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 362-363.  Veja-se também:   D. M.  Lloyd-Jones,  Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 179-180.

[6] Cf. D. M.  Lloyd-Jones,  Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 180.

[7] John Owen, Para vencer o pecado e a tentação,  São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 109.

[8] Otto Michel, In: Metame/lomai: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 4, p. 628.

[9] Leon Morris, Perdão: In: J.D. Douglas, ed. org.O Novo Dicionário da Bíblia,São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 3, p. 1268a.

[10]João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.6), p. 155.

[11] Cf. Herman Bavinck, Teologia Sistemática,p. 479.

[12]Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, [s.d.], III-IV.12.

[13] Thomas Watson, A Doutrina do arrependimento, 2. ed. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2019, p. 17-18.

[14]“O arrependimento bíblico, então, não é meramente sentir um remorso que nos deixa onde estamos; é uma inversão radical que nos leva de volta pela estrada de nossas peregrinações pecaminosas, criando em nós uma mentalidade completamente nova. É cair em si espiritualmente (cf. Lc 15.17). A vida não é mais caracterizada pela exigência ‘dá-me’ (Lc 15.12) e sim pelo pedido ‘faze-me’ (Lc 15.19)” (Sinclair B. Ferguson, Arrependimento, Recuperação e Confissão: In: James M. Boice; Benjamin Sasse, orgs. Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 131).

[15] John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19, (At 20.21), p. 245.

[16] João Calvino, As Institutas, (2006), III.3.9.

[17] João Calvino, As Institutas, (2006), III.3.20.

One thought on “Teologia da Evangelização (37)

  • 18 de agosto de 2022 em 13:35
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    O Reverendo Hermisten tem contribuído poderosamente através de seus escritos para a edificação Igreja do Senhor. Vida longa ao reverendo!

    Que Deus continue abençoando.

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