O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (7)

C. Sim, contudo…

 Agostinho (354-430), dentro de outro contexto histórico, quando o Império Romano já não era visto como “inimigo”, tem uma posição mais equilibrada do uso da cultura clássica. Ele valoriza a Filosofia. Contudo, entende que nem todos os chamados filósofos o são de fato, visto que o filósofo é aquele que ama a sabedoria. “Pois bem – argumenta Agostinho –, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus”.[1]

Em outro lugar, partindo de exemplos bíblicos, instrui-nos quanto à possibilidade de nos valer de recursos vários, mesmo provenientes, dos pagãos:

Os que são chamados filósofos, especialmente os platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e compatíveis com a nossa fé, é preciso não somente não serem eles temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso, como alguém que retoma seus bens a possuidores injustos.[2]

De fato, verificamos que os egípcios não apenas possuíam ídolos e impunham pesados cargos a que o povo hebreu devia abominar e fugir, mas tinham também vasos e ornamentos de ouro e prata, assim como quantidade de vestes. Ora, o povo hebreu, ao deixar o Egito, apropriou-se, sem alarde, dessas riquezas (Ex 3.22), na intenção de dar a elas melhor emprego. E não tratou de fazê-lo por própria autoridade, mas sob a ordem de Deus (Ex 12.35-36). E os egípcios lhe passaram sem contestação esses bens, dos quais faziam mau uso.

Ora, dá-se o mesmo em relação a todas as doutrinas pagãs. Elas possuem, por certo, ficções mentirosas e supersticiosas, pesada carga de trabalhos supérfluos, que cada um de nós, sob a conduta de Cristo, ao deixar a sociedade dos pagãos, deve rejeitar e evitar com horror. Mas eles possuem, igualmente, artes liberais, bastante apropriadas ao uso da verdade e ainda alguns preceitos morais muito úteis. E quanto ao culto do único Deus, encontramos nos pagãos algumas coisas verdadeiras, que são como o ouro e a prata deles. Não foram os pagãos que os fabricaram, mas os extraíram, por assim dizer, de certas minas fornecidas pela Providência divina, as quais se espalharam por toda parte e das quais usaram, por vezes, a serviço do demônio. Quando, porém, alguém se separa, pela inteligência, dessa miserável sociedade pagã, tendo-se tornado cristão, deve aproveitar-se dessas verdades, em justo uso, para a pregação do Evangelho. Quanto às vestes dos egípcios, isto é, às formas tradicionais estabelecidas pelos homens, mas adaptadas às necessidades de uma sociedade humana, da qual não podemos ser privados nesta vida, será permitido ao cristão tomá-las e guardá-las a fim de convertê-las em uso comum.

Aliás, que outra coisa fizeram muitos de nossos bons fiéis? Não vemos sobrecarregado com ouro, prata, vestes tiradas do Egito, Cipriano, esse doutor suavíssimo e beatíssimo mártir? Com que quantidade, Lactâncio? E Victorino, Optato, Hilário, sem citar os que vivem ainda hoje? Com que quantidade, inumeráveis gregos o fizeram? E o que executou, em primeiro lugar, o fidelíssimo servo de Deus, Moisés, instruído com toda a sabedoria dos egípcios? (At 7.22)”.[3]

Contudo, à frente reconhece a superioridade das Escrituras sobre todas as demais coisas:

Quanto é pequena a quantidade de ouro, prata e vestes tirada do Egito por esse povo hebreu em comparação com as riquezas que lhe sobrevieram em Jerusalém, e que aparecem sobretudo com o rei Salomão (1Rs 10.14-23), assim é igualmente pequena a ciência – se bem que útil – recolhida nos livros pagãos, em comparação com a ciência contida nas divinas Escrituras. Porque tudo o que um homem tenha aprendido de prejudicial alhures, aí está condenado, e tudo o que aprendeu de bom, aí está ensinado. E quando cada um tiver encontrado tudo o que aprendeu de proveitoso em outros livros, descobrirá muito mais abundantemente aí. E o que é mais, o que não aprendeu em nenhuma outra parte, somente encontrará na admirável superioridade e profundidade destas Escrituras.[4]

A linha de avaliação crítica de cada contribuição,[5] conforme adotada por Agostinho parece ter prevalecido;[6] afinal, o apóstolo Paulo também se valera das contribuições de rabinos judeus e de pagãos que os ajudavam em sua argumentação, sem, contudo, ser influenciado por seus ensinamentos. Assim permanece a consciência de que todas as coisas provêm de Deus e, que as concepções verdadeiras da realidade – ainda que nos lábios de ímpios (Cf. At 17.28;Tt 1.12) –, podem ser instrumentos úteis para a elaboração e transmissão da verdade divina. Isto porque qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fonte inesgotável. Portanto, toda verdade é proveniente de Deus, havendo inclusive pontes entre o que pensadores pagãos disseram e a plenitude da verdade conforme revelada nas Escrituras.[7]

     No entanto, esta questão voltaria a estar no auge das discussões entre os puritanos[8] a respeito da formação dos Ministros.[9]

Maringá, 07 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, v. 1, VIII.1.

[2] Devemos nos lembrar de que Agostinho aventa a possibilidade de Platão ter tido contato com as Escrituras (Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (v. 1), VIII.11). Acredita na possibilidade de Platão ter tido contato com o profeta Jeremias no Egito (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.29. p. 135). (Há outra edição em português: Santo Agostinho, A doutrina cristã: Manual de exegese e formação cristã, São Paulo: Paulus (Patrística; 17), 2002).

[3] Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, II.41. p. 149-151.

[4] Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, II.43. p. 153-154. Para uma abordagem mais completa das opiniões do “Pais da Igreja”, vejam-se: Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antiguidade,5. reimpr. São Paulo: EPU. 1990, p. 484ss; Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média,São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1ss; Ruy A. da Costa Nunes, História da Educação na Antiguidade Cristã,São Paulo: EPU/EDUSP. 1978, p. 5ss; Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1985, p. 35; Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1983, v. 1, p. 216-222. É muito interessante também, a obra de Charles Norris Cochrane, Cristianismo y Cultura Clásica, (2. reimpresión), México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 213ss.

[5] Ver: Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 52-54.

[6]“Foi a fórmula de servidão (ciência/filosofia como serva da teologia) de Agostinho, e não o discurso retórico de Tertuliano que moldou a relação entre a cristandade e as ciências naturais durante a Idade Média e para além dela” (David C. Lindberg, O destino da ciência na cristandade patrística e medieval: In: Peter Harrison, org. Ciência e religião,  São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2014, p. 44).

[7]Essas pontes evidenciam-se de modo transparente no comentário feito no segundo século, por Justino: “…. se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos demonstração, por que nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estoicos; ao dizer que são castigadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas e filósofos; que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é maior do que aquele que o fabrica” (Justino de Roma, I Apologia, 20.3-5. p. 37-38).

[8] Veja-se também a citação nesta mesma direção de alguns puritanos em Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 177-179.

[9]Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 186ss.

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