A Pessoa e Obra do Espírito Santo (386)

6.4.9.1.6. À verdade

Conforme já estudamos – quando tratamos no Ministério Escriturístico do Espírito –, O Espírito Santo continua guiando a Igreja à verdade. Se não fosse a sua ação iluminadora, orientadora e diretora, a Igreja estaria para sempre afogada no mar de crendices, superstições e erros.

Todavia, o Espírito pela Palavra tem nos guiado à verdade (Jo 16.13; 2Tm 3.16-17). Tem nos conduzido à compreensão correta do Evangelho de Cristo e, gradativamente, às múltiplas implicações dessa compreensão em nossa vida.[1]

          A elaboração doutrinária da Igreja, no decorrer dos séculos, se cristalizando nos Credos e Confissões, é uma evidência da direção do Espírito.[2] Por isso, comenta Stott, que “Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espírito Santo que tem ativamente iluminado a Igreja em todos os séculos”.[3]

Os Credos como aproximações da verdade

          As confissões refletem mais especificamente a compreensão de uma igreja, não de um teólogo em particular. Estas elaborações, ainda que revelem questões locais e circunstanciais, têm a sua fundamentação nas Escrituras, valendo-se de diversas contribuições da igreja, elaboradas, revistas, corrigidas e consolidadas ao longo da história. Ainda que a confissão seja individual, um testemunho de nossa fé, os credos se constituem num patrimônio da igreja.[4]

          Não estamos sozinhos; podemos e devemos nos valer do que o Espírito tem operado por meio de seus servos ao longo da história. Como vimos parcialmente, Veith nos desafia e consola:

Os cristãos modernos são os herdeiros de uma grande tradição intelectual cristã. Essa tradição de pensamento ativo e solução prática de problemas é uma aliada vital dos cristãos que lutam contra as tendências intelectuais do mundo contemporâneo. O uso das perspectivas do passado pode fornecer uma perspectiva valiosa sobre as questões atuais. Podemos, assim, livrar-nos da tirania do presente, a suposição de que a maneira que as pessoas pensam hoje é o único modo possível de pensar.[5]

Os cristãos de hoje podem fazer uso da tradição intelectual cristã, como também podem se tornar uma parte dela, que exerceu um tremendo impacto no mundo. Uma das chaves para solucionar os dilemas que um cristão enfrentará no mundo contemporâneo é perceber que nenhum cristão precisa encarar nenhum problema sozinho.[6]

          Os Credos nos oferecem de forma abreviada o resultado de um processo cumulativo da história, reunindo as melhores contribuições de diversos servos de Deus na compreensão da Verdade. Em outro lugar, referindo-nos à ciência, enfatizamos que ela não tem pátria nem idade, não sendo privilégio de um povo, menos ainda de um indivíduo. 

          Packer recorre a uma figura já empregada para falar da tradição:

A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão. [7]

          Orr (1844-1913), na sua obra prima, O Progresso do Dogma,escrevendo sobre os “Credos da Reforma” disse:

A idade da Reforma se destacou por sua produtividade de credos. Faremos bem se não menosprezarmos o ganho que resulta para nós destas criações do espírito do século XVI. Cometeremos grave equívoco se, seguindo uma tendência prevalecente (1897), nos permitirmos crer que são curiosidades arqueológicas. Estes credos não são produtos ressecados como o pó, senão que surgiram de uma fé viva, e encerram verdades que nenhuma Igreja pode abandonar sem certo detrimento de sua própria vida. São produtos clássicos de uma época que se comprazia em formular credos, com o qual quero dizer, uma época que possuía uma fé que é capaz de definir-se de modo inteligente, e pela qual está disposta a sofrer se for necessário – e que, portanto, não pode por menos que expressar-se em formas que não tenham validade permanente –. (…) Estes credos se têm mantido erguidos como testemunhos, inclusive em período de decaimento, às grandes doutrinas sobre as quais foram estabelecidas as Igrejas; têm servido como baluartes contra os assaltos e a desintegração; têm formado um núcleo de reunião e reafirmação em tempos de avivamento; e talvez têm representado sempre com precisão substancial a fé viva da parte espiritual de seus membros….

Os credos da Reforma dão, e isto praticamente pela primeira vez, uma exposição conjunta de todos os grandes artigos da doutrina cristã.[8]

          Quanto a nós hoje os Credos servem, pelo menos deveriam servir,[9] como desafio para que continuemos nossa caminhada na preservação da doutrina e na aplicação das verdades bíblicas aos novos desafios de nossa geração, integrando-nos assim, à nobre sucessão daqueles que amam a Deus e a sua Palavra e que buscam entendê-la e aplicá-la, em submissão ao Espírito, à vida da Igreja. Uma tradição saudável tem compromisso com o passado na geração do futuro.[10]

          A declaração teológica terá sempre o compromisso de ser formulada em fidelidade à Palavra atentando para os problemas hodiernos. Esta formulação e proclamação não podem significar o barateamento da Verdade revelada, a insensibilidade para com os conflitos e indagações contemporâneos, nem uma síntese cinzenta de ambas as questões – visto que perderíamos a essência do Evangelho, que é poder de Deus (Rm 1.16) –, antes, consiste na proclamação fiel e autoritativa do Evangelho, sensível – como é o Evangelho em sua própria essência –, às necessidades dos seres humanos que continuam perecendo, em última instância, pelo pecado e a ignorância da graça redentiva de Deus.

          Só estes fatos deveriam, por si só, nos conduzir a uma atitude mais humilde, como assinala Noll: ”O estudo da história da igreja deve aumentar a nossa humildade sobre quem somos e aquilo em que cremos. Não há nada que a igreja moderna desfrute que não seja uma dádiva das gerações anteriores do povo de Deus. Na realidade, nós modificamos, adaptamos e ampliamos essas dádivas do passado, mas não as criamos”.[11]

          Portanto, conclui Packer: (1926-2020):

O conservadorismo criativo utiliza-se da tradição, não como autoridade final ou absoluta, mas como recurso importante colocado à nossa disposição pela providência de Deus, a fim de nos ajudar a entender o que a Escritura está nos dizendo sobre quem é Deus, quem somos nós, o que é o mundo ao nosso redor, e o que fomos chamados para fazer aqui e agora.[12]

          Conforme já vimos, o Antigo e o Novo Testamento usaram deste recurso para auxiliar os crentes na sua vida doutrinária e prática cristã, expressando também o que a Igreja cria.

          Concluo este capítulo com as pertinentes palavras de Barth (1886-1968):

Reservamos à Bíblia uma estima e um amor que não temos, no mesmo grau, pela tradição, nem mesmo pelos mais valiosos de seus elementos. Nenhuma Confissão de Fé datando da Reforma ou da época atual pode, da mesma maneira que as Escrituras, elevar-se à pretensão de solicitar o respeito da Igreja.

Mas isso não retira nada do fato de que a Igreja escuta e aprecia o testemunho de seus Pais. Então, mesmo que nós não encontremos nele a Palavra de Deus como em Jeremias ou em Paulo, ele tem para nós um significado elevado. Obedecendo ao mandamento ‘honra teu pai e tua mãe’, nós não nos recusaremos a respeitar, seja na pregação, seja na elaboração científica da dogmática, as afirmações de nossos Pais. Diferentemente das Escrituras, as Confissões não tem autoridade que obrigue, mas devemos, todavia, levá-las seriamente em consideração e lhes atribuir uma autoridade relativa.[13]

Maringá, 24 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Ver: Leon Morris, Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 312-313.

[2]Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Parakletos, 2002, p. 70.

[3]John R.W. Stott, A Cruz de Cristo,Miami: Editora Vida, 1991, p. 8. Veja-se o excelente artigo de J.I. Packer. (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 231-243).

[4] Veja-se: W. Seibel, Confissão: In: Heinrich Fries, ed. Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 1, p. 274.

[5]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 97.

[6]Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, p. 99.

[7] J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, p. 235. “Quem examina a tradição encontra aberta diante de si a sabedoria de todas as épocas” (J.I. Packer, Ibidem., p. 237). “Humildade no juízo particular quer dizer que continuamos a examinar as Escrituras até ficar claro o que Deus disse, proibindo nosso intelecto orgulhoso de tirar conclusões sobre aquilo que o Deus da Bíblia deixa em aberto ou de recusar-nos a aceitar ajuda da tradição cristã na interpretação das Escrituras sob a suposição de que um estudante da Bíblia ‘se vira’ perfeitamente bem sem essa ajuda” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, p. 241). Carson de forma particular ilustra isso: “Em meu próprio horizonte, reconheço alegremente um senso de dívida para com uma hoste de eruditos de cujo entendimento me beneficio, embora um tanto inadequadamente” (John Piper; D.A. Carson, O Pastor como Mestre e o Mestre como Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 112).

[8]James Orr, El Progreso del Dogma, Barcelona: CLIE., (1988), p. 226-227.

[9]Entre o final dos anos 50 e início dos anos 60, Lloyd-Jones lamenta: “No presente século há marcante aversão por credos, confissões e por definições precisas. O cristianismo tornou-se um vago e indefinido espírito de boa vontade e filantropia” (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 213). Como nos chama a atenção Dabney, tais pessoas deveriam rejeitar também a pregação, visto que somente os autógrafos originais foram inspirados, não as traduções (Veja-se: Robert L. Dabney, The Doctrinal Contents of the Confession: its Fundamental and Regulative ideas and the necessity and Value of Creeds, Greenville, South Carolina: Greenvile Presbyterian Theological Seminary, 1993 (Reprinted), p. 17). Também, não deveríamos cantar: “Cantar hinos é da mesma forma uma recitação em conjunto com música; e nenhum hino de que me recordo contém tanta teologia sã, de modo tão coerente, cláusula por cláusula, quanto os Credos apostólico ou niceno” (Carl R. Trueman, O Imperativo confessional, Brasília, DF.: Editora Monergismo, 2012, p. 210).

[10] “A tradição é o sangue da teologia. Separada da tradição a teologia é como uma flor cortada sem suas raízes e sem o solo, logo murcha na mão. Uma sã teologia nunca nasce de novo. Ao honrar a sã tradição, se assegura a continuidade teológica com o passado. Ao mesmo tempo a tradição cria a possibilidade de abrir novas portas para o futuro. Como diz o provérbio: ‘A tradição é o prólogo do futuro.’ Por isso, toda dogmática que se preze como tal, deve definir sua posição em uma ou outra tradição confessional” (Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional: Um Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jenison, MI.: The Evangelical Literature League, 1994, p. 5).

[11]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 20.

[12]J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, p. 241.

[13]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 13.

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