Teologia da Evangelização (88)

2.4.9.4. Uma demonstração prática da doutrina (Continuação)

Como indicativo do crescimento do Calvinismo na França e, ao mesmo tempo, de sua situação de insegurança, o Sínodo Geral de Paris (25-29/05/1559), que congregou representantes de mais de 60 igrejas, das mais de 100 que existiam na França, reuniu-se secretamente, tendo como moderador Fraçois de Morel, que foi pastor em Paris e em Genebra. Na ocasião, a Confissão Gaulesa foi revista, aprovada e ampliada em mais cinco capítulos, tendo um prefácio dedicado ao rei Francisco II (1560) e posteriormente, também foi apresentada por Beza a Carlos IX (1561).[1]  

          Estima-se que, em fins de 1561 já houvesse mais de 670 igrejas calvinistas erigidas em território francês.[2] Calcula-se que até 1562, ano do início da guerra civil na França, mais de 1 milhão de franceses tinham se convertido ao Protestantismo. Sugere-se que na época,  a França com uma população de 20 milhões de habitantes, tivesse cerca de 3 milhões de Huguenotes (Calvinistas) e, talvez, em dados otimistas, 2.150 comunidades, conforme informou  Coligny em março de 1562. Em dados mais pessimistas, pelo menos 1.250 igrejas.[3] 

          Algumas dessas congregações se tornaram muito grandes. Pierre Viret (1511-1571), grande amigo de Calvino, mesmo sendo de origem suíça, pastoreou uma igreja de oito mil membros comungantes de Nîmes.[4]

          Creio não ser exagerada a afirmação do então Curador do Museu Jean-Calvin em Noyon, Mours (1892-1975): 

Não há dúvida de que se o flagelo das guerras religiosas não tivesse atingido o país, a França teria se tornado  em grande parte protestante. O cardeal de Sainte Croix não falou, em uma carta enviada da França a Roma em 1565, de um “reino metade-huguenote’?[5]

          Calvino enquanto pôde, além de cuidar espiritualmente dos habitantes de Genebra,[6] continuou pastoreando essas igrejas à distância, atento aos acontecimentos, escrevendo e aconselhando os missionários, orando e preparando de forma intensa mais e mais candidatos ao ministério.

Mas, as perseguições e execuções acompanhavam proporcionalmente o crescimento da igreja.

          Calvino escrevia e implorava para que os huguenotes não revidassem. Em 16 de setembro de 1557, escreveu à Igreja de Paris demonstrando a sua sensibilidade para com a aflição daqueles irmãos:

Suplicamos-vos a colocardes em prática a lição que o Grande Mestre nos ensinou, isto é, a vivermos nossas vidas em paciência. Sabemos quão difícil é isto para a nossa carne, mas lembrai-vos também de que este é o tempo de lutar contra nós mesmos e nossas paixões, quando somos assaltados por nossos inimigos. (…) Somente estejais certos de que não estais realizando nada que não seja permitido por sua Palavra (…) Seria melhor que todos nós fossemos arruinados do que o evangelho de Deus ser exposto à acusação de que faz os homens pegarem em armas para sedição e tumultos; porque Deus sempre fará que as cinzas de seus servos deem fruto.[7]

          Em junho de 1559, escreve a irmãos franceses, sob severa perseguição, estimulando-os a perseverarem firmes no Senhor:

Se vós tendes de ser sacrificados para selar e ratificar vosso testemunho, que possais ter coragem para vencer todas as tentações que podem desviar-nos deste sacrifício.  (…) Como foi bem dito sobre a morte de Pedro, que ele seria conduzido por um caminho que não escolheu. (…) Assim, segundo seu exemplo, lutai valentemente contra vossas fraquezas, a fim de permanecerdes vitoriosos contra Satanás e todos os vossos inimigos. (…) Quanto mais o maligno tentar apagar a memória de seu nome da terra, mais Ele fará nosso sangue florescer pela força que Ele nos dá. (…) Guardai-vos para que não abandoneis o rebanho de Nosso Senhor Jesus assim como para não fugirdes da cruz.[8]

          O fato triste, diria, quase inevitável, que permeou a resistência à presença huguenote na França, é que muito sangue  foi derramado. Sem dúvida, isso foi um ônus extremamente pesado e doloroso para aqueles que desejavam liberdade para anunciar o Evangelho da paz e libertação.

          Foi preciso haver o Massacre em Vassy (1562),[9] seguido de vários embates, para que fosse acordada a paz de Amboise em 1563.[10] Calvino considerando os fatos, em uma carta dirigida à Eléanor de Roye (1535-1564), quem não poupou esforços para que houvesse a paz, disse (08.04.1563?): “Eu sempre aconselharia que as armas sejam postas de lado, e que todos nós pereçamos ao invés de entrar novamente nas confusões que temos testemunhado”.[11]

Maringá, 07 de outubro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Em 1571, tendo como moderador T. Beza (1519-1605), realizou-se o Sétimo Sínodo Nacional de La Rochelle. À ocasião, estavam presentes: a Rainha de Navarra, seu filho Henrique IV (1553-1610) e o Almirante Coligny (1519-1572). Nesse Sínodo, a Confissão foi revisada, reafirmada e solenemente sancionada por Henrique IV, passando, desde então a ser também chamada de “Confissão de Rochelle”.  A Confissão Gaulesa influenciou profundamente a Confissão Belga (1561) e a Confissão dos Valdenses (1655). (Vejam-se: Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. (Revised and Enlarged), Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), v. 1, p. 494-495; v. 3, p. 356. K. S. Latourette, Historia del Cristianismo, 4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. 2, p. 117; Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, Uma história da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 257; W. Walker,   História da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, v. 2, p. 111; Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: (1533-1633): In: W.S. Reid, ed. Calvino e sua influência no Mundo Ocidental, p. 97). Depois da chacina dos protestantes em Provence, em 1545, organiza pessoalmente uma coleta geral, subindo as escadarias dos edifícios repletos de refugiados para recolher a esmola de todos (Vejam-se: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 216ss.; André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, São Paulo: Edições Oikoumene, 1970, p. 45).

[2]Cf. Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 149-150; Richard Stauffer,  L Réforme (1517-1564),  Paris: Presses Universitaires de France, 1970, p. 99.

[3]Sobre essa temática,  vejam-se: Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 221-222; Scott J. Simmons, João Calvino e Missões: Um Estudo Histórico (http://www.monergismo.com/textos/jcalvino/calvino_missoes_scott.htm).(Consultado em 27.03.2021); Joel Beeke, Calvino e a Evangelização: In: Joel R. Beeke, org.,  Vivendo para Glória de Deus: uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, 2012, [293-306], p. 302; Thomas Schirrmacher (Ed.) Calvin and World Mission (http://www.worldevangelicals.org/resources/rfiles/res3_388_link_1338069512.pdf) (Consulta feita em 28.03.2021). Medeiros fornece-nos documentos importantes. (Veja-se: Elias Medeiros, O compromisso dos reformadores calvinistas com a propagação do evangelho a todas as nações. (https://www.martureo.com.br/wp-content/uploads/2017/10/o-compromisso-dos-reformadores_elias-medeiros.pdf) (Consultado em 26.03.2021); Michael A.G. Haykin, Calvino e o esforço missionário da Igreja. In: Joel R. Beeke, org., Calvino para hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 179-189].  Walker, talvez partindo de informes populares, sugere que a França à época, a França já possuía 400 mil protestantes (Cf. W. Walker, História da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, v. 2, p. 111) ou, um sexto da população, conforme estimativa seguida por Cairns (Cf. E.E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 257)  A grande obra de referência quanto a essas questões é: R.M. Kingdon, Geneva and the Coming of the Wars of Religion in France (1555-1563), Genève: Librairie E. Droz,  © 1956, 2007.

[4] Joel Beeke, Calvino e a Evangelização: In: Joel R. Beeke, org.,  Vivendo para Glória de Deus: uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, 2012, [293-306], p. 302.

[5] Samuel Mours, Le Protestantismo em France au seizième siècle, Paris: Librairie Protestante, 1959, p. 183.

[6]Na manhã do dia 22 de janeiro de 1545, Calvino foi chamado às pressas para atender a um tal John Vachat, habitante de Genebra que sofrendo com asma e tuberculose, em desespero, tentara o suicídio com duas facadas no estômago. Concomitantemente, foi chamado também cirurgiões-barbeiros que praticamente nada puderam fazer. Vachat devido às suas enfermidades já se encontrava bastante fragilizado. A autópsia viria revelar que, se não fosse isso, poderia ter sobrevivido. Calvino o encontrou ainda com vida. Lamenta por Satanás tê-lo seduzido a isso, o exorta, consola e aconselha. Ora com ele. O homem em meio a dores repete com Calvino as orações evidenciando possível arrependimento, vindo a óbito por volta das 12h. Este fato é conhecido por se encontrar nos Registros de Genebra, onde consta os depoimentos dos barbeiros e de outras pessoas que acompanharam o ocorrido. Porém, o documento original de Calvino relatando o fato, não. Uma pasta com vários documentos fora roubada  por  James Galiffe no século XIX e devolvida em 1905 por seus descendentes. No entanto, a carta-relatório autografada (23.01.1545) se extraviara. Depois de passar por várias mãos, o documento foi comprado por 70 mil libras e doado para o Museu Internacional da Reforma. No texto manuscrito, constatamos a sensibilidade cristã e pastoral de Calvino, especialmente se considerarmos a gravidade penal do suicídio. A despeito da solicitação de Calvino, o Tenente da Justiça por considerar o “caso escandaloso”, recusou como era habitual que John Vachat fosse sepultado segundo os ritos cristãos. Assim, Vachat foi enterrado sob o cadafalso, sem sepultura cristã. (Vejam-se: https://www.musee-reforme.ch/en/tresors/rapport-de-jean-calvin-aux-autorites-sur-le-suicide-de-jean-vachat/  (Consultada em (02.04.2021).

https://ge.ch/archives/media/site_archives/files/imce/photos_expos/Crises_et_revolutions/17_affaire_vachat.pdf (Consultada em 02.04.2021). http://dx.doi.org/10.24220/2447-6803v43n1a3695 (Consultado em 04.04.2021).  (A prática do suicida ser enterrado em lugar separado, era comum em Atenas conforme atesta Platão. Veja-se: Margaret Battin, Suicídio: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 2, [p. 652-656]. p. 653a).                                                                               

[7] In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 6 (Letters, Part 3), 1983,  [p. 359-363], p. 360-361.

[8]In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983, [p. 49-54], p. 50,52,53.

[9] Massacre de Vassy,  em Champagne, foi o assassinato em massa dos huguenotes promovido pelas tropas de Francisco, Duque de Guise, em Vassy, em 01.03.1562, quebrando brutalmente édito de tolerância, atacando uma comunidade huguenote legalmente reunida em um celeiro.(Cf. Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 119).  Este vento deu início a uma série de batalhas religiosas, terminadas com a assinatura do Édito Amboise no ano seguinte, em 19 de março de 1563.

[10]Edito de Amboise, ou Edito de Pacificação, foi assinado no Castelo de Amboise em 19.03.1563 por Catarina de Médici, pacificando num primeiro momento a França, restaurando aos Huguenotes, alguns privilégios religiosos e a garantia de certas liberdades políticas.

[11]Corpus Reformatorum (v. 47). Ioannis Calvini Opera Quae Supersunt Omnia, Guilielmüs Baum; Edüardüs Cünitz; Edüardüs Reüss, eds., Brunsvigae:  Apud C.A. Sohwetschke et Filium, 1879, v. 19, col. 688.  (Tradução inglesa: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983, p. 302). “Há dois fundamentos para uma guerra justa entre os humanos, que são: para a honra e adoração a Deus e para a segurança de todo o povo. Aqui estão as duas considerações que todos aqueles que governam e a quem Deus escolheu para portar sua espada devem ter: primeira, que a honra de Deus seja preservada e a religião seja mantida em sua pureza; e, segundo, que o povo seja mantido em paz. Aqueles que estão sentados no tribunal de justiça e têm superioridade são ordenados como oficiais de Deus para a proteção de seus súditos. Contudo, não devem se esquecer da coisa principal, a saber, que Deus quer manter seu império soberano e todo o povo deve prestar honra a ele. É assim que as guerras podem ser legítimas, a saber, se a honra de Deus for buscada e se os governantes tiverem em vista a paz e o bem-estar do povo. (João Calvino “Sermons on Second Samuel, v. 1, p. 267: In: Timothy George, org. Reformation Commentary on Scripture. Old Testament V: 1-2 Samuel, 1-2 Kings, 1-2 Chronicles. InterVarsity Press: Downers Grove, IL, 2016, p. 187-188  (Sermons on Second Samuel, v. 1. p. 451). (Devo esta referência ao Rev. Mauro Filgueiras Filho em correspondência particular).

One thought on “Teologia da Evangelização (88)

  • 1 de abril de 2023 em 20:25
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    bem interessante pastor Maia!!!! e o movimento reformado, observamos que depois que ocorreu tudo isso nunca se recuperou desse golpe de perseguição e ataque.

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