Teologia da Evangelização (19)

2.4.3. A Soberania de Deus e de sua graça (Continuação)

O homem como ser paradoxal[1] que é, tende a nutrir posições diferentes sobre o mesmo assunto, dependendo das circunstâncias que, amiúde são de caráter passional.

            Posso, por exemplo, defender a supremacia da lei, até que eu mesmo a tenha quebrado. Do mesmo modo, posso sustentar determinados princípios liberais ou conservadores, desde que a minha família não esteja em jogo, ou que outros interesses políticos não sejam afetados. Ou seja: tendemos a ser mais subjetivos do que imaginamos ou estaríamos dispostos a admitir.

            Lamentavelmente temos de admitir que somos mais dados a interesses do que a princípios. E o pior: o princípio é o meu interesse.

            Uma doutrina que facilmente é objeto de posicionamentos contraditórios é a soberania de Deus.[2] Gostamos de alardear a nossa liberdade, a nossa capacidade de escolha e persuasão. Quando assim fazemos, falar em soberania de Deus parece diminuir um pouco nossa autoconfiança e suposta autonomia; portanto, consideramos ser melhor deixá-la guardada em alguma gaveta para onde empurramos os papeis que não estão sendo utilizados e não sabemos bem o que fazer com eles.

            No entanto, quando percebemos que estamos sem recursos, sem perspectivas favoráveis, sem saber o que fazer, podemos, sem talvez nos dar conta, nos contentar com uma fé singela no cuidado de Deus e, podemos então dizer para nós mesmos: “Deus é soberano, Ele sabe o que faz”; “nada acontece por acaso…”.

            A bem da verdade, nós mesmos, crentes em Cristo, com certa frequência tendemos a adotar atitude semelhante.  Calvino capta bem isso ao dizer: “Mesmo os santos precisam sentir-se ameaçados por um total colapso das forças humanas, a fim de aprenderem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de Deus”.[3]

            Mas, afinal, Deus é ou não soberano? Parece que esta é uma das doutrinas mais repudiadas pelo homem natural e, ao mesmo tempo, é a doutrina mais consoladora para todos nós que cremos em Cristo Jesus, especialmente nos momentos de aflição.

            Uma das grandes dificuldades dos homens em todos os tempos é deixar Deus ser Deus;[4] recebê-lo tal qual Ele se revela, não cedendo à tentação de construí-lo dentro de nossos pressupostos culturais ou mesmo do nosso gosto pessoal.[5] Estamos dispostos a fabricar nossos deuses para que eles possam cobrir e preencher as brechas de nossa pretensa compreensão em busca de uma arrogante autonomia.

            Assim, quando consigo dominar a realidade, já não preciso de Deus; quando não, invoco este deus criado por mim para justificar as minhas crenças, expectativas e, ao mesmo tempo, a minha falta de fé.

Dentro desta perspectiva, onde há ciência não precisamos de Deus;[6] onde reina a ignorância há um espaço para um ser transcendente, destituído de sua glória, é verdade, mas, assim mesmo um “ser superior”. Aqui há o esquecimento proposital, de que o ateísmo é também uma questão de fé.[7] Posso crer que Deus existe, como também, crer que ele não existe. Em ambos os casos, a fé é essencial.

            No Antigo Testamento os judeus insensíveis aos seus próprios pecados, tomaram o aparente silêncio de Deus como uma aprovação a seus erros, projetando nele o seu comportamento. Nivelaram Deus a si mesmos e, deste modo, criam ter encontrado um álibi teológico para suas transgressões.[8] No entanto, Deus, no momento próprio, exporia diante deles os seus delitos: “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e porei tudo à tua vista” (Sl 50.21).

Calvino diz que o homem pretende usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz de si mesmo um deus e virtualmente se adora, quando atribui a seu próprio poder o que Deus declara pertencer-lhe exclusivamente”.[9]

            De fato, os homens estão dispostos a reconhecer espontaneamente diversas virtudes em Deus: o seu amor, sua graça, bondade, perdão, tolerância, provisão, etc. Agora, a sua soberania, jamais.[10]

            A rejeição ao Evangelho é, na realidade, uma rebeldia contra o domínio soberano de Deus. A negação da soberania de Deus é uma atitude que pode pavimentar o caminho para o ateísmo.Pink (1886-1952) entende que “negar a soberania de Deus é entrar em um caminho que, seguindo até à sua conclusão lógica, leva a manifesto ateísmo”.[11]

            Como sempre, desejosos de ser autônomos  a nossa dificuldade óbvia está em reconhecer a Deus como o Senhor que reina.[12] Esta é uma concorrência que não aceitamos com naturalidade e, na realidade, nos rebelamos contra ela. A nossa autonomia presumida é bastante ciosa de seus supostos direitos e poderes. Tendemos a ser bastante iluministas em nosso otimismo diante do que vemos no espelho.

A Palavra, por sua vez, nos desafia a aprender com ela a respeito de Deus e de seu Reino. O nosso Deus, entre tantas perfeições, é o Deus soberano, Sem este atributo, Deus não seria Deus: “Verdadeiramente reconhecer a soberania de Deus é, portanto, contemplar o próprio Deus soberano”, enfatiza Pink[13]

            No entanto, Jó demonstra a dificuldade de nossa compreensão, ao indagar: “Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?” (Jó 26.14). 

Mas, o fato que faz parte amplamente da experiência cristã, é que somente aquele que confia intensamente na soberania de Deus poderá encontrar a paz em meio às adversidades da vida.[14]

            Conhecer a Deus em sua soberania, portanto, é um dom da graça do soberano Deus. Aliás, nas palavras de Packer, é o “dom supremo”.[15] Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que possamos conhecer a nós mesmos e as demais coisas da realidade.

            Somente por obra e graça de Deus poderemos enxergar com clareza o que foi posto diante de nós reivindicando o status de realidade e aquilo que nos escondem, como se não existissem, mas, que, de fato tem o seu valor e significado. Somente Deus confere sentido à realidade e, portanto, à nossa vida.

Maringá, 17 de julho de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] “O ser humano tende a ser paradoxal” (Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 123).

[2] Pink lamenta: “Hoje, porém, mencionar a soberania de Deus em muitos ambientes, é falar uma língua desconhecida” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19).

[3] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.8), p. 22.

[4]“Dizer que Deus é soberano é declarar que Deus é Deus” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19).

[5]Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 32-35.

[6]Este otimismo secular foi sustentado primariamente por Nietzsche. Veja-se: Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 331.

[7]“O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo” (Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 23). “Portanto, os homens que rejeitam ou ignoram a Deus o fazem não porque a ciência ou a razão requeira que o façam, mas pura e simplesmente porque querem fazê-lo” (Henry H. Morris, The Bible has the Answer, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1971, p. 16. Apud D. James Kennedy, Por Que Creio, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 33). “Não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar firmemente na inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo” (Umberto Eco, In: Umberto Eco; Carlo Maria Martini, Em que creem os que não creem? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85). “Pode-se negar que a existência de Deus seja demonstrável. Não se pode demonstrar que Deus não existe” (Jean-Yves Lacoste, Ateísmo: In: Jean-Yves Lacoste, dir. Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 204). “A ideia de que a ciência ‘refuta’ a existência de Deus é o tipo de declaração simplista que se destaca de forma proeminente no recente ateísmo populista” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 76).

[8] “Em todos os lugares os ministros piedosos tem tido a experiência do mesmo tipo de conflitos; pois os homens sempre formam sua avaliação sobre Deus com base em si mesmos, e creem que Ele se satisfaz com exibição externa, porém não podem, sem a maior dificuldade, ser levados a oferecer-lhe a integridade de seu coração” (John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted),v. 7/1, (Is 1.11), p. 56).

[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 100.1-3), p. 549. Veja-se também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Caps. 1-3, p. 11-14.

[10] Kennedy diz precisamente isso: “O motivo por que tantas pessoas se opõem a essa doutrina (predestinação) é que elas querem um Deus que seja qualquer coisa, menos Deus. Talvez permitam-lhe ser algum psiquiatra cósmico, um pastor prestativo, um líder, um mestre, qualquer coisa, talvez… contanto que Ele não seja Deus. E isso por uma razão muito simples… elas mesmas querem ser Deus. Essa sempre foi a essência do pecado – o fato que o homem pretende ser Deus” (James Kennedy, Verdades que Transformam, São Paulo: Editora Fiel, 1981, p. 31).

[11]A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 21. Em outro lugar: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem ‘deuses’ de madeira e de pedra, enquanto os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus” (A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 28). “Defender a crença num ‘poder do alto’ nebuloso é balançar entre o ateísmo e um cristianismo total com suas exigências pessoais” (R.C. Sproul, Razão para crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 48).

[12]Ver o sermão de Spurgeon sobre Mt 28.15 citado por Pink. A.W. Pink, Os atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 32-33.

[13]A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 138.

[14] Veja-se: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 30.

[15] “Conhecer a Deus é o dom supremo da graça de Deus” (J.I. Packer, Conhecendo Deus: o mundo e a Palavra. In: Gabriel N.E. Fluhrer, ed. Firme Fundamento: A inerrante Palavra de Deus em um mundo errante, Rio de Janeiro: Anno Domini, 2013, p. 16).

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