O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (6)

2. Filosofia e fé Cristã

    As definições apresentadas ao longo da História sobre o significado da Filosofia, têm sido contraditórias e, muitas vezes, apaixonadas. Isto acrescenta mais um dado problemático à definição da Filosofia. Não nos cabe aqui fazer uma apologia da Filosofia mas, sim, demonstrar que os conceitos díspares ou mesmo antagônicos, contribuem para aumentar o grau de dificuldade à tarefa de definir com segurança a Filosofia.[1] Vejamos alguns conceitos.

    Para Aristóteles (384-322 a.C.)  –  Pai da História da Filosofia  –, Sofi/a e Filosofi/a tinham o mesmo significado.[2] Ele dizia ser a Filosofia, “a ciência da verdade”.[3]

    Platão (427-347 a.C.)  –  discípulo de Sócrates (469-399 a.C.) e mestre de Aristóteles  –,  por sua vez, observou que a Filosofia era uma ciência que nos leva a fazer e a saber utilizar daquilo que fazemos. O que adiantaria, argumenta ele, saber transformar as pedras em ouro, se não soubéssemos utilizar o ouro?[4]

    No período posterior a Aristóteles, a Filosofia adquiriu uma conotação exclusivamente “prática” e instrumental para a vida.[5] Para os epicureus, por exemplo, a Filosofia consistia na busca da felicidade por meio da razão.

    Conforme já observamos em outro lugar, Epicuro (341-270 a.C.) não estava interessado em criar um sistema lógico de pensamento, com princípios que conduzissem a razão à verdade. Antes, a sua preocupação (se é que podemos usar este termo), era mais pragmática; ele desejava conseguir a paz, a tranquilidade e a felicidade; tudo isto, no entanto, sem ostentação. Desta forma, a Filosofia, tinha um sentido puramente prático e se pudermos usar o termo, diríamos, existencial. Nesta perspectiva, ele escreveu: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma”.[6]

    A relação entre Filosofia e Fé Cristã, foi alvo de calorosas disputas entre os Pais da Igreja. A assimilação cristã da “cultura pagã”, envolvendo a “Filosofia” e a “Retórica”, não foi sem resistência já que nem todos concordavam em pagar um preço considerado por demais elevado. A questão que permanecia era: a igreja pode simplesmente deixar de lado as contribuições filosóficas, literárias, poéticas “pagãs” ou, pode valer-se delas? As respostas foram diferentes.

 A. Responderam sim à Filosofia

1) Justino, filósofo e Mártir (c. 100-c.165 AD), entendia que a Filosofia era “efetivamente, e na realidade o maior dos bens, e o mais precioso perante Deus, ao qual ela nos conduz e recomenda. E santos, na verdade, são aqueles que à filosofia consagram sua inteligência”.[7] Em outro lugar, declara:

A felicidade é a ciência do ser e do conhecimento da verdade, e a felicidade é a recompensa desta ciência e deste conhecimento.[8]

Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável.[9]

Justino

    2) Clemente de Alexandria (c.153-c.215 AD) apreciava a Filosofia conferindo-lhe um caráter bastante instrumental. Escreveu:

Até a vinda do Senhor a filosofia foi necessária aos gregos para alcançarem a justiça. Presentemente ela auxilia a religião verdadeira emprestando-lhe sua metodologia para guiar aqueles que chegam à fé pelo caminho da demonstração (…). Assim a filosofia foi um pedagogo que levou os gregos a Cristo (…), como a lei levou a Cristo os hebreus. A filosofia foi um preparo que abriu caminho à perfeição em Cristo.[10]

    Clemente acredita que a filosofia é boa e, que, por isso, deve ser estudada.

É inconcebível que a filosofia seja má, visto que torna os homens virtuosos. Portanto ela deve ser obra de Deus, que só pode fazer o bem; aliás, tudo o que vem de Deus é dado para o bem e recebido para o bem. E, por sinal, os homens maus não costumam interessar-se pela filosofia.[11]

Clemente

   B. Responderam não à Filosofia

1) Hérmias: No final do segundo século (?), um personagem obscuro, Hérmias, escreveu um pequeno tratado – Escárnio dos Filósofos Pagãos – que, se não é relevante em termos de ideias, reflete o pensamento antipagão e contrário à Filosofia Grega dominante em alguns círculos cristãos.

    Hérmias desfila o pensamento de vários filósofos gregos mostrando como eles se contradizem e se anulam, nada acrescentando. A sua tese é que “a sabedoria deste mundo começou com a apostasia dos anjos, e esta é a causa pela qual os filósofos expõem as suas doutrinas sem estar em harmonia ou de acordo entre si”.[12]

    Assim, conclui o seu trabalho:

Expus amplamente tudo isso para demonstrar a contradição que existe nas doutrinas dos filósofos e como a investigação das coisas os leva até o infinito e indeterminado. O objeto deles é incomparável e inútil, pois não é confirmado por nenhum fato, nem por nenhum raciocínio claro.[13]

    2) Taciano, o Sírio (c. 120-c.180 AD), mesmo sendo discípulo de Justino,[14] não acompanha o seu mestre neste ponto. Escrevendo por volta do ano 170, ironiza os gregos, dizendo:

Renunciamos à vossa sabedoria, por mais que algum de nós tenha sido extremamente ilustre nela. De fato, segundo o cômico, tudo isso não passa de “galhos secos, palavrório afetado, escolas de andorinhas, corruptores da arte”, e os que se deixam dominar por isso sabem apenas roncar e emitir grasnados de corvos. A retórica que compusestes para a injustiça e a calúnia, vendendo a peso de ouro a liberdade de vossos discursos, e muitas vezes o que de imediato vos parece justo, logo o apresentais como coisa não boa; a poesia, porém, vos serve para cantar as lutas, os amores dos deuses, e a corrupção da alma. Com a vossa filosofia, o que produzistes que mereça respeito?[15]

    Em outro lugar, continua: “Vós sois assim, gregos, elegantes no falar mas loucos no pensar, pois chegastes a preferir a soberania de muitos deuses em vez da monarquia de um só Deus, como se acreditásseis estar seguindo demônios poderosos”.[16]

3) Tertuliano (c.160-c.220 AD), adversário ferrenho da Filosofia Grega, demonstra que muitos conceitos heréticos foram buscados nos escritos pagãos. Entre outros ataques àqueles que tentavam recorrer à filosofia como auxílio, elabora a sua famosa construção:

Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a natureza e os decretos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia (…).

Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja?[17] A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estoico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer.[18]

Tertuliano

 São Paulo, 04 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Sobre isto, observou W. Dilthey (1833-1911), em 1907: 

   “O nome filosofia ou filosófico tem, segundo a época e o lugar, significados diferentes e as criações espirituais que receberam este nome pelos seus autores são tão diversas, que pareceria que as diferentes épocas teriam associado à formosa palavra filosofia, criada pelos gregos, imagens espirituais sempre diferentes .(…) Cada um determina como filosofia um círculo particular de fenômenos e deduz dele os outros fenômenos designados com o nome de filosofia”  (Wilhelm Dilthey, Essência da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, (1984), p. 8 e 54. Veja-se  também: Johannes Hessen,  Tratado de Filosofía, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1957, v. 1. p. 18.

[2]Aristóteles, Metafísica, São Paulo, Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.1.

[3]Aristóteles, Metafísica,IIa. 1.

[4]Platão, Eutidemo, 288 e 290b.

[5] Johannes Hessen,  Tratado de Filosofía, v. 1, p. 15.

[6]Epicuro, Antologia dos Textos de Epicuro, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 5), 1973, I, p. 21.

[7]Justino, Diálogo com Trifão, 2: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds.  Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 195.

[8]Justino, Diálogo com Trifão, 3: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, v. 1, p. 196.

[9]Justino, Segunda Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, XIII.4. p. 104

[10]Clemente, Stromata, I.5: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, v. 2, p. 305.

[11]Clemente, Stromata, VI.17: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers,v. 2, p. 517.

[12] Hérmias, o Filósofo, Escárnio dos Filósofos Pagãos, 1. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, (Patrística, 2), p. 305.

[13] Hérmias, o Filósofo, Escárnio dos Filósofos Pagãos, 10. In: Padres Apologistas, p. 311.

[14] Cf. Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 51.

[15]Taciano, Discurso contra os Gregos, 1-2. In: Padres Apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 66.

[16]Taciano, Discurso contra os Gregos, 14. In: Padres Apologistas,p. 80.

[17] Mais tarde, no período da Reforma, Erasmo perguntaria: “O que há de comum, por misericórdia, entre Cristo e Aristóteles?” (Erasmo, Opus epistolarum, v. 2, p. 101. Apud Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 70.

[18]Tertulian, Da Prescrição dos Hereges, VII: In: Alexander Roberts; James Donaldson, editors. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, 246.

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