O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (14)

B. Uma proclamação poderosamente submissa e Inteligente (Continuação)

Mesmo havendo um tipo de linguagem que propiciava a persuasão, Paulo não se valia deste método. Diz aos coríntios: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva (peiqo/j) de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder” (1Co 2.4).

Há sempre o risco de substituir o poder de Deus pela “técnica”, pela capacidade de convencer os nossos ouvintes. Neste caso, substituiríamos o conteúdo pelo sucesso, a soberania de Deus pelo poder de nossos argumentos.[1] É preciso um cuidado especial neste ponto.

Calvino se detém especialmente nesta questão: “Para que possa haver eloquência, devemos estar sempre em alerta a fim de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradação por um brilhantismo forçado e corriqueiro”.[2] A eloquência “é um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino”.[3] A questão está em não usar desses meios como sendo a força do Evangelho, esquecendo-nos de sua simplicidade que é-nos comunicada pelo Espírito.

Continua o reformador em lugares diferentes:

Não devemos condenar, nem rejeitar a classe de eloquência que não almeja cativar cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fúteis, nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em sua vã ostentação.[4]
O Espírito de Deus também possui uma eloquência particularmente sua.[5]  
A eloquência que está em conformidade com o Espírito de Deus não é bombástica nem ostentosa,[6] como também não produz um forte volume de ruídos que equivalem a nada. Antes, ela é genuína e eficaz, e possui muito mais sinceridade do que refinamento.[7]

Paulo recordando aos crentes de Corinto o que lhes havia ensinando, diz: “Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho (eu)angge/llion) que vos anunciei (eu)aggeli/zw)  (…) que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Co 15.1,3).

Notemos que Paulo escrevia à igreja, aos crentes. Não havia um novo Evangelho a ser pregado. Ele precisava apenas ser recordado em seu conteúdo e significado: “venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei”. Na realidade, Paulo estava declarando (lembrando) o Evangelho que já fora evangelizado (anunciado); nada havia a acrescentar e, ao mesmo tempo, a mensagem transmitida não era descartável: permanecia com o mesmo valor e relevância.  Portanto, evangelizar, proclamar as Boas Novas, é um trabalho contínuo. Não se encerra, simplesmente, com o primeiro anúncio:  “venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei”.

Uma característica distintiva do homem é a capacidade de julgar, discernindo o bem do mal.[8] Esta capacidade deve ser exercitada por nós no emprego dos recursos que Deus nos tem fornecido. Dentro da nossa linha de estudo, devemos estar atentos ao uso que fazemos da palavra como instrumento de persuasão. Como ouvintes, devemos também permanecer alerta para que não sejamos persuadidos pela beleza do discurso, sem verificar a sua validade. Resumindo: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (Cl 2.8).

 No Novo Testamento temos diversas orientações sobre isso. Devemos dar crédito à verdade procedente de Deus (1Ts 2.10-13). Contudo, como muitos falsos mestres têm saído pelo mundo, faz-se necessário provar os espíritos.

Precisamos exercitar o ceticismo cristão que não aceita tudo, contudo, não rejeita a procura da verdade:[9]

Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai (dokima/zw)[10]os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve.  Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade (a)lh/qeia) e o espírito do erro.(1Jo 4.1-6).[11]

A verdade não gera mentira: “….mentira alguma jamais procede da verdade (a)lh/qeia) (1Jo 2.21).

O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qualquer ensinamento ou doutrina. Precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido procede ou não de Deus. Para este exame temos as Escrituras Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que ele deseja de nós. Foi assim que a nobre Igreja de Beréia procedeu ao ouvir Paulo e Silas. Ainda que aqueles irmãos  tenham recebido a Palavra com avidez, isto não os impediu de examinar[12] “as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram de fato assim”(At 17.11). “Eles combinavam receptividade com questionamento crítico”.[13]

São Paulo, 12 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


[1] Packer desenvolve este tema de forma pertinente:

            “Se considerarmos que nossa tarefa consiste não simplesmente em apresentar Cristo, mas realmente em produzir convertidos – evangelizando não apenas fielmente, mas também com sucesso – então nossa maneira de evangelizar tornar-se-á pragmática e calculista. Terminaríamos por concluir que nosso equipamento básico, tanto para tratar pessoalmente como para pregar publicamente, deve ser duplo. Precisaríamos possuir não apenas uma compreensão clara do significado e aplicação do evangelho, mas igualmente uma técnica irresistível capaz de induzir os ouvinte a aceitá-lo. Assim sendo, precisaríamos nos esforçar por experimentar e desenvolver tal técnica. E deveríamos avaliar toda evangelização, tanto a nossa como a de outras pessoas, não pelo critério da mensagem pregada, mas também dos resultados visíveis. E, se nossos próprios esforços não estivessem produzindo frutos, concluiríamos que nossa técnica ainda precisa de melhoramentos. E caso estivessem produzindo fruto, concluiríamos que isso justifica a técnica usada. Se assim fosse, deveríamos considerar a evangelização como uma atividade que envolve uma batalha de vontades entre nós mesmos e aqueles para quem pregamos, uma batalha cuja vitória dependeria de havermos detonado uma barragem suficiente de efeitos calculados. Dessa maneira, nossa filosofia de evangelização tornar-se-ia terrivelmente semelhante à filosofia da lavagem cerebral. E já não poderíamos mais argumentar, quando tal semelhança fosse aceita como fato, que essa não é a concepção certa de que seja evangelizar. Pois seria um conceito apropriado de evangelização, se a produção de convertidos fosse responsabilidade nossa.

“Isso nos mostra o perigo de esquecermos as implicações práticas da soberania de Deus” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22-23).

[2]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.13), p. 91.

[3]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 13.1), p. 394.

[4]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55. “Deus quer que sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções humanas. (…) Nesta categoria estão questões especulativas que geralmente fornecem mais para ostentação – ou algum louco desejo – do que para a salvação de homens” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.12), p. 112). “A pregação de Cristo é nua e simples; portanto, não deve ela ser ofuscada por um revestimento dissimulante de verbosidade” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 54). “(A) fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábulas” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.14), p. 320). “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320).

[5] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56.

[6]“Pois ninguém é mais radical do que os mestres desses discursos bombásticos, quando fazem pronunciamentos precipitados sobre coisas das quais nada sabem” (João Calvino, As Pastorais,(1Tm 1.7), p. 34).

[7]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56.

[8] Aristóteles, A Política, I.1.10, p. 14.

[9] Vejam-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 233; Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 129-131.

[10]Dokima/zw ressalta o aspecto positivo de “provar” para “aprovar”, indicando a genuinidade do que foi testado (2Co 8.8; 1Ts 2.4; 1Tm 3.10).

[11]Archibald Alexander (1772-1851), um dos fundadores do Seminário de Princeton e seu primeiro professor de Teologia Sistemática, resumiu:

       “Na avaliação da experiência religiosa é de todo importante manter continuamente à vista o sistema de verdade divina contido nas Sagradas Escrituras; caso contrário, nossa experiência, como ocorre muito frequentemente, se degenerará em entusiasmo. (…) Em nossos dias não há nada mais necessário que estabelecer na religião, uma cuidadosa distinção entre as experiências verdadeiras e as falsas; para ‘provar os espíritos se procedem de Deus.’ E ao fazer esta discriminação, não há outro padrão de prova senão a infalível Palavra de Deus. Tragamos cada pensamento, motivo, impulso e emoção, ante esta pedra de toque. ‘À lei e ao testemunho, se não falam de acordo com estes, é porque não há luz neles’” (Archibald Alexander, Thoughts on Religious Experience,Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1989 (Reprinted), p. XVIII).

[12] A palavra traduzida por “examinando” é a)nakri/zw, que tem o sentido de “fazer uma pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”. (*Lc 23.14; At. 4.9; 12.19; 17.11; 24.8; 28.18; 1Co 2.14,15 (duas vezes); 4.3 (duas vezes),4; 9.3; 10.25,27; 14.24). Conforme vemos em Lc 23.14; At 4.9 e 24.8, o verbo era usado para “investigações judiciais”. “Este verbo implica em integridade e ausência de preconceito. Desde então, o adjetivo ‘bereano’ tem sido aplicado a pessoas que estudam as Escrituras com imparcialidade e cuidado” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 17.11), p. 308).

[13] John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, (At 17.11), p. 308.

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