A Pessoa e Obra do Espírito Santo (368)

c) Louvando a Deus (Continuação)

Liberdade do Espírito sob os ditames da Palavra

    Sem dúvida Calvino foi influenciado pela adoração dirigida por Martin Bucer (1491-1551) em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541)[1] pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar a sua fé em liberdade.

    Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto. É verdade que na sua primeira estada em Genebra já propusera o cântico de Salmos, formando um coro de crianças que depois de bem ensaiado, ensinaria ao resto da congregação.[3] Quando Calvino retornou a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de Genebra (1542) a base para a adoração das Igrejas calvinistas em toda a Europa – Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia.[4]

    Calvino no estabelecimento da Ordem do Culto, não foi dogmático, entendendo que muitos detalhes poderiam ser modificados à critério da congregação, sem que com isso propiciasse abusos.[5]

          A Palavra de Deus será sempre o elemento aferidor de toda a nossa alegada liberdade:

O Senhor nos permite liberdade em relação aos ritos externos,[6] para não concluirmos que o seu culto se acha limitado por essas coisas. Ao mesmo tempo, entretanto, Ele não nos concedeu liberdade ilimitada e descontrolada, mas construiu, por assim dizer, cerca em torno dela; ou, de algum modo, restringiu a liberdade que nos deu, de tal maneira, que somente à luz de sua Palavra é que podemos orientar nossas mentes sobre o que é correto.”[7]

          Por isso, junto ao apego inarredável da Palavra, o critério do amor se faz extremamente necessário, conforme ele mesmo percebeu:

…. o Senhor compendiou fielmente toda a suma da verdadeira justiça e todas as partes do culto de seu nome, bem como tudo quanto era necessário para a salvação, como também expressou claramente em seus sagrados oráculos: nestas coisas se há de ouvir unicamente o Mestre. Mas, porque na disciplina exterior e nas cerimônias não quis ele prescrever minuciosamente o que devamos seguir (porque isto previne depender da condição dos tempos, nem julgaria convir a todos os séculos uma forma única), impõe-se aqui acolher as regras gerais que deu, de modo que, em conformidade com essas regras, sejam aferidas todas as coisas que, para a ordem e o decoro, a necessidade da Igreja muito requer que sejam preceituadas.

Enfim, porque Deus nada ensinou expresso nesta área, porquanto essas coisas não são necessárias à salvação e devem acomodar-se variadamente para a edificação da Igreja, segundo os costumes de cada povo e do tempo, convirá, conforme o proveito da Igreja o requerer, tanto mudar e revogar ordenanças comuns, quanto instituir novas. De fato reconheço que se deve recorrer à inovação não inconsiderada, nem seguidamente, nem por causas triviais. O que, porém, prejudica ou edifica, melhor o julgará a caridade, a qual se permitirmos seja a moderatriz, tudo estará a salvo.[8]

Maringá, 11 de dezembro de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Calvino diz que Bucer é “o mais fiel doutor da Igreja de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 31).

[3]Veja-se: Thea B. Van Halsema, João Calvino era Assim, São Paulo: Editora Vida Evangélica, 1968, p. 82; Jouberto Heringer da Silva, A Música na Liturgia de Calvino em Genebra: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, VII.2 (2002), p. 99.

[4]Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996,v. 8, p. 371; D.P. Hustad, Jubilate! A Música na Igreja, São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 118; John Calvin, Tratacts and Treatises, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1958, v. 2, p. 99a (Notas de T.F. Torrance).

[5]J. Calvino, As Institutas, IV.17.43. Compare com IV.10.31. Em 22 de outubro de 1548, Calvino escreveu a Edward Seymour, Duque de Somerset, Regente da Inglaterra durante a menoridade de Eduardo VI: “Alguns há que, a pretexto de moderação, são favoráveis a que muitos abusos sejam poupados sem interferir em nenhum deles. (…) Vemos quão fértil é a semente da falsidade e que basta um único grão para encher dela o mundo em apenas três dias; a tal ponto estão os homens inclinados e habituados a ela. (…) Admito de boa mente que temos de observar a moderação, e que o exagero não é nem prudente nem útil. Na verdade, aquelas formas de adoração precisam ser acomodadas à condição e às inclinações do povo, mas as corrupções de Satanás e do Anticristo não podem ser jamais admitidas sob qualquer pretexto” (João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 72-73). Comentando o Salmo 50, Calvino emite o seu conceito sobre os ritos externos: “Estes ritos externos são, portanto, em si mesmos, de nenhuma importância, e deve-se mantê-los só até ao ponto em que nos são úteis na confirmação de nossa fé, de sorte que possamos invocar o nome do Senhor com um coração puro” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 50.14), p. 410). Sobre a ordem do culto estabelecida por Calvino, Leith comenta: “O primeiro ato significativo com relação à liturgia de Calvino é que ela não é canônica. Calvino se ajustou às práticas litúrgicas de Genebra e Estrasburgo” (John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997,p. 296).

[6] “O mundo sempre revela forte tendência para cultuar a Deus por meio de observâncias externas, o que pode ser fatal” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.8), p. 117). “Os homens motejam de Deus simplesmente por apresentar-lhe cerimônias fúteis e sem proveito, a menos que a doutrina da fé os preceda, estimulando-os a invocar a Deus; e, também, a menos que a lembrança de seus benefícios lhes injete motivação para o louvor. Sim, é uma terrível profanação de seu nome quando o povo apaga a luz da verdade divina e se satisfaz meramente em praticar um serviço externo” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 81.1-3), p. 278).

[7] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 14.40), p. 444. p. 444. Vejam-se também: John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 218-219, 240, 250; João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,v. 1, (Dn 3.2-7), p. 185.

[8] João Calvino, As Institutas, IV.10.30. (2006). Lutero (1483-1546), antes de Calvino teve insights semelhantes. Em 1523 confeccionou em latim a Forma da Missa e Comunhão e, em 1526, após várias solicitações, publicou uma ordem de culto em alemão. Na introdução dessa obra, afirmou que a ordem do culto por ele elaborada, não era rígida:

“Em primeiro lugar eu gostaria de pedir gentilmente e por amor de Deus a todos os que vivem ou quiserem seguir esta nossa ordem no culto, que de forma alguma façam dela uma lei rígida, nem enredem ou prendam a consciência de ninguém, mas que a usem na liberdade cristã enquanto, como, onde, quando e por quanto tempo acharem conveniente e útil. (…) Mas não estou dizendo que aqueles que já têm sua boa ordem ou que pela graça de Deus a possam melhorar, a abandonem para adotar a nossa. Porque não sou da opinião que toda a Alemanha devia seguir nossa ordem de Wittenberg. (…) Ordem é algo exterior. Por melhor que seja, ela pode acabar em abuso. Então já não é ordem, mas desordem. Por isso nenhuma ordem permanece em vigor nem vale por si mesma, como as ordens papais foram consideradas até agora. Mas a validade, o valor, o poder e a virtude de qualquer ordem está no seu uso adequado” (Missa e Ordem do Culto Alemão: In: Martinho Lutero, Pelo Evangelho de Cristo (Selecta de textos do Reformador), Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia; Sinodal, 1984, p. 218,219,231).

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