Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (58)

10.4. “…. No vínculo de paz” (Ef 4.3)

A unidade da igreja é sedimentada por meio do vínculo da paz. Por isso a orientação do apóstolo: “Esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo (Su/ndesmoj) da paz” (Ef 4.3).

Estudemos um pouco o que a Bíblia nos ensina sobre a paz, especialmente o Novo Testamento:

 

10.4.1. Sua origem

 

O primeiro e mais importante aspecto desta paz com Deus não é a paz do nosso coração, mas o fato de que Deus está em paz conosco. ‒ Francis A. Schaeffer.[1]

 

A origem de nossa paz está em Deus, por isso, é totalmente inútil procurar a paz fora dele. Paulo escreve aos romanos: “E o Deus da paz (ei)rh/nh) seja com todos vós” (Rm 15.33) (Também: Rm 16.20; 1Co 14.33; 2Ts 3.16; Hb 13.20).[2] Barclay (1907-1978), resume bem: “Em última análise, a paz não é algo que o homem alcança – é algo que ele aceita”.[3]

A paz é de Deus porque dele procede e, também, porque o modelo da paz, nós o temos em Deus, aquele que não vive em ansiedade.[4]

 

10.4.2. O fundamento de nossa paz

10.4.2.1. A graça de Deus em Cristo

 

Nas saudações iniciais de Paulo em suas epístolas, encontramos a relação entre “graça” e “paz”. Ele diz: “Graça a vós outros e paz (ei)rh/nh), da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.3).

 

Paulo toma essas duas palavras – graça (xa/rij) (= saúde), que era a saudação dos gregos e, paz, saudação dos judeus – conferindo um sentido teológico: a paz é decorrente da graça de Deus. Ela é o produto da graça reconciliadora de Deus. Notemos que nas saudações de Paulo, ele nunca inverte esta ordem: a paz com Deus é resultado de sua própria graça ativa. Devemos observar, contudo, que a paz aqui deve ser entendida como o equivalente hebraico {Olf$ (shãlôm), “prosperidade espiritual”.[5]

 

A paz, enquanto resultado da graça, pressupõe um estado anterior de inimizade. O pecado nos colocou num estado de inimizade, hostilidade e ódio para com Deus: estávamos separados de Deus (Is 59.2).[6] O homem encontrava-se num estado de rebelião contra Deus (Is 65.2).[7] Portanto, a graça que nos vem por Cristo Jesus propiciou de forma eficaz a nossa reconciliação com Deus conduzindo-nos à paz. Agora, reconciliados, vivemos na paz, confiando inteiramente na promessa dele. A paz da reconciliação conduz-nos à paz interior e, em todas as nossas relações:[8] A graça de Deus, portanto, sempre antecede a paz. Fomos reconciliados com Deus por sua graça. Somos agraciados com a paz.

 

Lutero comentando Gl 1.3, escreveu:

 

Esses dois vocábulos, graça e paz, abraçam o cristianismo universal. A graça perdoa o pecado, a paz tranquiliza a consciência (…). Esses dois termos (…) encerram todo o cristianismo. A graça contém o perdão dos pecados e a paz, uma alegre e tranquila consciência. A paz não pode ser adquirida, se o pecado não foi perdoado, pois a lei acusa a consciência e a aterroriza por causa do pecado e o pecado, que a consciência sente, não pode ser removido por peregrinações, vigílias, trabalhos, esforços, jejuns ou quaisquer outras obras. Pelo contrário, o pecado aumenta com as obras, pois quanto mais nos esforçamos e suamos para remover o pecado, tanto mais o cometemos.[9]

 

10.4.2.2. Mediante a obra de Cristo

 A graça de Deus concretiza-se em Cristo, por meio de seu sacrifício vicário. O Evangelho consiste na publicação solene e reivindicatória da graça de Deus plenamente revelada em Cristo (Jo 1.16-17). No Evangelho nós temos a graça, a justificação e a vida

 

Paulo diz que Cristo é a nossa paz:

 

Em Cristo Jesus, vós [gentios], que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz (ei)rh/nh), o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz (ei)rh/nh), e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz (ei)rh/nh) a vós outros que estáveis longe [gentios] e paz (ei)rh/nh) também aos que estavam perto [judeus]; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. (Ef 2.13-18). (Ver: Cl 1.20-22).[10]

 

Paulo nos ensina que em Cristo passamos a ter paz com Deus e também com o nosso próximo.[11] Dentro do propósito imediato de Paulo, ele demonstra que os gentios, distantes das promessas de Israel, e os judeus, antes presos em suas tradições distantes das Escrituras, agora têm acesso vivo livre a Deus em Cristo, pelo mesmo e único Espírito. (Hb 10.19-23).

 

Notemos que em tudo isso a iniciativa é de Deus. O Deus Triúno deseja a paz e providencia os meios para isso: “Tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo (…). Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.18,19), escreve Paulo.

 

“A cruz trouxe a paz, embora não houvesse paz na cruz. Foi uma cena caótica, mas a cruz proporcionou a justiça que, por si só, traz a paz verdadeira”, interpreta John MacArthur.[12]

 

10.4.2.3. Propiciação

1) Pelo Evangelho

 

A paz proveniente de Deus, revelada na obra de Cristo, chega a nós pelo Evangelho. Pedro, anunciando o Evangelho na casa de Cornélio, diz: “Esta é a palavra que Deus enviou aos filhos de Israel, anunciando-lhes o evangelho da paz (ei)rh/nh), por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de todos” (At 10.36).

 

O Evangelho é uma mensagem de paz: “Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz (ei)rh/nh) (Ef 6.15). A proclamação do evangelho sempre envolve uma afirmação da situação de guerra e inimizade em que o homem se encontra fora de Cristo. Justamente por estarem em guerra contra Deus, é que são conclamados a se arrependerem e crerem no Evangelho encontrando a verdadeira paz oferecida por Deus. Essa é a essência da Boa Nova: há reconciliação para todos que se arrependerem de seus pecados e depositarem sua fé integralmente em Cristo como seu Senhor e Salvador.

 

2) Pela justificação

 

Deus, pela justiça de Cristo, declara-nos justos e, por meio deste ato, temos paz com Deus: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz (ei)rh/nh) com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1).

 

A paz flui da justificação.[13] Deus nos declara justos em Cristo perdoando todos os nossos pecados, promovendo assim a paz

 

     “Os homens, pois, só serão bem-aventurados depois que forem gratuitamente reconciliados com Deus e reputados por ele como justos”, declara Calvino.[14]

 

 

São Paulo, 22 de maio de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 *Leia esta série completa aqui.


[1] Francis A. Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo: A verdade de Romanos 1-8, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 123.

[2]“E o Deus da paz (ei)rh/nh), em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás…” (Rm 16.20). “Porque Deus não é de confusão, e sim de paz (ei)rh/nh) (1Co 14.33). Ora, o Senhor da paz (ei)rh/nh), ele mesmo, vos dê continuamente a paz (ei)rh/nh) em todas as circunstâncias. O Senhor seja com todos vós”  (2Ts 3.16). Ora, o Deus da paz (ei)rh/nh) .…” (Hb 13.20).

[3]William Barclay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 85.

[4]Vejam-se: F.F. Bruce, Filipenses, Florida: Editora Vida, 1992, (Fp 4.7), p. 154.

[5] Shãlôm, que ocorre certa de 250 vezes no Antigo Testamento, tem o sentido de: “inteireza, integridade, harmonia e realização”. Na forma de saudação, podemos observar que, desejar shãlôm é o mesmo que abençoar (2Sm 15.27); retê-lo, equivale a amaldiçoar (1Rs 2.6). “Shalõm realmente significa tudo quando contribui para o bem do homem, tudo que faz com que a vida seja verdadeiramente vida” (William Barclay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 82-83). No entanto, o principal sentido da palavra está relacionado à atividade de Deus na aliança da graça: “Em quase dois terços de suas ocorrências, shãlôm descreve o estado de plenitude e realização, que é resultado da presença de Deus” (Garry G. Lloyd, Shãlêm: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1573).

[6] “… as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2).

[7] “Estendi as mãos todo dia a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, seguindo os seus próprios pensamentos” (Is 65.2).

[8] Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 40.

[9] Martinho Lutero, Comentário à Epístola aos Gálatas: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS., Canoas, RS.: Sinodal; Concórdia; Ulbra, 2008, v. 10,  (Gl 1.3), p. 48.

[10]20 E que, havendo feito a paz (* ei)rhnopoie/w) pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. 21 E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, 22 agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis(Cl 1.20-22). (* Este verbo só ocorre aqui).

[11] “Não podemos ter paz dentro de nós mesmos ou paz com outras pessoas se não tivermos paz com Deus. (…) A paz com Deus é a base da paz dentro de nós mesmos e da paz com outras pessoas” (Jerry Bridges, A Vida Frutífera, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 74).

[12]John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 157.

[13] Veja-se: Thomas Watson, A Fé Cristã, estudos baseados no breve catecismo de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 268.

[14]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 32.1), p. 39.

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