A Pessoa e Obra do Espírito Santo (419)

F) Necessidade de arrependimento[1] 

“Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus….” (At 20.21).

Em outro contexto, Lawson faz uma analogia interessante, que nos conduz ao ponto que queremos tratar:

Se em Corinto Paulo tivesse ido de casa em casa, feito uma pesquisa entre as pessoas e perguntado o que desejavam achar em sua igreja, elas teriam respondido entusiasticamente: ‘Dê-nos superioridade de linguagem e sabedoria; e assim iremos à igreja’. Os coríntios se apinhavam para ouvir oradores que empregavam esses artifícios populares.[2]

          No entanto, o tipo de pregação de Paulo era outro. Ele não barateava o Evangelho; estava ciente de a necessidade de todo homem ser confrontado com o Evangelho de Deus: “Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (At 20.21).

          Como todos são pecadores, todos necessitam arrependerem-se de seus pecados. Coerentemente com a Escritura, esse, portanto, era o apelo de Paulo.

O arrependimento é fundamental à nossa salvação. Ele é parte essencial da mensagem do Evangelho (Mt 3.2; 4.17; Mc 1.14-15; Lc 24.46-47; At 20.21; 26.18-20; Ap 3.19). Todos são notificados desta necessidade (At 17.30).[3] O pregador do Evangelho tem a responsabilidade de conclamar seus ouvintes ao arrependimento (1Co 9.22; 2Co 5.20).[4] No entanto, isto não é suficiente. O arrependimento só é possível por Deus. É uma dádiva de Deus concedida a judeus e gentios (At 5.31; 11.18).[5] Ele envolve o nosso coração, mente, e vontade.[6] A raiz do “arrependimento evangélico”[7] está no coração, o centro vital do ser humano.[8] Ele consiste em uma mudança de mente, ocasionando um sentimento de “tristeza piedosa”[9] pelos nossos pecados, que se caracteriza de forma concreta em seu abandono,[10] refletindo isso na adoção de novos valores, ideais, objetivos e práticas. Um falso arrependimento é gerador de condenação justamente pela sensação enganosa de perdão e, a autocondescendência para continuar pecando.[11]

O arrependimento marca o início da vida cristã e, também, caracteriza a sua totalidade. Packer resume: “A mudança é radical, tanto interior como exteriormente: ânimo e opinião, vontade e afetos, conduta e estilo de vida, motivos e propósitos são todos envolvidos. Arrependimento significa começo de uma nova vida”.[12]

G) Fé Cristocêntrica

Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (At 20.21).

          A fé cristã é centrada em Cristo Jesus (Ef 1.15). Por isso, antes de ser uma mensagem a nosso respeito, o Evangelho é a mensagem de Deus, procedente de Deus cujo conteúdo primeiro é a respeito do próprio Deus. Deste modo, Jesus Cristo é o próprio Evangelho; Ele é a encarnação da Boa Nova de salvação concedida por Deus ao Seu povo. O Evangelho, antes de ser uma mensagem, é uma Pessoa: Jesus Cristo,[13] o Deus encarnado: verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O Evangelho envolve a sua pessoa e o seu ensino. Não existe Evangelho sem Jesus Cristo; portanto, não há mensagem a ser anunciada sem a sua encarnação, morte e ressurreição. “[Evangelho] é a solene publicação da graça revelada em Cristo”, assevera Calvino.[14] Por isso, pregar o Evangelho significa pregar Jesus Cristo:[15] “Esforçando-me, deste modo, por pregar o evangelho (eu)aggeli/zw), não onde Cristo já fora anunciado, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm 15.20).[16]

          A mensagem de Jesus era: “Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Antes de ser assunto aos céus, o Senhor ordenou aos seus discípulos:“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado” (Mc 16.15-16).

          Sem a revelação de Deus jamais conheceríamos o Evangelho. Todavia, ele não termina em informação, antes exige arrependimento e fé. O Evangelho não apenas nos instrui, antes, é para ser crido e vivido. O arrependimento gera a tristeza para com o nosso pecado. A fé redireciona as nossas esperanças, redimensionando a nossa agenda de vida e prioridades à luz da Palavra. Portanto, a fé faz parte essencial da reivindicação graciosa do Evangelho. Por meio da graça mediante a fé somos capacitados a receber a graça da salvação.

          A pregação, portanto, visa ser compreendida por todos. Falamos de forma mais clara possível a fim de que os homens entendam o que estamos dizendo e o significado desta mensagem que não é nossa, é de Deus. Contudo, a nossa tarefa não termina aqui: pregamos fiel, inteligente e submissamente, oramos, convidamos, testemunhamos e intercedemos. Toda proclamação cristã envolve em si mesma um desafio para que os nossos ouvintes respondam com fé ao nosso testemunho que nada mais é do que o anúncio do Evangelho. A aplicação desta mensagem produzindo fé em seus ouvintes, pertence a Deus. Ele assim o faz conforme o seu propósito santo e glorioso.  Podemos até pregar mal e, de certa forma, todos pregamos, contudo, o Evangelho continua sendo o poder de Deus.

          Conforme já vimos, a fé salvadora é uma fé Teológica e, esta é Cristocêntrica. A Teocentricidade da fé é Cristocêntrica.  A fé não é uma virtude humana, antes, é resultado da graça que nos faz confiar no Evangelho e descansar em Cristo. A questão primeira não está na intensidade de nossa fé, antes, em quem cremos. É o Senhor Jesus em sua majestade quem confere sentido à nossa fé e nos ajuda em nossa, por vezes, incredulidade (Mc 9.24). 

Esta é a genuína fé cristã. Ela está enraizada no coração que foi regenerado por Deus. A fé salvadora é obra de Deus e é direcionada para Deus por meio de Cristo (Hb 12.2; 1Jo 5.1-5).[17] Contudo, o que nos salva não é a nossa fé, mas, o que Cristo por graça realizou por nós despertando a nossa fé nele.

          A fé salvadora é um dom da graça de Deus, por meio do qual somos habilitados a receber a Jesus Cristo como nosso único e suficiente Salvador e, a crer em todas as promessas do Deus Trino, conforme estão registradas nas Escrituras.[18]

          O Catecismo Menorde Westminster (1647) na questão 86, assim define: “Fé em Jesus Cristo é uma graça salvadora, pela qual o recebemos e confiamos só nele para a salvação, como ele nos é oferecido no Evangelho”.

          Portanto, a pregação de Paulo era centrada em Cristo intimando seus ouvintes a se arrependerem de seus pecados e voltarem-se confiantes para Cristo em quem somente há salvação.

          A mensagem de arrependimento e fé deve acompanhar durante toda a história a vida da igreja. Precisamos constantemente de nos arrepender e crer. A nossa fé nem sempre triunfa de modo existencial durante as nossas angústias. E mais, a nossa fé deve ser desenvolvida, aperfeiçoada na realidade contínua de Deus em nossa vida.[19]

Maringá, 26 de fevereiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Sobre arrependimento, trato com mais detalhes em meu livro, Introdução à Metodologia das Ciências Teológicas, Goiânia, GO.: Cruz, 2015.

[2]Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 44. “No momento presente, os pregadores têm de resistir à tentação de serem moldados pelos ditames culturais de uma sociedade ímpia. Ouvidos ímpios sempre desejarão ser fascinados e não confrontados, cativados e não desafiados” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 39-40).

[3]“Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam (metanoe/w) (At 17.30).

[4] Vejam-se: Walter J. Chantry, O Evangelho hoje: autêntico ou sintético? São Paulo: Fiel, 1978, p. 41-49; John MacArthur, O Evangelho Segundo os Apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 91-109.

[5]“Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento (meta/noia) e a remissão de pecados” (At 5.31). “E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento (meta/noia) para vida” (At 11.18).

[6]Hoekema assim define: “o retorno consciente da pessoa regenerada, para longe do pecado e para perto de Deus, numa completa mudança de vida, manifestando-se numa nova maneira de pensamento, sentimento e vontade” (Anthony A. Hoekema, Salvos Pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 133). Especialmente, p. 133-135.

[7] Expressão usada por Calvino. Veja-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 130-131.

[8] “Assim como o coração no sentido físico é o ponto de origem e de força propulsora da circulação do sangue, assim também, espiritual e eticamente ele é a fonte da mais elevada vida do homem, a sede de sua autoconsciência, de seu relacionamento com Deus, de sua subserviência à Sua lei, enfim, de toda a sua natureza moral e espiritual. Portanto, toda a sua vida racional e volitiva tem seu ponto de origem no coração e é governada por ele” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 19).

[9] “A verdadeira conversão surge da tristeza piedosa, isto e, uma tristeza em harmonia com a vontade de Deus, uma tristeza que, portanto, não é meramente de caráter ético, mas também de caráter religioso, pertence a Deus, sua vontade e sua palavra e ao pecado como pecado até mesmo independente de suas consequências. Ela é requerida por Deus, mas também é dada por Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 141). “Se Deus nos esmaga com tristeza piedosa, isso é um ato de pura graça. É o seu ato de misericórdia para nos levar à fé e à conversão” (R.C. Sproul, O que é arrependimento? São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014, p. 43).

[10]Analisando diversas passagens bíblicas, Bavinck, conclui: “A conversão sempre consiste em uma mudança interna de mente que leva as pessoas a olharem para seu passado pecaminoso à luz da face de Deus; conduz à tristeza, desgosto, humilhação e confissão de pecados; e é, tanto interna quanto externamente, o começo de uma nova vida ético religiosa” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 142). Veja-se também: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-480).

[11] Vejam-se algumas ilustrações sobre “falso arrependimento” em: Thomas Watson, A Doutrina do Arrependimento, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2012, p. 17ss; John Owen, Para vencer o pecado e a tentação, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 109; Jim Elliff, Arrependimento ineficaz. (http://www.ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/253/O_Arrependimento_Ineficaz) (Consulta feita em 24.01.19).

[12]J.I. Packer, Teologia Concisa,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152.

[13]Stott resumiu: “A boa nova é Jesus” (John R.W. Stott, A Missão Cristã no Mundo Moderno, Viçosa, MG.: Ultimato, 2010, p. 66). “O conteúdo do Evangelho é Jesus mesmo, não um credo ou uma doutrina ou teoria acerca Dele” (Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la historia de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 17).

[14]J. Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, p. 26.

[15] Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 41-43.

[16]Para um estudo mais detalhado do emprego da palavra Evangelho, Vejam-se: Gerhard Friedrich, Eu)aggeli/zomai: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 707-737; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. ONovo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 166-174; Rudolf Bultmann, Teologia del Nuevo Testamento, Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980, p. 134-135; William F. Arndt; F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature,2. ed. Chicago: University Press, 1979, in loc. p. 317-318; Euaggelion: W. Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 73; Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7. ed. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, (1990), in loc; W.G. Kümmel, Introdução ao Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 33-34; E.F. Harrison, Introducción al Nuevo Testamento, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1980, p. 131ss.; R.H. Mounce, Evangelho: In: J.D. Douglas, ed. org., O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 566-567; R.H. Mounce, Evangelho: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, v. 2, 1990, p. 109. H.J. Jager, Palabras Clave del Nuevo Testamento, 2. ed. Madrid: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1982, v. 1, p. 7ss.; Evangelho: In: W.E. Vine; Merril F. Unger; William White Jr., Dicionário Vine: o significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento, Rio de Janeiro: CPAD.,  2002, p. 629; John N. Oswalt, Bãsar: In: R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr.; Bruce K. Waltke, orgs. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 227; G. Strecker, Eu)agge/lion: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-1980, v. 2, p. 70-74.

[17] “Olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.2). “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. 2 Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos. 3 Porque este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos, 4porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. 5Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus?” (1Jo 5.1-5).

[18]“Somos reconhecidos como filhos de Deus, não por conta de nossa própria natureza, nem por nossa própria iniciativa, mas porque o Senhor nos gerou voluntariamente (Tg 1.18), ou seja, com base em seu amor imerecido. Daqui se deduz, primeiramente, que a fé não provém de nossa própria ação, senão que é fruto da regeneração espiritual. Pois o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a não ser que seja gerado por Deus. Daqui se depreende que a fé é um dom celestial. Além do mais, a fé não é um mero e frio conhecimento, porquanto ninguém pode crer se porventura não for renovado pelo Espírito de Deus” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.13), p. 47-48).

[19]Veja-se: João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.11), p. 95.

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