O PENSAMENTO GREGO E A IGREJA CRISTÃ: ENCONTROS E CONFRONTOS – ALGUNS APONTAMENTOS (3)

Xenófanes faz uma crítica mordaz a Homero e Hesíodo:

Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.
Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério, e fraudes recíprocas.
Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.
Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma.
Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos.[1]

Xenófanes propunha uma visão aparentemente próxima ao monoteísmo ou pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico”,[2] mas, ainda assim, cosmológico, identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo,[3] como sendo Deus.[4] Xenófanes escreve: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais”.[5] Na realidade, Xenófanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos homens.[6]

Reale e Antiseri acentuam que “depois das críticas de Xenófanes, o homem ocidental poderá nunca mais conceber o divino segundo formas e medidas humanas”.[7]

Heráclito – a quem, juntamente com Sócrates, Justino considera cristão antes de Cristo[8] –, ridiculariza o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, dirigindo a sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações feitas às imagens:

Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis.[9]

Talvez isto revele o que Heráclito expressa no Fragmento 79: “O homem é infantil frente à divindade, assim como a criança frente ao homem”. Todavia devemos ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via.[10]

Heráclito, fugindo da ideia de fatalismo, entendia que o homem é responsável pelos seus atos, portanto, afirma: “O caráter é para o homem um demônio” (dai/mwn). (Frag., 119).[11]

Empédocles fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:


[1]Xenófanes, Fragmentos, 11-16. In: Gerd A. Bornheim, org. Os filósofos Pré-Socráticos, 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 32. Mais tarde, um escritor cristão do segundo século, fazendo uma apologia do Cristianismo – que estava sendo severamente perseguido durante o reinado de Adriano (117-138 AD), a quem destina o seu escrito –, critica o politeísmo grego: “Os gregos, que dizem ser sábios, mostraram-se mais ignorantes do que os caldeus, introduzindo uma multidão de deuses que nasceram, uns varões, outros fêmeas, escravos de todas as paixões e realizadores de toda espécie de iniquidades. Eles mesmos contaram que seus deuses foram adúlteros e assassinos, coléricos, invejosos e rancorosos, parricidas e fratricidas, ladrões e roubadores, coxos e corcundas, feiticeiros e loucos. (…) Daí vemos, ó rei, como são ridículas, insensatas e ímpias as palavras que os gregos introduziram, dando nome de deuses a esses seres que não são tais. Fizeram isso, seguindo seus maus desejos, a fim de que, tendo deuses por advogados de sua maldade, pudessem entregar-se ao adultério, ao roubo, ao assassínio e a todo tipo de vícios. Com efeito, se os deuses fizeram tudo isso, como não o fariam também os homens que lhes prestam culto? (…) Os homens imitaram tudo isso e se tornaram adúlteros e pervertidos e, imitando seu deus, cometeram todo tipo de vícios. Ora, como se pode conceber que deus seja adúltero, pervertido e parricida?” (Aristides de Atenas, Apologia,I.8-9. In: Padres apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 43-45).

[2] W.K.C. Guthrie, Os sofistas,p. 211.

[3]Ver: Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, São Paulo: Paulus, 1990, v. 1, p. 49.

[4] Aristóteles, Metafísica,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.5, p. 223.

[5] Xenófanes, Fragmento,23.

[6] Cf. Étienne Gilson, O espírito da filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 55.

[7]Giovanni Reale; Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, v. 1, p. 48.

[8]Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 46.3. p. 61-62.

[9]Heráclito, Frag., 5. Veja-se: também: Fragmento, 14. Sobre Heráclito, Bréhier comenta: “A sabedoria de Heráclito despreza o que ao vulgo se refere: a começar pela religião popular, a veneração das imagens e, particularmente, os cultos misteriosos, órficos ou dionisíacos (Frags., 5,14,15), com suas ignóbeis purificações pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos homens sobre o além” (É. Bréhier, História da filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1, p. 53).

[10]Heráclito, Frags., 14/67.

[11]Lembremo-nos que para os gregos o homem ao nascer está ligado a um dai/mwn (“deus”, “deusa”, “poder divino”, “destino”, “sorte”) e, que este determina o seu destino para o bem ou para o mal. Notemos que a palavra grega para felicidade é eu)daimoni/a (bom demônio). No fragmento de Heráclito, ele parece estar criticando a concepção prevalecente de “destino”, trazendo para o homem a responsabilidade de sua conduta. (Veja-se: F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico,2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 47-48). Kirk e Raven comentam: “dai/mwn significa aqui simplesmente um destino pessoal do homem; este é determinado pelo seu próprio caráter, sobre o qual o homem tem um certo domínio, e não por poderes externos e frequentemente caprichosos que atuam, talvez, através de um ‘gênio’ atribuído a cada indivíduo pelo acaso ou Sorte” (G.S. Kirk; J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos,2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 216-217).

Dai/mwn significa “deus”, “deusa”, “destino”, “demônio”, “poder sobre-humano”. Dai/mwn é uma palavra mais geral do que Qeo/j, ainda que esta não seja precisa. Assim como “qeo/j”, “Dai/mwn” também é de terminologia incerta. Sugere-se que a palavra venha de dai/omai (= “dividir”, “partilhar”), tendo o significado de “dilacerar”, “separar”, e, portanto, estando relacionada com a concepção de dai/mwn como aquele que consome o corpo. (Veja-se: Werner Foerster, dai/mwn: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 2, p. 2). “Pode haver alguma conexão com a ideia do deus dos mortos como sendo aquele que divide os cadáveres” (Cf. H. Bietenhard, Demônio: In: Colin Brown, ed. ger. O novo dicionário internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981, v. 1, p. 594. Veja-se também, Werner Foerster, dai/mwn: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological dictionary of the New Testament,v. 2, p. 2). Uma outra explicação encontramos em Platão (427-347 a.C.), que derivava “daímõn” de “Daëmõn” (“Sábio”, “hábil”), da “sabedoria que lhe é própria” (Platão, Crátilo, 398b-c).

Sócrates (469-399 a.C.) alegou diante de seus algozes que desde a infância ouvia vozes que o chamavam para uma missão e o impediam de realizar determinadas tarefas. Esta inspiração, diz Sócrates, vem de um “deus ou de um gênio” (daimo/nion) (Platão, Defesa de Sócrates, 31 c-d.), que algures chama de “bem”, tendo sido experimentado por poucas pessoas (Platão, A República, 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 496c). Em Empédocles (c. 450 a.C.) o “dai/mwn” é um ser espiritual – distinto da “yuxh/” ou a própria –, que acompanhava o homem desde o nascimento (Frag., 115. Veja-se: H. Bietenhard, Demônio: In: Colin Brown, ed. ger. O novo dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,v. 1, p. 594; F.E. Peters, Termos filosóficos gregos: um léxico histórico,p. 48; G.S. Kirk; J.E. Raven, Os filósofos Pré-Socráticos,p. 364-365). Platão também o identificou como a alma (Platão, Timeu,São Paulo: Hemus, (s.d.), 90a), sendo o “dai/mwn” uma espécie de “anjo” que nos guarda (Platão, República,620d), no entanto fomos nós quem o escolhemos (Platão, República,617d-e).

Na mitologia grega, o “daimo/nion” é um deus inferior, intermediário entre os deuses e os mortais. (Hesíodo, Teogonia, 120). Em Homero, “dai/mwn” é empregado de forma intercambiável com “Qeo/j” (A Ilíada, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), XVII.98,99; Platão, Apologia,27d), embora “Qeo/j” fosse, como já mencionamos, uma palavra mais precisa que “dai/mwn”. Platão seguiu o conceito de Hesíodo, atribuindo ao “daimo/nion” a condição de intermediário, permitindo o diálogo dos deuses com os homens (Platão, O banquete, 202e-203a). Eles são filhos dos deuses (Qew++=n) (Platão, Defesa de Sócrates, 27 c-d), tendo sido criados pelo “dhmiourgo/j” (“O artífice do mundo”), que cria seres inferiores responsáveis pela criação dos seres vivos (Platão, Timeu, 29d-30c; 41a-c; Platão, A República, 530a; Xenofonte, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 2), 1972, I.4.7; IV.3.13). Esta concepção do “dhmiourgo/j” foi retomada pelos gnósticos. (Veja-se: Irineu, Contra as heresias,I.5.2-3). Valentino o considerava como o último dos eons (Clemente de Alexandria, Stromata,IV.13.89). Platão também assim os descreve: “Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a dar ordens e cuida de tudo. O exército dos deuses (Qew++=n) e dos demônios (daimo/nion) segue-o, distribuído em onze tribos” (Platão, Fedro, 246e-247). Homero considerava Zeus um deus extremamente poderoso, sendo o “pai dos deuses e dos homens” e, mais forte do que todos os outros deuses juntos. (Homero, A Ilíada,VIII, p. 133ss).

Após a morte, as almas dos homens escolhem o seu “dai/mwn” para proteger a sua vida (A República, 617e; 620d); tornando-se as almas dos “homens de bem” em demônio (Platão, Crátilo, 398b-c). Por isso, o homem de bem, vivo ou morto, deve ser chamado de demônio (Crátilo, 398c).

Plotino disse que um “dai/mwn” é uma “imagem de Deus” e que os demônios estão na segunda ordem, depois dos deuses, vindo depois deles os homens e os animais (Plotino, Enneades,VI.7.6; III.2.11. Cf. Demônio: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia,2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 224).

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