Teologia da Evangelização (161)

4.3.7. O reto juízo de Deus por meio de Cristo (Continuação)

Juízo universal

          Um recurso de retórica muito comum, ainda que indesejável, é incluir o “nós” onde só se tem certeza do inseguro “eu” que busca em um discurso abrangente a sustentabilidade qualificativa que não tem em si

          Desse modo, falamos em nome de pessoas que não nos autorizaram a representá-las em nossa fala e, também, não temos autoridade para isso, exceto a concedida pelo nosso despropositado e pretensioso “eu”.

          Outra forma ideológica discursiva é a generalização indevida como estratégia para conferir força ao argumento.

          Assim, falamos: “Hoje ninguém mais pensa dessa forma”; “Todos sabemos”; “Pesquisas têm demonstrado”; “A ciência já provou”, esse ou aquele pensamento “está totalmente ultrapassado”, etc.

          Saindo dessas construções ideológicas, podemos retornar às Escrituras.

Senhor que governa

          As Escrituras declaram com insistência que Deus é Rei. O fato é que como Deus é o Senhor Criador de todas as coisas (Rei), também governa sobre todo o universo (Reina). Não há aqui generalizações, presunção ou hipérboles.

          Deste modo, a manifestação do seu juízo será sobre todos os povos. Ninguém será julgado simplesmente pelos padrões da sua cultura.[1] Aliás, os valores de uma comunidade são expressos eu suas instituições e práticas.

Aqui não há nenhum tipo de relativismo[2] e subjetivismo.[3] A Lei de Deus permanece extensiva e permanentemente: sobre todos os povos e para sempre.  

                    Boice (1938-2000) resume:

Quando perguntamos o que é certo, o que é moral, respondemos à questão não apelando para algum padrão moral independente, como se pudesse haver um padrão para qualquer coisa separado de Deus, e sim apelando para a vontade e natureza do próprio Deus. O certo é o que Deus é e revela para nós.[4]

          “O Senhor (hwhy) (Yehovah) julga os povos” (Sl 7.8). Deus julga a todos os povos porque, na realidade, todo o universo, toda a criação, visível e invisível, lhe pertencem e estão sob a sua preservação, cuidado e senhorio. Deus não é indiferente à sua criação. Deus não está ocioso nem inerte.[5]

          O juízo de Deus é universal. Ele é independente. O seu juízo não é uma pretensão megalomaníaca, antes, é a manifestação santa e justa de seu governo. Ele é o Senhor.  Por isso tem autoridade e autonomia para fazê-lo.

          Não há nada no mundo que possa presumir autonomia ou independência em relação a Deus. Tudo pertence a Ele.  Deus é o legítimo proprietário de todas as coisas. 

          Contudo, em alguns momentos, a sucessão dos eventos históricos pode nos deixar perplexos, como aconteceu com o profeta Habacuque (Hc 1 e 2).

          Entretanto, a mão poderosa de Deus rege todos os acontecimentos. Deus dirige a história fazendo com que todas as coisas contribuam para o bem do seu povo, da sua Igreja (Rm 8.28). O propósito de Deus é que cada vez mais nos assemelhemos a Cristo.

          Lloyd-Jones (1899-1981) interpreta:

Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por Ele controlado. (…) Deus é o Senhor da história. (…) Ele começou o processo histórico, controla-o, e por-lhe-á um fim. Jamais devemos perder de vista este fato decisivo.[6]

          O salmista inspirado por Deus afirma que Deus “administra (julga) os povos com retidão” (Sl 9.8).

          Bavinck escreve de modo esclarecedor e confortador:

A doutrina da providência não é um sistema filosófico, mas uma confissão de fé, a confissão de que, apesar das aparências, nem Satanás, nem  o ser humano, nem qualquer outra criatura, mas somente Deus – mediante seu poder Todo-Poderoso e presente em toda parte – preserva e governa todas as coisas. Essa confissão pode nos salvar tanto de um otimismo superficial que nega os mistérios da vida quanto de um pessimismo arrogante que se desespera deste mundo e do destino humano.[7]

          Ele tem o controle de todas as coisas. É o Senhor não só de Israel, mas, também, de todos os povos. E como não poderia deixar de ser, o controle universal de Deus é com retidão. Isso indica que um dos aspectos de sua soberania ligado diretamente a nós, é o seu soberano e bondoso governo sobre a história.

          O juízo de Deus está sobre todas as esferas, tanto na forma de amplitude (extensividade) como de intensidade (profundidade). (Sl 130).

          “Como grande Rei, o Senhor serve como o tribunal de apelação em questões civis para todos os oprimidos, isto, não somente para os oprimidos de Israel”, interpreta Bosma.[8]

          Nada lhe é estranho ou indiferente. O sofrimento de seu povo não lhe passa desapercebido ou alheio ao seu santo controle.

          Nessa certeza o salmista se conforta: “Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente” (Sl 9.18/Sl 10.12-18).

          No alegre e agradecido cântico de Ana, há a declaração do governo de Deus sobre “as extremidades da Terra”: “Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga (!yD) (diyn)as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2.10).

          A Palavra enfatiza o domínio de Deus sobre todos os povos; todas as nações da Terra. Por isso, podemos dizer com o salmista:  “Ele julga (!yD) (diyn) entre as nações” (Sl 110.6). O juízo pertence a Ele como Senhor de toda terra: “Ele mesmo julga o mundo” (Sl 9.8).

          Deus exerce ativamente o seu poder sobre o mundo e os homens, dirigindo a História para a realização do seu propósito eterno. O salmista, nessa certeza, louva ao Senhor: “Ele é o SENHOR, nosso Deus; os seus juízos permeiam toda a terra” (Sl 105.7).

São Paulo, 07 de fevereiro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Deus não julga nem redime as culturas que são corrompidas por causa dos indivíduos que as criaram. Ao contrário, Ele julga os indivíduos por sua natureza pecaminosa particular”  (Grant Horner, Glorificando a Deus na Cultura Literária e Artística. In: John  F. MacArthur, Jr., ed. et. al. Pense Biblicamente!: Recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005,p. 504).

[2]Para o relativismo ético ou convencionalismo, os conceitos considerados verdadeiros são produtos dos valores de uma época, de uma cultura, de um povo. Assim, toda verdade é relativa às crenças de uma sociedade, época, grupo ou cultura. Deste modo, não existe um código moral universalmente válido, antes, há uma infinidade de códigos com reivindicações semelhantes. A questão, portanto, não é quanto à existência de um código moral, antes, a sua validade universal. Como se pode perceber, o relativismo sempre é contraditório. Como firmar padrões sem premissas que os fundamentem? (Para uma descrição dos tipos de relativismos, vejam-se: David B. Wong, Relativismo Moral: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 2, p. 490-496; J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 498ss. Uma visão erudita e bem humorada do relativismo cultural mostrando a sua realidade, limites e incompreensões de seus acusadores, encontramos em: Clifford Geertz, Nova Luz Sobre a Antropologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 47-67. Para uma avaliação cristã, vejam-se os artigos: Relativismo, Relativismo Cultural e Relativismo Ético. In: Carl Henry, org., Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 507-514; Verdade, natureza da: Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 864-867 (especialmente); John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 133-166.

[3] Para o subjetivismo, a validade da verdade está limitada ao sujeito que conhece e julga. Desta forma, não podemos falar de uma realidade idêntica para todo o ser humano. Toda certeza é pessoal, visto que toda a verdade é subjetiva.

[4] James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos,  Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112.

[5] “Deus nunca está ocioso. Ele nunca está passivamente presente, como mero espectador” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 617). Veja-se: Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133.

[6] D. Martyn Lloyd Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 21.

[7] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 631

[8] Carl J. Bosma, Os Salmos: Porta de Entrada para as Nações. Aspectos da base teológica e prática missionária no Livro dos Salmos, São Paulo: Fôlego, 2009, p. 35.

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