Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (40)

Considerações finais

A verdade é o melhor que o homem pode obter; a verdade é o mais augusto que a divindade pode conceder. Deus cede todos os bens aos homens para suprir suas necessidades; mas, ao comunicar-lhes a inteligência e sabedoria, permite-lhes que sejam partícipes dos atributos que lhe são próprios e de que faz constante uso. Não é a prata, nem o ouro, o que constitui a divina felicidade; o que estabelece seu poder não é o trovão, nem o raio, senão a ciência e a sabedoria. – Plutarco (46-120 AD.).[1]

A linguagem é um meio de identificação,[2] difusão da cultura e, ao mesmo tempo, de seu fortalecimento. A linguagem carrega consigo significados e valores, já que a linguagem e a comunidade mantêm uma relação de interdependência.[3]

Uma questão extremamente difícil é o processo de ressignificação da linguagem de uma cultura. Uso aqui a expressão em sentido bastante restrito: Como fazer as pessoas ouvirem e assimilarem determinadas palavras dentro de uma perspectiva diferente e, até mesmo conflitante, em relação aos significados aprendidos e dominantes?

As palavras carregam consigo significados próprios de uma cultura. A transposição deste conceito nem sempre é possível porque a realidade descrita carece de termos naquela língua para expressá-la. Deste modo, trabalhamos com um conceito analógico[4] que se propõe a fazer uma ponte, nem sempre no mesmo nível, de dois pontos por vezes bastante distantes.

Jaeger (1888-1961) ressaltando a influência da língua grega, afirma que “com a língua grega, todo um mundo de conceitos, categorias de pensamento, metáforas herdadas e sutis conotações de sentido entra no pensamento grego”.[5]

Aqui podemos ter um vislumbre do problema dos escritores do Novo Testamento. Eles esbararam repetidas vezes nessa questão: apresentar a mensagem cristã com termos já conhecidos, mas, ao mesmo tempo, que ganharam um novo significado a partir da própria essencialidade do evangelho. Assim, os escritores sagrados, inspirados por Deus, valeram-se, por vezes, de palavras amplamente conceituadas e assimiladas, porém, conferindo-lhes um sentido distinto, que, muitas vezes, só poderia ser compreendido a partir do Antigo Testamento. Com frequência é frustrante estudar as palavras do Novo Testamento sem a perspectiva teológica de seu conteúdo já estabelecido no Antigo Testamento.[6] O Novo Testamento foi escrito em grego, contudo a sua teologia encontra o seu fundamento na revelação veterotestamentária.

O apóstolo João foi quem mais se deparou com essas questões do conhecimento, justamente por escrever no final do primeiro século, quando o Cristianismo havia se expandido e, ao mesmo tempo, novas heresias surgiam com um conteúdo sincrético.

     Quando os pregadores cristãos empregaram, por exemplo, palavras tais como “igreja”, “logos”, “justiça”, “conhecimento”, “regeneração”, “sabedoria”, entre outras, era natural que os seus ouvintes, prematuramente, associassem estes termos aos conteúdos já conhecidos. Uma barreira a ser transposta era mostrar que o Cristianismo tinha uma mensagem diferente e, por isso mesmo, relevante para os seus ouvintes.

     Como exemplo, cito que as raízes do uso da palavra “Evangelho” no Novo Testamento, devem ser buscadas não no grego secular, mas sim no Antigo Testamento.[7] Ou seja, mesmo a palavra tendo um emprego comum no grego clássico, o seu conteúdo encontra-se nas páginas do Antigo Testamento. O recipiente é grego, contudo, o conteúdo é judaico. Muitas vezes a língua grega é apenas a taça de prata, mas, o conteúdo de ouro está na terminologia veterotestamentária.

Maringá, 13 de dezembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


[1] Plutarco, Os mistérios de Ísis e Osíris, São Paulo: Nova Acrópole do Brasil, 1981, 1, p. 15.

[2] “Se realmente queremos entender uma cultura, muitas vezes diz-se necessário que compreendamos a sua língua” (Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 18).

[3]  “Uma língua é inconcebível sem uma comunidade linguística que a suporte, assim como essa comunidade só existe em virtude de uma língua determinada, que lhe dá ao mesmo tempo sua forma e seu contorno. Desde que uma língua existe, existe também uma comunidade linguística. Há, em suma, entre as duas, uma dependência recíproca” (Walther Von Wartburg; Stephen Ullmann, Problemas e métodos da linguística, São Paulo: Difel, 1975, p. 205). À frente: “Tudo o que podemos dizer é que o nascimento da língua ou de uma determinada língua, ou o nascimento da comunidade que a suporta, o desenvolvimento do espírito, e a origem do gênero humano, representam fenômenos geneticamente conexos” (Ibidem., p. 206-207).

[4]  Devo esta expressão às observações de Collingwood (R.G. Collingwood, Los principios del arte, México: Fondo de Cultura Econômica, © 1960, 3. reimpressão, 1993, p. 18-20).

[5] Werner Jaeger, Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 17.

[6]  Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 39-40.

[7]Vejam-se: Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 725; P. Bläser, Evangelho: In: Heinrich Fries, dir., Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1983, v. 2, p. 153; Donatien Mollat, Evangelho: In: Xavier Léon-Dufour, dir. Vocabulário de Teologia Bíblica, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 319; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 169.

4 thoughts on “Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (40)

  • 16 de dezembro de 2019 em 19:48
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    Rev. Dr. Hermistein, obrigado por texto tão bons. Com certeza muita heresia tem se estabelecido, infelizmente, por falta de compreensão desta perspectiva, ou melhor deste fundamento: O grego do Novo Testamento é apenas o carrocel que conduz as ideias do pensamento judaico, e claro em nosso caso, como disse o ouro do pensamento cristão.

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    • 10 de abril de 2020 em 16:54
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      Agora entendi o post anterior. Sem dúvida. A língua é grega. O conteúdo é revelacional advindo dos judeus. Abraço.

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  • 16 de dezembro de 2019 em 19:50
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    O grego do Novo Testamento, ou “o Koiné”.

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