A Pessoa e Obra do Espírito Santo (30)

6.1.5. O Espírito, a Reforma, a autoridade e a interpretação bíblica (continuação)

João Calvino

            Calvino seguiu de perto essa compreensão comum na tradição da igreja e, também, sustentada entre os Reformadores. Ele estava convicto de que  os profetas não falaram aleatoriamente o que pensavam, antes, “testificaram a verdade de que era a boca do Senhor que falava através deles”.[1]

            Ainda que Calvino não tenha detalhado esse assunto no que se refere ao processo de inspiração, um conceito fica claro em seus escritos: os autores secundários das Escrituras não foram simplesmente autômatos. Deus se valeu livre e soberanamente de seus conhecimentos e personalidade. Contudo, tudo que foi escrito o foi conforme a vontade de Deus.

            Os profetas e apóstolos tiveram em seus corações “gravada a firme certeza da doutrina, de sorte que fossem persuadidos e compreendessem que procedera de Deus o que haviam aprendido”.[2]

            Em outro lugar:

Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo”.[3]

            Em outro momento, comentando 1Pe 1.11:

Em primeiro lugar, “que estava neles”; e, em segundo lugar, “testificando”; isto é, dando testemunho, expressão que ele usa para notificar que os profetas eram revestidos com o Espírito de conhecimento, e realmente de maneira incomum, como aqueles que foram nossos mestres e testemunhas, e contudo não foram participantes daquela luz que nos é exibida. Ao mesmo tempo, um alto louvor é atribuído a sua doutrina, pois este era o testemunho do Espírito Santo; os pregadores e ministros eram homens, ele, porém, era o mestre. Tampouco declara sem razão que o Espírito de Cristo então governava; e faz do Espírito, enviado do céu, aquele que preside sobre os mestres do evangelho, porquanto mostra que o evangelho vem de Deus, e que as profecias antigas eram ditadas por Cristo.[4]

             Puckett  argumenta em prol do conceito de Calvino concernente à participação humana no registro das Escrituras:

Os comentários de Calvino, sobre o estilo literário do texto bíblico, refletem sua crença que a mente dos autores humanos permaneciam ativas na produção da escritura. Ele atribui variações de estilos pelo fato de que vários escritores são responsáveis por diferentes porções da Bíblia. Ele rejeita a autoria Paulina da epístola de Hebreus[5] porque ele encontra estilos diferentes entre esta e as epístolas que ele crê serem genuinamente Paulinas.[6]

            Calvino entende que nas Escrituras tem-se todos os livros que Deus quis que fossem preservados[7] para a  edificação do crente:

Aquelas [epístolas] que o Senhor quis que fossem indispensáveis à sua Igreja, Ele as consagrou por sua providência para que fossem perenemente lembradas. Saibamos, pois, que o que foi deixado nos é suficiente, e que sua insignificância não é acidental; senão que o cânon das Escritura, o qual se encontra em nosso poder, foi mantido sob controle através do grandioso conselho de Deus.[8]

 

Maringá, 27 de outubro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 3.16), p. 262.

[2] João Calvino, As Institutas, I.6.2.

[3] João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 262. Do mesmo modo: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v.1, p. 29; John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 2 (Preface), p. 14; (Ex 3.1), p. 59; v. 17 (Jo) (Argument), p. 22; João Calvino, As Institutas, IV.8.6). Em outro lugar Calvino diz que os Apóstolos foram “certos e autênticos amanuenses do Espírito Santo” (As Institutas, IV.8.9). No entanto, devemos entender, que Calvino usa esta expressão não para sustentar o “ditado” divino, mas sim, para demonstrar que os Apóstolos não criaram de sua própria imaginação a sua mensagem, antes, a receberam diretamente do Espírito. Ou seja, ele se refere ao resultado do registro, não ao processo em si. Entendia que Moisés escreveu os cinco livros da Lei “não somente sob a orientação do Espírito do Deus, mas porque Deus mesmo os tinha sugerido, falando-lhe com palavras de sua própria boca” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 3, (Ex 31.18), p. 328. Vejam-se também: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 10 (Jr 36.28), p. 352; v. 22 (2Pe 1.21), p. 391). Veja-se uma boa exposição sobre este ponto em: B.B. Warfield, Calvin and Calvinism,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), v. 5, p. 63ss.; Edward J. Young, Thy Word Is Truth, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1957, p. 66-67; Wilson Castro Ferreira, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 356-257; David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 25ss.; Derek Thomas, A Pregação Expositiva: Mantendo os olhos no texto: In: R. Albert Mohler, Jr., Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 51. Curiosamente, o Concílio de Trento, na sua quarta sessão (08/04/1546), usa esta expressão para as Escrituras: “Spiritu Sancto dictante” (Ver: P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Revised and Enlarged), (1931),v. 2, p. 80; Robert Laird Harris, Inspiração e Canonicidade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 18 e 306; Carl R. Trueman, O poder da Palavra no presente: A inerrância e a Reforma: In:  John F. MacArthur, org.,  A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 137-148], p. 143).

[4] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker, 1996 (Reprinted), v. 22, (1Pe 1.11), p. 39-40.

[5] Já nos Pais da Igreja encontramos uma variedade de opiniões concernentes à sua autoria. Alguns, conforme informa Orígenes – citado por Eusébio –, pensavam que teria sido escrito por Paulo (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica,Madrid: La Editorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos), 1973, VI.25.13. (Ver III.3.5; III.38.1ss; VI.20.3), Clemente de Roma ou Lucas. (Cf. Eusébio, HE, VI.25.14. (Ver III.38.1ss).

            Erasmo de Roterdã (1466-1536) reviveu, no século XVI, a hipótese de Clemente ter sido o autor de Hebreus. (Cf. Donald Guthrie, New Testament Introduction, 3. ed. (Revisado), Downers Grove, Illinois, Inter-Varsity Press, in one volume, 1970, p. 694). Posição (Clemente ou Lucas) que Calvino (1509-1564) parecia estar disposto a aceitar (Exposição de Hebreos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 13.23), p. 402). Certo era que ele não cria na autoria paulina. (Ibidem, (Introdução), p. 22; Hb 2.3, p. 54, 55; (Hb 11.3), p. 300).

            Lutero acreditava que poderia ter sido escrita tardiamente por algum discípulo dos apóstolos. Porém, considera a questão da autoria irrelevante (Martinho Lutero, Prefácio à Epístola aos Hebreus: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Comissão Interluterana de Literatura; Sinodal; Concórdia, 2003, v. 8, p. 152-153).

            Clemente de Alexandria (c. 150- c.215) supunha ter sido escrita por Paulo em Hebraico e Lucas a teria traduzido. (Eusébio, HE, VI.14.2/III.38.2). S. Tomás de Aquino (1225-1274) também partilhou desta concepção (Cf. F.F. Bruce, La Epistola a Los Hebreos, Michigan: Nueva Creacion, 1987, p. xxxix). Aquino, numa série de sermões pregados sobre o “Credo Apostólico”, em Nápoles (1273), cita Hebreus como sendo de Paulo. (Ver: S. Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo, São Paulo: Loyola, 1994, p. 17.25). O próprio Orígenes considerava que o estilo da epístola assemelha-se ao de Paulo e a composição parecia de alguém que evocava os seus ensinamentos, como um aluno que anota os escritos de seu mestre (Eusebio, HE, VI.25.13), contudo, sobre quem escreveu a carta, conclui ele, somente Deus sabe a verdade (Eusebio, HE, VI.25.14). (Para uma discussão mais completa desse assunto, veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008).

[6]David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 27. Em uma linha semelhante, resume Crampton: “A visão que Calvino mantinha sobre os autores da Escritura é que o Espírito Santo agiu neles em um caminho orgânico, em acordo com suas próprias personalidades, caráter, temperamentos, dons e talentos. Cada autor escreveu em seu próprio estilo, e todos eles foram movidos pelo Espírito Santo para escreverem a verdade infalível. Realmente cada estilo de autor foi nele mesmo produzido pela providência de Deus” (W. Gary Crampton, What Calvin Says, Maryland: The Trinity Foundation, 1992, p. 23).

[7] Ver João Calvino, As Institutas, I.8.10-12.

[8]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 3.3), p. 86.

One thought on “A Pessoa e Obra do Espírito Santo (30)

  • 30 de outubro de 2020 em 08:40
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    Como sempre marca o Rev Hermistein em seus escritos, a excelência! Deus seja louvado! Muito obrigado sempre por esta mina preciosa das Escrituras que tem sido sua vida!

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