A Pessoa e Obra do Espírito Santo (460)

6.5. O Espírito e a nossa esperança

6.5.1.  O Problema escatológico na Filosofia e na Religião: [1]

Nossa alma é como uma agulha de metal atraída para o polo magnético de Deus. Apesar de vivermos aqui na terra, a beleza, a alegria e a esperança do paraíso modelam nossos pensamentos e atos. O evangelho desvela um mundo modelado na história que confere sentido aos enigmas da nossa experiência – enquanto ao mesmo tempo oferece esperança para o futuro. – Alister E. McGrath.[2]

O cristão moderno prefere desfrutar das bênçãos do presente a confiar nas promessas para o futuro. – J.I. Packer.[3]

A principal observação anunciada na revelação de Deus referente ao futuro é a da esperança. O povo de Deus espera, ansioso, o retorno de Cristo porque ele promete a conclusão da obra redentora de Deus para eles e para toda a criação. A abordagem cristã para o futuro é sempre a da esperança nutrida pela Palavra. O futuro é nítido porque está cheio de promessas; promessas estas da Palavra de Deus. – Cornelius P. Venema.[4]

A consciência da morte[5] que, por causa do pecado, pode ser tão grave, intensa e esmagadora para o homem,[6] não podendo ser olhada com naturalidade – ainda que seja comum, basta olhar as genealogias –, soando como algo anormal,[7] pode e deve ser olhada, como o caminho para a glória, como escreveu Calvino:

Somente os crentes genuínos conhecem a diferença entre este estado transitório e a bem-aventurada eternidade, para a qual foram criados; eles sabem qual deve ser a meta de sua vida. Ninguém, pois, pode regular sua vida com uma mente equilibrada, senão aquele que, conhecendo o fim dela, isto é, a morte propriamente dita, é levado a considerar o grande propósito da existência humana neste mundo, para que aspire o prêmio da vocação celestial.[8]

            O medo da morte e de seus sofrimentos mantém de uma forma ou de outra, todos presos ao seu flagelo. Portanto, não é de se estranhar que a morte seja um dos aspectos mais indicados nas Escrituras como sendo causador de tristeza, dor e lágrimas. A morte física e espiritual é resultante do pecado. A morte não pertence apenas à esfera do mundo natural. Como cristãos, sabemos que ela faz parte da esfera espiritual, resultante do pecado de nossos primeiros pais que, ao desobedecerem a Deus, escolherem viver sob o domínio tenebroso da morte.

            O conceito de imortalidade da alma é uma constante nas diversas filosofias e religiões do Oriente e Ocidente.[9]

             Na Índia, o bramanismo entende que cada alma é um pedaço da substância absoluta, sendo a morte caracterizada pelo retorno da alma ao “Uno”, perdendo assim, as suas limitações.

            No pensamento grego e romano, encontramos o conceito de imortalidade na teogonia e cosmogonia do orfismo,[10] nos pitagóricos, em Empédocles,[11] nos ecléticos, em Plotino, entre outros.

            Platão (427-347 a.C.) sustentou a posição de que a alma é imortal e indestrutível, tendo vida própria, sendo o “corpo” (sw=ma) a “sepultura” (sh=ma) da alma.[12]

            Os estoicos criam que a alma do homem era parte do “Espírito Cósmico” e, como este, imortal. A morte fazia com que a alma humana voltasse ao lugar de onde procedeu. A sabedoria da vida consistiria em portar-se como um mortal; ou seja: não temer a morte…

            O Judaísmo e Budismo, Maometanismo e Hinduísmo, sustentam conceitos variados a respeito da imortalidade da alma.

            Os Pais da Igreja, ensinavam que a “imortalidade” da alma era derivada de Deus, que é imortal.[13]

            Na Idade Média e na Renascença a aceitação desta doutrina era algo natural.

            No pensamento moderno, encontramos em Leibniz (1646-1716) e em Wolff (1679-1754), a defesa desta doutrina. Kant (1724-1804), mesmo sem aceitar tais argumentos, reteve o mesmo conceito, como um postulado da razão prática. Hegel (1770-1831), defendeu a imortalidade do “Espírito” do mundo que se encarna nos povos e nos Estados que são por sua vez os portadores.

            Miguel de Unamuno (1864-1936), o grande filósofo existencialista espanhol, escreveu: “Que um homem não creia em outra vida, eu compreendo, já que eu mesmo não encontro prova alguma de que assim seja; porém que se resigne a esta e, sobretudo, que não deseje mais que esta, isso não compreendo”.[14]

            Comentando sobre a universalidade desta doutrina, Addison (1887-1953) inicia seu livro com essas palavras: “A crença em que a alma do homem sobrevive à sua morte, tão perto está de ser universal que não temos nenhum registro confiável de alguma tribo, nação ou religião em que não esteja em destaque”.[15]


Maringá, 22 de abril de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Sobre este assunto, consulte: R. Bultmann, a)qanasi/a: In: G. Friedrich; G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan:  Eerdmans, 1982, v. 3, p. 22-25;  C. Trestmontant, Imortalidade: In:Heinrich Fries, (dir.) Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1983, v. 2, p. 415-424; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 667-668; N. Abbagnano,  Dicionário de Filosofia, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 516-519; W. Schmithals, Morte: In: Colin Brown, ed. ger.O  Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, v. 3, p. 197-199; Norman L. Geisler; Paul D. Feinberg,  Introdução à Filosofia,  São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 163-183; F.E. Peters,  Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 42; Vários, Morte: In:   Jean-Yves Lacoste, dir., Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004,  p. 1195-1201. Para um estudo sobe a sociologia da morte, vejam-se: Edgar Morin, O homem e a morte,  São Paulo: Imago, 1997; Michel Vovelle, Imagens e imaginário na história: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX, São Paulo: Ática, 1997; E. Becker, A Negação da Morte, Rio de Janeiro: Record, 1991; Philippe Ariès, O homem diante da morte,  São Paulo: Editora UNESP., 2014; Philippe Ariès, História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias,Rio de Janeiro: Ediouro, 2003; St. Agostinho, O Cuidado Devidos aos Mortos.  São Paulo: Paulus, 1990; J. Bossy,  A Cristandade no Ocidente: 1400-1700, Lisboa: Edições 70, (1990); H. Braet; W. Verbeke, eds. A Morte na Idade Média, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996; Jean Delumeau, A civilização do Renascimento, Lisboa: Editorial Estampa, 1984, 2v; J. Delumeau, História do medo no Ocidente: 1300-1800,  São Paulo: Companhia das Letras, (2ª reimpressão), 1993; J. Delumeau, O pecado e o medo: A culpabilização no Ocidente  (séculos 13-18), Bauru, SP.: EDUSC., 2003, 2v; J. Delumeau, O que sobrou do paraíso?  São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Georges Duby, Ano 1000, ano 2000: Na pista de nossos medos, São Paulo: Editora UNESP.; Imprensa Oficial do Estado, 1998; Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, São Paulo: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, 2v. (O verbete Morto e Mortes é muito interessante além de fornecer uma boa bibliografia. v. 2. p. 243-261; Do mesmo modo, ver o verbete Além (v. 1, p. 21-34); Jacques Le Goff, A civilização do Ocidente Medieval, Bauru, SP.: EDUSC., 2005; Jacques Le Goff, org. O Homem medieval,  Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 9-30 (especialmente); Jacques Le Goff, Por amor às cidades: Conversas com Jean Lebrun, São Paulo: Fundação editora da UNESP., 1998; Jacques Le Goff; N. Truong, Uma história do corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006; Jacques Le Goff, O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1993; Luther Link, O Diabo: a máscara sem rosto, São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Carlos Roberto F. Nogueira, O Diabo no Imaginário Cristão,  2. ed. Bauru. SP.: EDUSC, 2002; Jean-Claude Schmitt, Os vivos e os mortos na sociedade medieval, São Paulo: Companhia das Letras, 1999; Caroline W.  Bynum, The Resurrection of the Body in Western Christianity, 200 to 1336,  New York: Columbia University Press, 2017 (expanded edition); F.S. Paxton, Christianizing Death. The Creation of a Ritual Process in Early Medieval Europe, Ithaca and London: Cornell University Press, 1990; http://www.pedrogarciabarreno.es/4.%20Escritos%20varios/Ensayos/Sobre%20el%20moribundo%20y%20su%20muerte.pdf.  Para uma visão cristã, além dos livros de Teologia Sistemática em geral, vejam-se: R.E. Davies, Morte: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 4, p. 379-381; Paul David Tripp,  Em Busca de Algo Maior, São Paulo: Cultura Cristã, 2011; Richard D.  Phillips, O que acontece após a morte: In: Richard D. Phillips, ed. Série fé reformada. São Paulo: Cultura Cristã, v. 2, 2015, p. 96-112; Eberhard Jüngel, Morte, 3. ed. rev. São Leopoldo, RS.: Sinodal; EST., 2010; Sam Storms. Com um pé levantado: Calvino, a Glória da ressurreição final e o céu: In: John Piper; David Mathis, orgs. Com Calvino no teatro de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 93-110. (Artigo inspirador sobre a vida de Calvino estando sempre pronto para partir).

[2]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 157.

[3]J.I. Packer, A Redescoberta da santidade, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 33.

[4] Cornelius P. Venema, A Promessa do futuro, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 28.

[5] “O que distingue os humanos de todas as outras criaturas é a autoconsciência. Sabemos que estamos vivos e que morreremos, e não conseguimos deixar de questionar por que a vida é assim e qual é o seu significado” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 20).

[6] “Durante toda a minha vida, meu pensamento esteve ocupado pelo problema com o qual todos se defrontam: o sentido da vida e da morte. É, no fundo, a única questão contra a qual se choca desde a origem o animal pensante, o único que enterra seus mortos, o único que pensa na morte, que pensa sua morte. Para iluminar seu caminho nas trevas, para adaptar-se à morte, esse animal tão bem adaptado à vida só tem duas luzes: uma se chama religião, a outra se chama ciência” (Jean Guitton, in: Jean Guitton; Grichka Bogdanov; Igor Bogdanov, Deus e a Ciência, em direção ao metarrealismo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 14). Veja-se: William Edgar, Razões do Coração. Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 79ss.

[7] Vejam-se: J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 185; E.F. Harrison, Muerte: In: E.F. Harrison, ed., Diccionario de Teologia, Michigan: T.E.L.L., 1985, [p. 358-359], p. 358.

[8]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 90.12), p. 440. Vejam-se: João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 61,66; João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.24-25), p. 218-219.

[9]As palavras gregas para “imortalidade” são: a)qa/natoj e a)qanasi/a; a primeira não ocorre no Novo Testamento; a segunda apenas três vezes (1Co 15.53,54 e 1Tm 6.16).

[10]Seita filosófico-religiosa do século VI a.C., que se julgava fundada pelo trácio  Orfeu, quem descera ao Hades. O ensinamento básico desta seita era de que a vida terrena é apenas uma preparação para uma vida futura, para a qual nos prepararíamos mediante rituais de purificação.

[11] Frags., 8,11,17,119,126.

[12]Platão, Crátilo, 400c. In: Teeteto e Crátilo, Belém, Universidade Federal do Pará, 1988, p 125; Platão, Górgias, 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989, 492e-493a. p. 131-132; Tertuliano,  A Treatise on the soul, XXIV. In: Rev. Alexander Roberts; James Donaldson, eds. The Ante-Nicene Fathers, Buffalo: The Christian Literature Publishing Company, 1885, v. 3, p. 203-205.  

[13]Vejam-se:. Taciano (c, 120-c.180), Discurso contra os Gregos, XIII, In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 79-80; Justino (c. 100-165), Diálogo com Trifão, 6. ed. In: Justino de Roma, São Paulo: Paulus, 1995, p. 120-121; Irineu, Contra as Heresias, II.34.1ss. In: Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, p.239-241; Tertuliano,  A Treatise on the soul, XXIV. In: Rev. Alexander Roberts; James Donaldson, eds. The Ante-Nicene Fathers, Buffalo: The Christian Literature Publishing Company, 1885, v. 3, p. 203-205. Na Carta a Diogneto –  escrito anônimo do 2º século  –, Cristo é chamado de “a/qa/natoj“ (Carta a Diogneto, 9.2. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 27). Nesta carta, também lemos: “A alma imortal (a/qa/natoj) habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus” (Carta a Diogneto, 6.8. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 24).

[14]Miguel de Unamuno, Mi Religión y Otros Ensayos Breves, Madrid:  Biblioteca Renascimiento, 1910, p. 218

[15]James T. Addison, Life Beyond Death in the beliefs of mankind, Boston and New York: Houghton  Mifflin Company, 1932, p. 3.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *