Teologia da Evangelização (32)

2.4.3.2.2.2.3. Vocação eficaz: Da eternidade para eternidade em santidade

O chamado de Deus é eficaz porque ele é completo no seu propósito: “Que nos salvou e nos chamou (kale/w) com santa vocação (klh=sij);[1] não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9). (Rm 8.30; Gl 1.15).[2]

            Na Igreja de Deus, constituída de todos os seus servos, judeus e gentios, vemos aspectos da riqueza da glória dele em misericórdia como escreve o Apóstolo:

23 A fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, 24 os quais somos nós, a quem também chamou (kale/w), não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? 25 Assim como também diz em Oséias: Chamarei (kale/w) povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada; 26 e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo, ali mesmo serão chamados (kale/w) filhos do Deus vivo. (Rm 9.23-26).

            Deus nos atrai para si, visto que ele “…. nos chamou (kale/w) para a sua própria glória e virtude” (2Pe 1.3); à comunhão de seu Filho e à “koinonia” da igreja (1Co 1.26; Ef 4.1; Cl 3.15): “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados (kale/w) à comunhão (koinwni/a) de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9).

            A nossa vocação não tem nada em si mesma que possa motivar o nosso orgulho já que o próprio Senhor diz: “….Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar (kale/w) justos, e sim pecadores” (Mc 2.17). Somos chamados na “graça de Cristo” (Gl 1.6).

À vaidosa igreja de Corinto, Paulo é bastante enfático: “Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação (klh=sij); visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento” (1Co 1.26).

Na vocação de Deus vemos parcialmente a concretização do seu propósito sábio, amoroso e eterno que envolve toda a nossa existência.

Deus nos chama fazendo com que o seu gracioso propósito eterno passe a fazer parte da experiência do regenerado. A predestinação é oculta, porém, os seus frutos são experienciáveis de forma natural e demonstrativa:

Nele [Jesus Cristo], digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados (proori/zw) segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. (Ef 1.11).

Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou (proori/zw) para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou (proori/zw) esses também chamou (kale/w) e aos que chamou (kale/w), a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. (Rm 8.29-30).

            A vocação de Deus permanece e nos sustenta até o fim (Fp 1.6).[3] A glória de Deus se manifesta na constituição da igreja, na reunião de seu povo redimido. Portanto, tanto o nosso chamado como a progressividade de nossa salvação devem estar subordinados à glória de Deus. Paulo e Pedro enfatizam:

Devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu (ai(re/omai) desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou (kale/w) mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo. (2Ts 2.13-14).

O Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou (kale/w) à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar. (1Pe 5.10). (Ver: 1Ts 2.12).

 Deus nos chama para a sua glória. Nada se compara a isso. Somos peregrinos, estrangeiros e hóspedes neste mundo.[4] Não há destinação mais nobre e sublime. Somos chamados à glória de Cristo.

            Precisamos cultivar em nossa mente o refletir sobre a glória eterna de Deus, sobre a nossa futura e gloriosa habitação com o Senhor, onde não haverá choro nem tristeza.

A glória será contemplar o Senhor Deus na face de Cristo usufruindo de sua perfeita comunhão para sempre. (Cl 3.1-4/Ef 2.6-7). A glória do céu para nós é estar com Cristo.[5] A nossa felicidade só será real e, portanto, eterna, se tivermos a Deus como sua fonte e alegria.[6] Quem vive em busca de alegria nunca a encontrará, mas, os que buscam a santidade,  a encontrarão no Espírito, que nos santifica, a sua fonte.[7]

Packer (1926-2020), proeminente teólogo contemporâneo, escreveu com profunda sensibilidade bíblica e experiencial: “Não importa quão velhos ou doentes estejamos, os pensamentos no que se refere a nosso futuro com Jesus trarão coragem e alegria ao nosso coração. Jesus mesmo, de seu trono, fará que isso aconteça”.[8]

O fato meus irmãos é que não há nada mais nobre ou grandioso do que isso, nem aqui, nem na eternidade. A nossa salvação não é o fim último. Ela é o meio: somos destinados desde a eternidade à glória de Deus. Calvino resume: “Concordo que a glória de Deus deve estar, para nós, acima de nossa salvação….”.[9] Em nosso chamado salvador, vemos a glória da graça de Deus. “Somente pela graça”, é outra forma de dizer: toda glória pertence a Deus![10]

            Henry (1662-1714), comentando o Salmo 17, escreveu:

A felicidade no mundo vindouro está preparada somente para os que são justificados e santificados. (…) Não existe satisfação para uma alma, a não ser em Deus e em sua boa vontade para conosco; porém, esta satisfação não será perfeita até que cheguemos ao céu”.[11]

            Considerando que foi Deus mesmo quem nos chamou (vocacionou) (Fp 3.14; 2Tm 1.9; Hb 3.1; 2Pe 1.10), devemos instar com nossos irmãos e, interceder junto ao Senhor para que Ele torne nossos irmãos dignos dessa vocação. Este foi o procedimento de Paulo em contextos diferentes: “Rogo-vos (parakale/w),[12] pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno (a)cio/w)[13] da vocação (klh=sij) a que fostes chamados” (Ef 4.1). “….não cessamos de orar por vós, para que o nosso Deus vos torne dignos (a)cio/w) da sua vocação (klh=sij) e cumpra com poder todo propósito de bondade e obra de fé” (2Ts 1.11).

            Alegremo-nos na doce, graciosa e gloriosa condição de filhos de Deus. O Pai nos chamou a este privilégio: “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados (kale/w) filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus….” (1Jo 3.1).[14]

            Vivemos sob a égide do envelhecimento e morte.A morte é uma consequência de todo organismo material e, portanto, do ser humano. A morte faz parte da vida; acostumamo-nos com isso.

            Na enfermidade e perseguição parece que esta realidade se configura com maior evidência trazendo maiores consequências para o nosso coração. A consciência certeira da morte, por mais que a queiramos ignorar, nos mantém cativos em nossa angústia, marcada pelo senso de limite e finitude.

            Pedro como ser humano e pastor, lida com estas questões. Ele considera a alegria da vocação de Deus a despeito das tristezas circunstanciais de nossa existência ou, resultantes de nossa fidelidade à vocação celestial.

            A sua certeza é que o Deus que nos chama, também nos preserva e sustenta nos conduzindo ao seu Reino celestial. Tendo isso em vista, escreve às igrejas perseguidas, duramente provadas (1Pe 4.12-19),[15] trazendo um consolo escatológico. Ele as conforta com a certeza de uma herança pura, que não murcha e é eterna, concedida e preservada por Deus para a sua Igreja.

3 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, 4 para uma herança (klhronomi/a) incorruptível (a)/fqartoj = imortal),[16] sem mácula (a)mi/atoj = puro, incontaminado),[17] imarcescível (a)ma/rantoj),[18] reservada nos céus para vós outros 5 que sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo. 6 Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, 7 para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo; 8 a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória, 9 obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma” (1Pe 1.3-9).

A vocação de Deus é para a vida eterna. Deus não frustra os seus propósitos independentemente dos inimigos de nossa alma. Precisamos aprender a confiar e descansar nas promessas de Deus.

             A vocação de Deus é perfeita e para um alvo perfeito. Estamos nas mãos de Deus. Confiemos nele e, deste modo, no caminho que Ele mesmo nos propõe.Pedro, portanto, estimula a Igreja perseguida trazendo à lembrança a certeza de que Deus, Deus mesmo tem preservado (guardado) para os seus uma herança maravilhosa que ultrapassa em muito a nossa capacidade de exaustiva percepção (Ef 3.20).[19]

 São Paulo, 05 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] *Rm 11.29; 1Co 1.26; 7.20; Ef 1.18; 4.1,4; Fp 3.14; 2Ts 1.11; 2Tm 1.9; Hb 3.1; 2Pe 1.10.

[2]“Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou (kale/w) pela sua graça, aprouve” (Gl 1.15).

[3]Veja-se: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 20.

[4] “….os filhos de Deus, onde quer que estejam, não passam de hóspedes deste mundo. De fato, no primeiro sentido ele (Pedro), no início da Epístola, os chama de peregrinos, como transparece do contexto; aqui, porém, o que ele diz é comum a todos eles. Pois as concupiscências da carne nos mantêm enredados quando em nossa mente permanecemos no mundo e cremos que o céu não é nossa pátria; mas quando vivemos como forasteiros ao longo desta vida, não vivemos escravizados à carne” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 22, (1Pe 2.11), p. 78). “Somos estrangeiros e peregrinos neste mundo, (…) não possuímos morada fixa senão no céu. Portanto, sempre que formos expulsos de algum lugar, ou alguma mudança no suceder, tenhamos em mente, segundo as palavras do apóstolo aqui, que não temos lugar definido sobre a terra, porquanto nossa herança é o céu; e quando formos cada vez mais provados, então nos preparemos para nossa meta final. Os que desfrutam de uma vida tranquila, comumente imaginam que possuem para si um repouso neste mundo. Portanto é bom que nós, que somos inclinados a esse gênero de pândega, que somos constantemente levados de um a outro lado, tão propensos à contemplação das coisas aqui de baixo, aprendamos a volver sempre nossos olhos para o céu” (João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Edições Paracletos, 1997, (Hb 13.14), p. 391-392). Veja-se também: D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 367.

[5] Vejam-se: Sam Storms, Com um pé levantado: Calvino, a glória da ressurreição final e o céu: In: John Piper; David Mathis, Com Calvino no teatro de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 93-110 (http://www.desiringgod.org/messages/the-final-act-in-the-theater-of-god) (visto em 13.04.2021); J.I. Packer, Força na fraqueza: vencendo no poder de Cristo, São Paulo: Vida Nova, 2015.

[6] Vejam-se: John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 128; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 16.11), p. 324).

[7] Veja-se: J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 30.  

[8] J.I. Packer, Força na fraqueza: vencendo no poder de Cristo, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 102.

[9]J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.2), p. 301.

[10] Vejam-se: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 449; D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 125, 127.

[11]Matthew Henry, Comentário Bíblico de Matthew Henry, 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, (Sl 17), p. 409.

[12]O verbo tem o sentido de: implorar (Mt 8.5; 18.29), suplicar (Mt 18.32); exortar (Lc 3.18; At 2.40; 11.23); conciliar (Lc 15.28); consolar (Lc 16.25; 15.32; 1Ts 5.11; 2Ts 2.17); confortar (At 16.40; 2Co 1.4; 7.6); contemplar (2Co 1.4); convidar (At 8.31); pedir (At 9.38; 1Co 4.13; 16.15); pedir desculpas (At 16.39); fortalecer (At 20.2,12); solicitar (At 25.2; Fm 9,10); chamar (At 28.20); admoestar (1Co 4.16; Hb 10.25); recomendar (1Co 16.12; 2Co 8.6; 9.5; 1Tm 6.2).

            O apelo de Paulo era frequentemente fundamentado numa questão teológica; não se amparava simplesmente em sua idoneidade ou autoridade, antes em Deus mesmo. Assim ele o faz pelas misericórdias de Deus (Rm 12.1; 1Ts 2.12) e pelo Senhor Jesus (Rm 15.30; 1Co 1.10; Fp 4.2). Como cooperador de Deus exorta a que os coríntios não recebam em vão a graça de Deus (2Co 6.1); roga também pela mansidão e benignidade de Cristo (2Co 10.1).

[13] Este advérbio tem o sentido primário de “contrabalança”, aquilo que é de “igual valor”, “equivalente”. A ideia da palavra é a de estabelecer uma relação de compatibilidade e equilíbrio.

[14] Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, 2. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 83.

[15]12 Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo; 13 pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. 14 Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus. 15 Não sofra, porém, nenhum de vós como assassino, ou ladrão, ou malfeitor, ou como quem se intromete em negócios de outrem; 16 mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome. 17 Porque a ocasião de começar o juízo pela casa de Deus é chegada; ora, se primeiro vem por nós, qual será o fim daqueles que não obedecem ao evangelho de Deus? 18 E, se é com dificuldade que o justo é salvo, onde vai comparecer o ímpio, sim, o pecador? 19 Por isso, também os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a sua alma ao fiel Criador, na prática do bem” (1Pe 4.12-19).

[16] * Rm 1.23; 1Co 9.25; 15.52; 1Tm 1.17; 1Pe 1.4,23; 3.4.

[17] *Hb 7.26; 13.4; Tg 1.27; 1Pe 1.4.

[18] *1Pe 1.4.

[19]“Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós” (Ef 3.20).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *