O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (13)

B. Uma proclamação poderosamente submissa e inteligente

A proclamação do Evangelho compete a nós; é uma responsabilidade inalienável e essencial de toda a Igreja.[1] Não compreendemos exaustivamente a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, contudo, a Bíblia ensina estas duas verdades: Deus é soberano e o homem é responsável diante de Deus por suas decisões (Rm 1.18-2.16).[2] O nosso confronto com os mistérios da Palavra deve nos conduzir à adoração sincera (Rm 11.33-36).

Em nosso testemunho, procuramos anunciar o Evangelho de forma inteligível, nos dirigindo a seres racionais a fim de que entendam a mensagem e creiam. Por isso, ao mesmo tempo em que sabemos que é Deus quem converte o pecador, devemos usar os recursos de que dispomos – que não contrariem a Palavra de Deus -, para atingir a todos os homens.

A nossa proclamação deve ser apaixonada, no sentido de que queremos alertar os homens para a realidade do Evangelho, “persuadindo-os” pelo Espírito, a se arrependerem de seus pecados e a se voltarem para Deus (Vejam-se: Lc 5.10; Rm 11.13-14; 1Co 9.19-23; 2Co 5.11)[3].[4]

Cremos que o Espírito da verdade nos capacita a proclamar o Evangelho com fidelidade e sabedoria. Evangelizar não é um exercício de aniquilamento da razão, antes é um desafio à utilização de uma mente sã, que só pode ser restaurada pelo poder do Espírito. Toda verdade procede de Deus e, o Espírito de Deus nos concede este discernimento na compreensão e no uso da verdade. “O Espírito Santo é o Espírito da verdade, que se importa com a verdade, ensina a verdade e dá testemunho da verdade”, enfatiza Stott.[5]

O Livro de Atos registra que Paulo por três semanas pregou, conforme seu costume, na sinagoga de Tessalônica.

Lucas usa alguns termos muito interessantes para descrever a pregação de Paulo:

Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw) e demonstrando (parati/qhmi) ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres, (At 17.1-4).

Analisemos os verbos usados por Lucas:

     a) “Arrazoar”(diale/gomai).[6] No grego clássico a palavra tinha o emprego usual de “conversar” ou “discutir”. (Ver: Mc 9.34). A partir de Sócrates (469-399 a.C.) passou a ser usada com o sentido de persuasão por meio de perguntas e respostas. Em Aristóteles (384-322 a.C.), tem o sentido de investigação dos fundamentos últimos do conhecimento.[7] Daí o sentido de argumentar, conduzir uma discussão e discursar, envolvendo sempre a ideia de estímulo intelectual por intermédio do intercâmbio de  ideias.[8] Enfim, envolvia uma argumentação com o fim de persuadir, sendo permitida à congregação fazer perguntas.[9]

     Paulo, portanto, passou três semanas fazendo perguntas, ouvindo indagações, respondendo, argumentando com respeito ao Antigo Testamento e à Pessoa de Cristo. A pregação do Evangelho envolve raciocínios e argumentos. Lucas registra também que em Corinto: “Todos os sábados [Paulo] discorria (diale/gomai)na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos” (At 18.4). Este era o método habitual de Paulo. Ele usou do mesmo recurso na sinagoga de Tessalônica (At 17.2);[10] na sinagoga de Atenas e na praça (At 17.17);[11] na sinagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10),[12] na igreja em Trôade (At 20.7,9)[13] e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).[14]

     b) “Expor”(dianoi/gw).[15] “Abrir completamente”. Tem o sentido figurado de “explanar” e “interpretar”. Ou seja: pelo Espírito, a exposição de Paulo tornava a mensagem compreensível, “abria o significado” do texto, evidenciado a sua aplicabilidade ao contexto de seus ouvintes (Cf. Lc 24.31-32).[16] As pessoas poderiam não crer no que foi proclamado; contudo, não poderiam alegar falta de compreensão.

     c) “Demonstrar”(parati/qhmi).[17] “Colocar ao lado”, “colocar diante de”. Figuradamente tem o sentido de apresentar evidências; ou seja, provar com passagens bíblicas a veracidade de seu argumento. “Citar para provar”, “demonstrar”. Ou seja: Paulo argumentava biblicamente o que ensinava, demonstrando, por exemplo, o cumprimento das profecias em Cristo e, ao mesmo tempo, confrontava as teses de seus oponentes com textos bíblicos.

     d) “Persuadir” (pei/qw), que significa convencer despertando a confiança de alguém sobre o quê foi persuadido, “dar crédito” (At 27.11). Lucas também registra que alguns dos judeus e numerosa multidão de gregos – homens e mulheres distintas –, “foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas” (At 17.4). Paulo esforçava-se por persuadir os seus ouvintes a respeito do Evangelho (At 13.43; 18.4;19.8,26; 26.28; 28.23-24; 2Co 5.11).[18]

     Becker argumenta: “Paulo não procurava dar origem à fé no Deus único e, sim, persuadir os ouvintes quanto à graça que acabava de ser dada por meio de Cristo”.[19] Seus ouvintes não seriam levados à fé simplesmente pela sabedoria humana. No entanto, devemos estar conscientes que a proclamação não exclui de forma alguma a nossa razão..[20]

São Paulo, 12 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


[1] “A evangelização é a inalienável responsabilidade de toda comunidade cristã, bem como de todo indivíduo crente” (J.I. Packer, Evangelização e soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 21).

[2] Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 16-27; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 27.

[3]“….Disse Jesus a Simão: Não temas; doravante serás pescador de homens” (Lc 5.10). “Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se, de algum modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles” (Rm 11.13-14). “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1Co 9.19-23). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11).

[4] Veja-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 36-37.

[5] John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: um apelo à Unidade, Curitiba, PR.; São Paulo, SP.: Encontro; ABU., 2000, p. 130.

[6] A palavra tem o sentido de “dissertar” (At 17.17; 19.8; 24.25); “discorrer” (At 18.4; 19.9; Hb 12.5); “pregar” (At 18.19); “exortar” (At 20.7); “discursar” (At 20.9); “discutir” (At 24.12); “disputar” (Jd 9).

[7]Ver: Gottlob Schrenk, diale/gomai: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v.  2, p. 93.

[8]Cf. A.T. Robertson, “Word Pictures in the New Testament, Vol. 3 – Acts,” The Master Christian Library, (CD-ROM), Version 8 (Rio, Wi: Ages Software, 2000),in loc.

[9]Cf. D. Furst, Pensar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo dicionário internacional de Teologia do Novo Testamento, v.  3, p. 515.

[10] “Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com (diale/gomai) eles acerca das Escrituras” (At 17.2).

[11]“Por isso, dissertava (diale/gomai) na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali” (At 17.17).

[12]“Chegados a Éfeso, deixou-os ali; ele, porém, entrando na sinagoga, pregava (diale/gomai) aos judeus” (At 18.19). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando (diale/gomai) e persuadindo com respeito ao reino de Deus. Visto que alguns deles se mostravam empedernidos e descrentes, falando mal do Caminho diante da multidão, Paulo, apartando-se deles, separou os discípulos, passando a discorrer (diale/gomai) diariamente na escola de Tirano. Durou isto por espaço de dois anos, dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a palavra do Senhor, tanto judeus como gregos” (At 18.8-10).

[13]“No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os (diale/gomai) e prolongou o discurso até à meia-noite. (…) Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso (diale/gomai) de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto” (At 20.7,9).

[14]“Dissertando (diale/gomai) ele acerca da justiça, do domínio próprio e do Juízo vindouro, ficou Félix amedrontado e disse: Por agora, podes retirar-te, e, quando eu tiver vagar, chamar-te-ei” (At 24.25).

[15]A palavra tem o sentido de “expor” (Lc 24.32) e, especialmente, de “abrir”: abrir o ventre (Lc 2.23); abrir o céu (At 7.56). No sentido figurado: abrir os ouvidos (Mc 7.34-35); abrir os olhos para que compreenda (Lc 24.31/Gn 3.5,7); abrir o coração (At 16.14); abrir a mente (Lc 24.45).

[16]Comentando At 16.14, onde a mesma palavra é empregada, Stott escreve: “Percebemos que a mensagem era de Paulo, mas a iniciativa salvadora vinha de Deus. A pregação de Paulo não era efetiva em si mesma; o Senhor operava através dela. E a obra do Senhor não era direta em si; Ele preferiu operar por intermédio da pregação de Paulo. Sempre é assim” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da Terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 16.13-15), p. 296).

[17] Significa “propor” (Mt 23.24,31); “distribuir” (Mc 6.41; 8.6-7); oferecer (Lc 10.8; 11.6); confiar (Lc 12.48); entregar (Lc 23.46); encomendar (At 14.23; 20.32; 1Pe 4.19); “pôr diante de” (1Co 10.27); “encarregar” (1Tm 1.18); transmitir (2Tm 2.2).

[18]“Despedida a sinagoga, muitos dos judeus e dos prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé, e estes, falando-lhes, os persuadiam (pei/qw) a perseverar na graça de Deus” (At 13.43). “E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo (pei/qw) tanto judeus como gregos” (At 18.4). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando e persuadindo (pei/qw) com respeito ao reino de Deus” (At 19.8). Demétrio insuflando o povo: “e estais vendo e ouvindo que não só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido (pei/qw) e desencaminhado muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas” (At 19.26). “Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades (pei/qw) a me fazer cristão” (At 26.28). “Havendo-lhe eles marcado um dia, vieram em grande número ao encontro de Paulo na sua própria residência. Então, desde a manhã até à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus, procurando persuadi-los (pei/qw) a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos (pei/qw) pelo que ele dizia; outros, porém, continuaram incrédulos” (At 28.23-24). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos (pei/qw) os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11).

[19]O. Becker, Fé: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 214.

[20] Veja-se o excelente tópico do livro de Stott: John R.W. Stott, Crer é também Pensar, São Paulo: ABU., 1984 (2. impressão), p. 45-51.

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