Teologia da Evangelização (25)

2.4.3.2.1. Causalidade amorosa: Graça e Paz

                        “Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (Ef 1.2). Esta é uma saudação comum de Paulo em suas epístolas: “graça” (xa/rij) e “paz” (ei)rh/nh). Sem dúvida não há início melhor. Começamos sempre pela graça. A paz com Deus só é possível pela graça. Aqui temos a essência do Cristianismo.[1] É impossível haver paz sem a consciência de nossa restauração à comunhão com Deus, removendo assim toda a culpa do pecado e o medo da punição divina.[2]

            Watson (c. 1620-1686) exulta: “A paz pode suavizar todas as nossas aflições e transformar nosso fel em vinho. Quão feliz é uma pessoa justificada que tem o poder de Deus para guardá-la e a paz de Deus para confortá-la”.[3]

            Mas, o que significa graça? Graça pode ser definida como um favor imerecido, manifestado livre e continuamente por Deus aos pecadores que se encontravam em um estado de depravação e miséria espirituais, merecendo o justo castigo pelos seus pecados[4] (Rm 4.4/Rm 11.6; Ef 2.8,9).[5]

            Paulo destaca que a Graça é do Pai e do Senhor Jesus Cristo (Ef 1.2). O nosso Deus é “O Deus de toda graça” (1Pe 5.10). A graça é uma das gloriosas perfeições da Santíssima Trindade: Perfeição do Pai (Cl 1.2); Perfeição do Filho (Rm 16.20; Fm 25; Ap 22.21);[6] Perfeição do Espírito Santo (Hb 10.29). A graça origina-se em Deus mesmo, tornando-se a fonte de todas as suas bênçãos. Deus é gracioso em si mesmo, independentemente, de sua relação conosco. O que Deus manifesta em sua relação com o seu povo, é a expressão exata daquilo que ele é em si mesmo: A graça faz parte da essência de Deus.

            Baudraz está correto, quando diz: “A graça divina não se separa de Deus, mas é uma relação pessoal que Deus estabelece entre si mesmo e os homens: ele os encara com favor e com bondade”.[7] (Vejam-se: Êx 34.6; Nm 14.18-19; 2Sm 7.15; Sl 31.16; 33.22; 42.8).[8] “A doçura da graça”[9] de Deus é a tônica da sua relação com o seu povo.[10] Tudo que temos, somos e seremos, é pela graça (1Co 15.10).[11] A riqueza da graça de Deus se manifesta de modo superabundante em nós (2Co 9.14; Ef 1.7; 2.7). Todavia, ela não foi revelada em toda a sua plenitude, por isso, aguardamos o regresso triunfante de Jesus Cristo, quando ele mesmo revelará a graça de forma mais completa (1Pe 1.13),[12] concluindo a nossa salvação (Fp 1.6/1Pe 1.3-5).

            Tornando ao texto de Efésios, podemos observar que Paulo toma essas duas palavras – Graça (= saúde), que era a saudação dos gregos e, Paz, saudação dos judeus – conferindo um sentido teológico: a paz é resultado da graça de Deus. Notemos que nas saudações de Paulo, ele nunca inverte esta ordem: a paz com Deus é resultado de sua própria graça. Devemos observar, contudo que a paz aqui, deve ser entendida como o equivalente hebraico, {Olf$ (shãlôm), “prosperidade espiritual”.[13] A paz como resultado da graça pressupõe um estado anterior de inimizade. Conforme vimos, o pecado nos colocou em um estado de inimizade, hostilidade e ódio para com Deus: estávamos separados de Deus (Is 59.2).[14] O homem encontrava-se em um estado de rebelião contra Deus (Is 65.2).[15]

            A graça de Deus concretiza-se em Cristo, por meio de seu sacrifício vicário. Paulo diz que ele é a nossa paz:

Em Cristo Jesus, vós [gentios], que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz (ei)rh/nh), o qual de ambos fez um, e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz (ei)rh/nh), e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz (ei)rh/nh) a vós outros que estáveis longe [gentios] e paz (ei)rh/nh) também aos que estavam perto [judeus]; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. (Ef 2.13-18). (Ver: Cl 1.20-22).[16]

            Paulo nos ensina que em Cristo passamos a ter paz com Deus e também com o nosso próximo. Dentro do propósito imediato de Paulo, ele demonstra que os gentios, distantes das promessas de Israel, e os judeus, agora, têm acesso livre a Deus em Cristo, pelo mesmo e único Espírito.

            Notemos que em tudo isso a iniciativa é de Deus. O Deus Triúno deseja a paz e providencia os meios para isso: “Tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo (…). Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo…” (2Co 5.18,19). “A cruz trouxe a paz, embora não houvesse paz na cruz. Foi uma cena caótica, mas a cruz proporcionou a justiça que, por si só, traz a paz verdadeira”.[17]

            A graça que nos vem por Cristo Jesus propiciou de forma eficaz a nossa reconciliação com Deus conduzindo-nos à paz. Agora, reconciliados com Deus, vivemos em paz, confiando inteiramente em sua promessa. A paz da reconciliação conduz-nos à paz interior e, em todas as nossas relações:[18] “Não há nenhuma paz genuína que seja desfrutada neste mundo senão na atitude repousante nas promessas de Deus. Os que não lançam mão delas podem ser bem sucedidos por algum tempo em abafar ou expulsar os terrores da consciência, mas sempre deixarão de desfrutar do genuíno conforto íntimo”.[19]

            A graça de Deus sempre antecede a paz. Fomos reconciliados com Deus por sua graça. Somos, portanto, agraciados com a paz. “O primeiro e mais importante aspecto desta paz com Deus não é a paz do nosso coração, mas o fato de que Deus está em paz conosco”.[20]

  Maringá, 30 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Lutero comentando Gl 1.3, escreveu: “Esses dois vocábulos, graça e paz, abraçam o cristianismo universal. A graça perdoa o pecado, a paz tranquiliza a consciência (…). Esses dois termos (…) encerram todo o cristianismo. A graça contém o perdão dos pecados e a paz, uma alegre e tranquila consciência. A paz não pode ser adquirida, se o pecado não foi perdoado, pois a lei acusa a consciência e a aterroriza por causa do pecado e o pecado, que a consciência sente, não pode ser removido por peregrinações, vigílias, trabalhos, esforços, jejuns ou quaisquer outras obras. Pelo contrário, o pecado aumenta com as obras, pois quanto mais nos esforçamos e suamos para remover o pecado, tanto mais o cometemos” (Martinho Lutero,  Comentário à Epístola aos Gálatas: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS., Canoas, RS.: Sinodal; Concórdia; Ulbra, 2008, v. 10, (Gl 1.3), p. 48). 

[2] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 182.

[3]Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 268.

[4] Vejam-se outras definições em: A. W. Pink, Os Atributos de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 69; Idem., Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 24; A. Booth, Somente pela Graça,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 31; João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 5.15), p. 193; R. P. Shedd, Andai Nele,São Paulo: ABU., 1979, p. 15; W. Hendriksen, 1 y 2 Timoteo/Tito,Grand Rapids, Michigan: S.L.C., 1979, (Tt 2.11), p. 419; L. Berkhof, Teologia Sistemática,p. 74; W. Barclay, El Pensamiento de San Pablo,Buenos Aires: La Aurora, 1978, p. 154; L. Boettner, Predestinación,Grand Rapids, Michigan: S.L.C., [s.d.],p. 258; D. M. Lloyd-Jones, Por que Prosperam os Ímpios,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1983, p. 103; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 120; Tom Wells, Fé: Dom de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 101; Samuel Falcão, Predestinação,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981,p.100-101; James Moffatt, Grace in the New Testament,New York: Ray Long & Richard R. Smith. Ind., 1932, p. 5; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 146, 147; John Gill, “A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity,The Collected Writings of: John Gill,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 2000), I.13, p. 195-196; John MacArthur, O evangelho Segundo os apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 72.

[5]“Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida” (Rm 4.4). “E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). 8Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8,9).

[6] Em 2Ts 1.2, a palavra “Graça” é associada a Deus e a Jesus Cristo.

[7] F. Baudraz, Graça: In: J. J. Von Allmen, dir.Vocabulário Bíblico, 2. ed.São Paulo: ASTE., 1972, p. 157-158.

[8] Em todos esses textos, a palavra hebraica usada é iHeisedh.

[9] Cf. João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 6.1), p. 125.

[10] Packer diz que “graça” é “a palavra-chave do cristianismo” (J. I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP. Fiel, 1994, p. 85).

[11] Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo” (1Co 15.10).

[12]Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo” (1Pe 1.13).

[13]Shãlôm, que ocorre certa de 250 vezes no Antigo Testamento, tem o sentido de: “inteireza, integridade, harmonia e realização”. Na forma de saudação, podemos observar que, desejar shãlôm é o mesmo que abençoar (2Sm 15.27); retê-lo, equivale a amaldiçoar (1Rs 2.6). “Shalõm realmente significa tudo quando contribui para o bem do homem, tudo que faz com que a vida seja verdadeiramente vida” (William Barclay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito,São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 82-83). No entanto, o principal sentido da palavra está relacionado à atividade de Deus na aliança da graça: “Em quase dois terços de suas ocorrências, shãlôm descreve o estado de plenitude e realização, que é resultado da presença de Deus” (Garry G. Lloyd, Shãlêm: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1573). A origem desta paz está em Deus mesmo.

[14] “…. as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2).

[15] “Estendi as mãos todo dia a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, seguindo os seus próprios pensamentos” (Is 65.2).

[16]20 E que, havendo feito a paz (*ei)rhnopoiew) pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. 21 E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, 22 agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis” (Cl 1.20-22). (* Este verbo só ocorre aqui).

[17]John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 157.

[18]  Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 40.

[19] João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 51.8-9), p. 436.

[20] Francis A. Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo: A verdade de Romanos 1-8, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 123.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *