Teologia da Evangelização (30)

2.4.3.2.2.2.2. O privilégio e a responsabilidade dos que pregam

Ainda que Deus seja soberano no uso de seus meios para atingir o coração do homem o chamando eficazmente, Ele opera ordinariamente por meio da pregação da Palavra. Somos instrumentos externos por meios dos quais Deus age, tornando, pelo Espírito, a Palavra anunciada em algo penetrante e transformador do coração humano.[1] A semente que plantamos só terá vida e crescimento por meio da graça operante de Deus (1Co 3.5-7).[2] Não temos poder para gerar ou transformar vida.

É isso que Paulo demonstra aos imaturos coríntios que conferiam um valor idólatra e, ao mesmo tempo, discriminatório, aos seus pastores:

5 Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. 6 Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. 7 De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento. (1Co 3.5-7).

            É fato que Deus utiliza-se de seus servos, mas, o segredo da vida da Igreja está em Deus.[3] A nossa vocação é para o serviço de Deus entre os homens, contudo, o senhor da vocação é o senhor da vida, o senhor de sua igreja, comenta Hendriksen:

Deus pode utilizar instrumentos humanos para levar aos homens sua mensagem de verdade e amor; porém somente Ele é o que desperta os corações dos homens para uma nova vida. Como somente Ele criou o coração, somente Ele pode recriá-lo.[4]

             Percebamos então a grandeza do Evangelho, a responsabilidade e a necessidade de humildade daquele que o proclama. Deus como Autor do Evangelho e da pregação, deseja falar e ser ouvido por intermédio de seus servos. Ele amorosamente fala nos atraindo para si:

            A igreja deve ter sensibilidade para com isso. Por intermédio da pregação fiel, é Deus mesmo quem fala, conforme enfatiza Calvino em lugares diferentes:

Isso deve acrescer em grande medida o nosso respeito pelo Evangelho, visto que devemos pensar dele não tanto em virtude dos homens, propriamente ditos, mas de Cristo mesmo, falando por meio dos lábios deles. Ao mesmo tempo quando prometeu que declararia o Nome de Deus aos homens, havia deixado de estar no mundo; e, todavia, não se desincumbira desse ofício em vão. E na verdade Ele o tem cumprido através de seus discípulos.[5]

Assim que ouvimos o Evangelho pregado pelos homens, devemos considerar que não é propriamente eles quem falam, mas é Cristo quem fala por meio deles. E essa é uma vantagem singular, a saber, que Cristo amorosamente nos atrai para si por meio de sua própria voz, para que de forma alguma duvidemos da majestade de Seu reino.[6]

            Deste modo, rejeitar a mensagem é o mesmo que rejeitar a Deus, o seu Autor (1Ts 2.13-14; 4.8); ela deve ser entendida como a Palavra de Deus para nós.[7]

            O pregador, portanto, leal ao seu Senhor, torna-se servo do texto, sem nada acrescentar ou diminuir. Não podemos tornar o texto em mero pretexto para expor nossas opiniões e conceitos, valendo-nos do texto apenas para conferir certa autoridade às nossas ideias.[8]

            A convocação é de Deus, não nossa. A autoridade de quem prega é decorrente da Palavra de Deus. “Sendo verdadeiro para com a Palavra pura, ele [Ministro] é tudo; sem ela, é nada. Essa é a responsabilidade do pregador”, afirma Kuyper.[9]

            Lawson enfatiza:

É importante reconhecer que, em última análise, a resposta dos ouvintes a uma mensagem reflete a atitude deles para com aquele que enviou a mensagem e não para com o próprio mensageiro. Sob nenhuma circunstância, um arauto pode mudar a sua mensagem para conseguir uma resposta melhor. Ele também não pode negociar a mensagem para torná-la mais agradável.[10]

            A igreja é alimentada pela Palavra. As nossas teorias, por mais em moda que estejam e, por mais bem aceitas que sejam em nosso grupo social ou clube de amigos devotos, jamais poderão ocupar o lugar da Palavra. Esta prática, infelizmente não rara, denota com frequência, a perda de confiança na autoridade e suficiência bíblica.[11]

Quando um pregador deixa de pregar as Escrituras, perde sua autoridade. Já não confronta seus ouvintes com uma palavra da parte de Deus, mas meramente com outra palavra, da parte dos homens. Logo, a maior parte da pregação moderna evoca pouco mais do que bocejos profundos, Deus não está nela, interpreta Robinson.[12]

            Por isso, insistimos, nos valendo das palavras de Mohler: “Se somos servos da Palavra, nossa pregação deve ser verdadeiramente expositiva”.[13]

            O pregador proclama a Palavra de Deus. Para que isto seja feito com fidelidade, é necessária uma interpretação cuidadosa do texto Bíblico, considerando o seu contexto, uma exegese bem-feita, a fim de que ensinemos com fidelidade o que o texto diz.

            O texto não pode ser um “passaporte” para as nossas ideias ou um estranho ao qual fomos apresentados e, que talvez, em algum momento nos encontremos durante a nossa pregação. Ao contrário disso, o sermão parte do texto. É preciso cultivar a honestidade para com o texto respeitando-o dentro do seu contexto.[14]

            Não pode haver fidelidade textual desconsiderando o contexto. Senão, no mínimo haverá o empobrecimento do texto.

            Portanto, devemos permanecer fiéis a ele. Somos servos do texto,[15] “ministros da Palavra”,[16] não o seu senhor. Por mais brilhantes, emocionantes e persuasivos que sejam nossos discursos, eles continuam sendo palavra de homem. O critério de avaliação do que ensinamos deve ser sempre a poderosa e viva Palavra de Deus. Isso nos basta.

            Deus chama eficazmente e transforma pecadores por meio de sua Palavra, não por intermédio de nosso discurso. “O pregador deve servir ao texto, pois se a Palavra é a presença mediadora de Cristo, o serviço é devido”, comenta Chapell.[17] O pregador só será relevante para a igreja, sendo seu servo. Mas, só se pode ser servo da igreja, enquanto pregador, quando nos tornamos servos do texto.

São Paulo, 05 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1]Como diz Bavinck, “independente do real poder e mérito dessa vocação externa, ela não é suficiente para mudar o coração do homem e efetivamente movê-lo à aceitação do Evangelho” (Hermann Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 458).

[2]Veja-se: Joel R. Beeke, Vivendo para a Glória de Deus: Uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012 (reimpressão), p. 130.

[3]“Portanto, mesmo que o cuidado do agricultor não seja ineficiente, e a semente que ele semeia não seja improdutiva, contudo, é tão somente pela bênção de Deus que se torna produtiva” (J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.6), p. 103).

[4] William Barclay, 1 y 2 Corintios, Buenos Aires: La Aurora, 1973, p. 43.

[5]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.11), p. 68.

[6]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 2.7), p. 67. “O cristianismo é, essencialmente, uma religião da Palavra de Deus. Nenhuma tentativa de entender o cristianismo pode ser bem sucedida se deixa despercebida o nega a verdade de que o Deus vivo tomou a iniciativa de se revelar de modo salvífico à humanidade caída; ou que a Sua revelação de Si mesmo foi dada pelo meio mais direto de comunicação que nos é conhecido, a saber, por uma palavra ou palavras; ou que conclama aos que escutaram Sua Palavra a transmiti-la aos outros” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 15).

[7] Veja-se: J. Calvino, As Institutas, I.9.3. “Quando os homens falam, não o devem fazer em seus próprios nomes, nem formular nada que seja de sua vã imaginação e de seu cérebro, mas têm que fielmente apresentar aquilo que Deus lhes determinou e deu em incumbência. (…) Se alguém se introduz para falar no próprio nome, nada há nesse, senão precipitação, pois toma sobre si o que pertence a Deus somente” (João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 25).

[8] “Pregadores são chamados a pregar a Palavra de Deus sem filtrá-la por noções politicamente corretas, sem diluí-las às ideias do próprio pregador e sem adaptá-las ao espírito de uma geração” (John F. MacArthur Jr., Porque ainda prego a Bíblia após quarenta anos de ministério: In: Albert Mohler, et. al., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 132).

[9]Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 357.

[10]Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 70.

[11] “Muitos pregadores comprometem a sua vocação e se voltam às expectativas da cultura, por causa da perda de confiança nas Escrituras, da preocupação com as batalhas erradas e uma horrível falta de modelos excelentes” (Alistair Begg, Pregando para a Glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014, p. 25).

[12] Haddon W. Robinson, A pregação bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 14-15.

[13] R. Albert Mohler, Jr., A Primazia da Pregação: In: R. Albert Mohler, Jr., et. al. Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 31.

[14] Ver: D.M. LLoyd-Jones, Pregação & Pregadores, São Paulo: Fiel, 1984,p. 145-146.

[15] Ver: Walter L. Liefeld, Exposição do Novo Testamento: do texto ao sermão, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 14.

[16]Sidney Greidanus, O pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando literatura bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 28.

[17]Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã,2002, p. 20.

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