Deus como Autor de todo conhecimento

 

A razão natural jamais guiará os homens a Cristo. O fato de serem eles dotados de sabedoria para dirigir suas vidas e de se formarem em filosofia e ciências se reduz e resulta em nada. − João Calvino [1].

 

Deus, como fonte de todo conhecimento, tem naturalmente a consciência total da perfeição e amplitude do seu conhecimento. Ele se conhece perfeitamente, tendo ciência de toda a sua perfeição: “Em si mesmo Ele é sujeito e objeto de todo conhecimento”, conclui Calvino (1509-1564) [2].

Somente Deus possui um conhecimento perfeito, arquetípico de si mesmo. Qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fonte inesgotável. Portanto, podemos concluir algumas coisas:

1) Deus é o princípium essendi de todo conhecimento, inclusive o científico; logo, 2) toda verdade é proveniente de Deus, porque “todas as coisas procedem de Deus” [3]; portanto, não pode haver contradição em Deus mesmo; 3) A ciência e a fé não se contradizem: o mesmo doador da fé (Ef 2.8) é o criador das verdades científicas, logo, quando ambas parecem contraditórias, é porque, ou há uma compreensão errada da fé, ou a ciência não é ciência, está laborando em erro. Por isso é preciso que haja humildade de ambas as partes: do teólogo na interpretação da Palavra de Deus, sempre em submissão ao Espírito de Deus, sem cair num dogmatismo ingênuo nem em um relativismo dogmático que corre sempre atrás dos modismos científicos e filosóficos para adaptar a Teologia.

É preciso que, nós teólogos, entendamos que trabalhar com a teologia não significa dizer sempre coisas novas, embora reconheçamos “as situações novas que ameaçam a salvação dos homens”[4] para as quais devemos buscar na Palavra a resposta. Por outro lado, precisamos entender que a Palavra de Deus é mais rica do que qualquer dogma; portanto, o nosso sistema doutrinário, por melhor que seja – e eu estou convencido de que é – não pode ser mais rico do que a Palavra de Deus, como bem observou Berkouwer (1903-1996): “Porventura a Escritura não é mais rica do que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais excelente e atento ao Verbo divino que este possa ser?” [5]. Por isso, o critério último de análise, será sempre “O Espírito Santo falando na Escritura” [6].

O mundo do conhecimento pertence a Deus. Ele é o seu autor e revelador. Logo, todo e qualquer conhecimento quer empírico, quer científico, quer teológico que o homem tenha é parte do conhecimento de Deus expresso na sua Criação. Desta forma, podemos dizer que não existe conhecimento fora de Deus.

A realidade pertence a Deus, quem a criou, e lhe confere sentido. Quando então nos referimos ao conhecimento que podemos ter do próprio Deus, do seu caráter e majestade, temos de reafirmar a verdade bíblica de que esse conhecimento provém do próprio Deus. Portanto, Deus só pode ser conhecido por ele mesmo. Por isso a necessidade de revelação, para que possamos conhecê-lo e nos relacionarmos com ele. Deus em sua integridade se revela verdadeiramente como é em sua natureza essencial. Este conhecimento resultante da graça é único, singular e pessoal.

Devemos entender também que o nosso conhecimento a respeito de Deus é um “conhecimento-de-servo”, delimitado pelo próprio Senhor, considerando, inclusive, o pecado humano. Em outras palavras: “É um conhecimento acerca de Deus como Senhor, e um conhecimento que está sujeito a Deus como Senhor”[7.] O nosso conhecimento nunca é autorreferente com validade própria e por iniciativa nossa. “Visto que somos seres finitos e não podemos enxergar o todo da realidade de uma vez, nossa perspectiva da realidade é necessariamente limitada por nossa finitude”[8].

Poder conhecer a Deus é sempre uma iniciativa da graça divina. O nosso conhecimento é um ato de fé, e esta é procedente da graça [9] que se manifesta do fato de Deus se revelar e de nos possibilitar conhecer. Mais: nunca somos ou seremos o padrão de verdade. Os nossos pensamentos e as nossas supostas experiências concretas não têm poder autorreferentes, antes, precisam sempre ser validados pela Palavra, que é a verdade (Jo 17.17). Só pensamos verdadeiramente quando pensamos à luz da Palavra. Por isso, conhecer a Deus é algo singular, porque somente Deus é soberano e somente a partir dele podemos conhecê-lo. E tudo isso por meio de Jesus Cristo, o Deus encarnado, a revelação pessoal de Deus. Conhecer a Deus em sua soberania, portanto, é um dom da graça do soberano Deus.

O conhecimento de nossa limitação não é inato, antes é precedido pela revelação. “Quanto mais conhecemos Deus, mais compreendemos, e sentimos que seu mistério é inescrutável” [10]. A douta ignorância faz parte essencial da fé genuína e sincera. Sem a revelação de Deus não há teísmo, ateísmo nem agnosticismo. É no encontro significativamente pessoal com Deus que tomamos conhecimento de nossas limitações.

Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que possamos conhecer a nós mesmos e às demais coisas da realidade.

O teólogo sabe que a Teologia é uma busca humana por compreender e sistematizar a revelação e, enquanto humanos que somos, podemos nos enganar. A teologia, portanto, está, de certa forma, sempre à caminho, em busca de uma compreensão mais exaustiva das Escrituras. Entretanto, como em todas as demais ciências, nós reformados, temos nossos pressupostos. O nosso é que a Bíblia é o registro inspirado e inerrante da Palavra de Deus. Disto, não abrimos mão. Estamos convencidos de que uma visão relapsa da Palavra determina o fracasso teológico e espiritual da Igreja.

Vez por outra voltaremos a esse assunto.

Que Deus, por graça, nos dê um conhecimento genuinamente significativo da realidade e que isso, nos conduza à adoração, a razão última de nossa existência (1Co 10.31). Amém.

São Paulo, 08 de novembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.5), p. 38.
[2]H. Hoeksema, Reformed Dogmatics, 3. ed. Grand Rapids, Michigan: Reformed Free Publishing As-sociation, 1976, p. 15.
[3]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318.
[4] G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE., 1964, p. 72.
[5] G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 72.
[6] Confissão de Westminster, I.10.
[7] John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 56.
[8] Norman Geisler; Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis: resposta aos maiores questionamentos contemporâneos sobre a fé cristã, São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 50.
[9] “Todo conhecimento é fé” (Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos Homens e do Mundo, Brasília, 1DF.: Monergismo, 2013, p. 305).
[10] Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156.

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