Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (60)

10.4.4. Nossa responsabilidade

 

Como vimos, a nossa responsabilidade é preservar a unidade, tendo a paz de Deus como elemento orientador. Pedro, na sua segunda epístola trata deste assunto, a paz, mostrando como a igreja deve se comportar na era presente: Vivendo em paz. A paz, como todo o nosso bem-estar espiritual, está relacionada à nossa submissão ao Espírito Santo. “O pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz (ei)rh/nh) (Rm 8.6).

 

A paz com nossos irmãos não é algo mecânico, resultado natural de nossa paz com Deus. Em Cristo fomos reconciliados com Deus. A unidade da Igreja é uma realidade em Cristo. No então, somos pecadores, não nos tornamos perfeitos. O pecado ainda que não mais nos domine, continua a exercer influência. Por isso, cabe à Igreja preservá-la mediante um comportamento fundamentado nos princípios bíblicos. Jesus Cristo na Oração Sacerdotal ora para que a unidade cristã já existente seja aperfeiçoada (Jo 17.22-23).[1]

 

A verdade bíblica, é que nossa paz com Deus deve refletir-se em nossa paz com o nosso próximo, cultivando-a e preservando-a. Paulo, assim se despede da igreja de Corinto: “Quanto ao mais, irmãos, adeus! Aperfeiçoai-vos, consolai-vos, sede do mesmo parecer, vivei em paz (ei)rhneu/w); e o Deus de amor e de paz (ei)rh/nh) estará convosco (2Co 13.11).

 

Paulo apresenta uma recomendação preventiva: “Seja a paz (ei)rh/nh) de Cristo o árbitro (brabeu/w)[2] em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos (Cl 3.15). As nossas atitudes, decisões e escolhas, devem ser dirigidas pela paz de Cristo que arbitra, governa e lidera o nosso coração. Desse modo, havendo pessoas que dificultem a paz, devemos tentar promovê-la.[3]

 

Devemos manifestá-la em nossa cotidianidade. “Se possível, quanto depender de vós, tende paz (ei)rhneu/w) com todos os homens(Rm 12.18).[4] Como nem sempre nos parece possível, devemos persegui-la, buscá-la intensamente.

 

Ao jovem Timóteo, Paulo exorta: Foge (feu/gw),[5] outrossim, das paixões da mocidade. Segue (diw/kw)[6] a justiça, a fé, o amor e a paz (ei)rh/nh) com os que, de coração puro, invocam o Senhor” (2Tm 2.22). (Do mesmo modo: Hb 12.14).

 

A paz, portanto, nunca deve ser à revelia da justiça e do amor. Paz na injustiça é apenas um mascaramento do sofrimento e um aumento da amargura que se revelará de forma ainda mais grave. Por outro lado, a paz em detrimento do amor pode ser apenas uma concessão racional cuja durabilidade logo se extinguirá. “Segundo a visão de Deus, paz é muito mais do que a ausência de algo. É a presença da justiça que produz relacionamentos verdadeiros. A paz não é apenas a suspensão da guerra; a paz é a criação da justiça que reúne inimigos em amor”, argumenta MacArthur.[7]

 

Jesus Cristo diz ao Pai que transmitiu a sua glória aos seus discípulos para que eles fossem aperfeiçoados (tele/iow)[8] na unidade” (Jo 17.23). Na realidade, para que fossem aperfeiçoados na condição de um, tendo o Pai e Filho como modelo (Jo 17.22). Ele já se referira ao Pai dizendo: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30).  Nesta oração, Jesus Cristo usara este verbo (tele/iow) para descrever a concretização de sua missão (Jo 17.4/Jo 19.28[9]).

 

            Calvino comenta que “A ajuda mútua que as diferentes partes do corpo oferecem umas às outras, não é considerada pela lei da natureza como um favor, mas, sim, como algo lógico e normal, cuja negativa seria cruel”.[10]

 

Leiamos mais uma vez o que Paulo escreveu aos efésios: Esforçando-vos diligentemente (Spouda/zw) por preservar (thre/w) a unidade do Espírito no vínculo (Su/ndesmoj) da paz” (Ef 4.3). A ideia expressa neste substantivo, Su/ndesmoj,[11] é a de unir, manter as coisas ligadas, ligar, algemar, prender, amarrar, acorrentar. (*At 8.23; Ef 4.3; Cl 2.19; 3.14). “A paz promove a perpetuação da unidade”.[12] A paz enlaça, envolve a unidade com as cordas do amor. (Veja-se: Cl 3.14).[13]

 

Não devemos permitir que a “unidade do Espírito” seja abalada em nosso relacionamento. A unidade é obra do Espírito, mas cabe a nós viver a sua plenitude no vínculo da paz (Rm 12.18) e no amor de Cristo (Jo 13.34-35; 15.12,17). Conforme já indicamos, o próprio tempo verbal de “esforçando-vos”, (Spouda/zw) (particípio presente), apresenta o conceito de um esforço contínuo, sem esmorecimento.[14]

 

Comentando sobre o egoísmo humano que gera divisões na Igreja e, ao mesmo tempo, a falta de tolerância, Calvino escreve exortando-nos a amar os nossos irmãos:

 

Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se torna difícil acomodarem-se aos modos das demais pessoas. Os ricos invejam uns aos outros, e raramente se encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos entre seus irmãos. A menos que haja similaridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pessoais, ou vantagens que nos unam, será muitíssimo difícil manter uma perene comunhão entre nós. Essa advertência, pois, se torna mais que necessária a todos nós, a fim de sermos encorajados a amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem Deus nos uniu. Torna-se urgente que abracemos com fraternal benevolência àqueles que nos são ligados por uma fé comum. É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está bem alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva.[15]

 

Em 19 de agosto de 1561, na Dedicatória de seu comentário do Profeta Daniel, Calvino fala de seu esforço por manter a paz – o que nem sempre tem sido possível – e, ao mesmo tempo, estimula seus irmãos a não ultrapassarem determinados limites. Escreve:

 

Mais ainda, é vossa incumbência, amados irmãos, tomar prudente cuidado para que a verdadeira religião possa novamente readquirir uma posição sã; isto é, até onde cada um tiver o poder e a vocação. Não é necessário dizer o quanto tenho lutado para remover toda e qualquer ocasião geradora de tumultos até agora. Clamo aos anjos e a vós para testemunhardes diante do supremo juiz que não é de minha responsabilidade que o progresso do reino de Cristo não tenha sido calmo e inofensivo. De fato, julgo ser em decorrência de meu cuidado que pessoas particulares ainda não passaram dos limites.[16]

 

A unidade da Igreja revela ao mundo o fato de que Deus nos ama como ama a seu Filho unigênito e, que este amor, se revelou de forma insofismável, na vinda do seu Filho amado para morrer pelos pecadores (Jo 3.16/Jo 17.21-23). Desta forma, a Igreja é o testemunho histórico do amor de Deus.

 

Francis Schaeffer (1912-1984), comentando sobre a nossa responsabilidade, diz:

 

Não podemos esperar que o mundo creia que o Pai mandou o Filho, que as reivindicações de Jesus sejam verdadeiras, e que o cristianismo seja verdadeiro, a não ser que o mundo veja alguma realidade na unidade de cristãos verdadeiros.[17]

 

Jesus Cristo considerou bem-aventurado os promotores da paz: “Bem-aventurados os pacificadores (ei)rhnopoio/j),[18] porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5.9). Tiago diz que a sabedoria concedida por Deus, “lá do alto”, “é primeiramente pura; depois pacífica (ei)rhniko/j)[19] (Tg 3.17).

 

A sabedoria concedida por Deus não é intrigante nem facciosa; ela não está contaminada pelo espírito de discórdia e divisão, antes, é direcionada para promover a paz e a edificação na Palavra. A grande estratégia da sabedoria é promover a paz.

 

A Igreja, portanto, deve estar comprometida com a paz: procurar a paz, evitar as contendas e as atitudes que provocam dissensões.

 

Pedro, então, diz que a Igreja deve se esforçar para que Cristo quando voltar a encontre em paz com Deus e com o seu semelhante (2Pe 3.14).

 

Devemos procurar a paz, não a divisão e os mexericos que causam tanto mal à vida da Igreja. Lembremo-nos, contudo, que o fundamento da paz está em Cristo Jesus, não na acomodação do erro.

 

Temos um exemplo importante em Calvino. Conforme já citamos, o Reformador mesmo desejando a paz, entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade.

 

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer controvérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema, é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do reino de Cristo, são benditas.[20]

 

Portanto, zelemos por nossa Igreja, estejamos atentos para nos encontrar com o Senhor. Esforcemo-nos para que ele nos encontre em paz: em paz com Deus e com os homens, fundamentados na verdade.

 

 

São Paulo, 22 de maio de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 *Leia esta série completa aqui.

 


[1] “O que Ele pede em oração aqui é que esta união, que já existe, seja guardada, seja continuada e seja preservada por Seu Pai” (D.M. Lloyd-Jones, Crescendo no Espírito. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006 (Certeza Espiritual: v. 4), p. 157).

[2] Esta palavra só ocorre aqui. Ela tem o sentido também de “dar prêmios”, “julgar”, “reger”. No grego clássico, o brabeu/w funcionava como juiz de um jogo. No entanto a palavra também era empregada de forma metafórica, significando “liderar”, “reger” e “determinar”. A forma brabei=on ocorre 2 vezes no NT. sendo traduzida por “prêmio” (1Co 9.24 e Fp 3.14).

[3]Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos e paz (ei)rhneu/w) uns com os outros” (Mc 9.50).

[4]Aparta-te do mal e pratica o que é bom; procura a paz e empenha-te por alcançá-la” (Sl 34.14).

[5] O verbo, no presente imperativo indica uma ação que deve se tornar um hábito de vida.

[6]O verbo está no presente imperativo ativo. Associando-se o fugir ao seguir, temos um comportamento constante e complementar que deve fazer parte da conduta cristã.

[7]John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 151.

[8] A palavra tem o sentido de “cumprir”, “completar” (At 20.24); “terminar” (Lc 2.43; 13.32); “realizar” (Jo 4.34; 5.36), “consumar” (Jo 17.4; 19.28; At 19.28; Tg 2.22), “aperfeiçoar”; ”tornar perfeito”; “aperfeiçoado” (2Co 12.9; Hb 2.10; 5.9; 7.19; 9.9; 10.1,14;11.40; 12.23; 1Jo 2.5; 4.12,17,18); “perfeito” (Hb 7.28; 1Jo 4.18); “perfeição” (Fp 3.12).

[9]“Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado (tele/w), para se cumprir (tele/iow) a Escritura, disse: Tenho sede” (Jo 19.28).

[10]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 39.

[11]O verbo sunde/w ocorre uma única vez no NT (Hb 13.3). Ele é constituído de duas palavras su/n, “junto com” e de/w, “amarrar”, “atar”, “prender”, “algemar”, “casar” (Mt 12.29; 16.19; Lc 13.16; Jo 19.40; At 9.2; 21.11,13,33; Rm 7.2; 1Co 7.27, etc.). Do mesmo modo, o substantivo (Su/ndesmoj) é composto de su/n, “junto com” e desmo/j, “prisão”, “cadeia”, “algemas” (Lc 13.16; At 23.29,31; Fp 1.7,13,14,17; 2Tm 2.9, etc.). No texto de Efésios, Paulo já empregara a expressão para si, como “prisioneiro de Cristo Jesus” (Ef 3.1) e “prisioneiro do Senhor” (Ef 4.1). Em ambos os textos, a palavra é de/smioj, expressão muito utilizada por Lucas e pelo próprio Paulo para falar de suas prisões. Ver: At 16.25; 23.18; 25.14; 27; 28.17; 2Tm 1.8; Fm 1,9.

[12]William Hendriksen, Exposição de Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef 4.2-3), p. 230.

[13]“Acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo (su/ndesmoj) da perfeição (teleio/thj) (Cl 3.14).

[14] Lloyd-Jones interpretando o emprego de Spouda/zw no texto, diz: “Devemos apressar-nos a fazer alguma coisa, a mostrar grande interesse, a expressar solicitude – ‘esforçando-vos para guardar’. Acima de tudo mais, diz o apóstolo, como cristãos nesta vocação para a qual vocês foram chamados, apressem-se a fazer isto, sejam diligentes quanto a isto, nunca o esqueçam, seja esta a coisa principal da sua vida; acima de todas as outras coisas, mostrem grande interesse e solicitude com respeito a unidade que existe entre vocês” (D.M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, p. 36-37).

[15]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272-273.

[16]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 26.

[17] F.A. Schaeffer, O Sinal do Cristão, Goiânia, GO.: ABUB; APLIC., 1975, p. 24. Veja-se também, A. Richardson, Introdução à Teologia do Novo Testamento, São Paulo: ASTE., 1966, p. 286-287. Em conversa que Schaeffer teve com Lloyd-Jones em Londres (?), este o chamou a atenção para o fato de que no divisionismo fundamentalista nos Estados Unidos estaria, por vezes, se excedendo na falta de bondade (Cf. William Edgar, Francis Schaeffer e a vida cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 52).

[18] Esta palavra só ocorre aqui.

[19] Esta palavra ocorre duas vezes no NT.: Hb 12.11; Tg 3.17.

[20]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1996, (1Co 14.33), p. 437.

One thought on “Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (60)

  • 28 de maio de 2019 em 19:31
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    A paz com Deus só encontramos em Cristo.

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