O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (5)

Platão (427-347 a.C.), com discernimento correto, entendia que um dos males de sua época consistia na corrosão da religião praticada por supostos sacerdotes e profetas – que ele chama de mendigos e adivinhos –, os quais exploravam a credulidade das pessoas, especialmente das ricas.

    Dentro do quadro descrito, uma das fórmulas usadas por esses líderes religiosos, era fazer as pessoas crerem que poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifícios ou, por meio de determinados encantamentos. Os deuses seriam, portanto, limitados e aéticos, sem padrão de moral, sendo guiados pelas seduções humanas:

Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores – dizem eles – graças a tais ou quais inovações e feitiçarias. Para todas estas pretensões, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (…). Outros, para mostrar como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o testemunho de Homero, pois também ele disse: ‘Flexíveis até os deuses o são. Com as suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu caminho e errou’ (Ilíada IX.497-501).[1]

   

Platão

Platão faz críticas severas, especialmente a Homero e Hesíodo por terem forjado conceitos de Deus que, segundo ele, não correspondiam à realidade;[2] por isso, tais lendas – que eram mescladas de elementos verdadeiros e falsos[3] – não deveriam ser contadas às crianças e aos jovens, visto que elas corromperiam a formação dos mesmos. As primeiras histórias a serem contadas, deveriam ser as mais nobres, que orientassem no sentido da virtude.[4] Para ele, Deus estava acima de nossa capacidade racional e, mesmo que fosse percebido, seria incomunicável: “…. descobrir o autor e o pai deste universo é um grande feito, e quando se o descobriu, é impossível divulgá-lo a todos”.[5]

    Platão, com acuidade acentua que o Criador que formou o universo é um ser pessoal e bom:

Ele era bom, e naquele que é bom nunca se lhe nasce a inveja. Isento de inveja, desejou que tudo nascesse o mais possível semelhante a ele. (…) Deus quis que tudo fosse bom: excluiu, pelo seu poder, toda imperfeição, e assim, tomou toda essa massa visível, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois estimou que a ordem vale infinitamente mais que a desordem.[6]

    Há também um aspecto interessante: ainda que a questão do monoteísmo não seja discutida entre os filósofos gregos;[7] daí: “deus” e “deuses” serem expressões intercambiáveis; há um fragmento – muito citado entre os antigos –, escrito por Antístenes de Atenas (c. 450-360 a.C.), primeiramente sofista e depois discípulo de Sócrates (469-399 a.C.), no qual diz, conforme menciona Cícero (106-43 a.C.): “Antístenes (…) em seu livro A Filosofia Natural, destrói o poder e a personalidade dos deuses ao dizer que embora a religião popular reconheça muitos deuses, há somente um Deus na natureza”.[8]

    Posteriormente, apologistas cristãos, inspirados nessas críticas e de outros filósofos gregos e romanos – “impacientes com as divindades inúteis” –, usariam métodos semelhantes para criticarem a religião grega e a de outros povos.[9]

    Nos séculos posteriores ao Novo Testamento, a questão da adoção de concepções filosóficas gregas não foi pacífica; havia quem concordasse e outros que entendiam que o Cristianismo nada tinha a ver com o pensamento pagão. É isto que veremos no tópico seguinte.

São Paulo, 04 de novembro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa



[1] Platão, A República,364c-e.

[2] Platão, A República,377d; 382a-383a; 388b-d. Por trás dessa crítica de Platão, está o conceito vigente da palavra “teologia”.

            A palavra “Teologia” que não aparece nas Escrituras, é o resultado da junção de dois termos gregos: “qeo/j” = “Deus” e “Lo/goj” = “Estudo”, “tratado”, “discurso”. No entanto, mesmo “teologia” não ocorrendo nas Escrituras, os termos que a compõem ocorrem (Lc 8.21; Rm 3.2; 1Pe 4.11). A origem de “qeo/j” é incerta. O termo é usado e comentado primariamente por Platão (427-347 a.C.)(República, 379a) com o sentido de história dos mitos e lendas dos deuses contada pelos poetas, a qual deveria ser analisada criticamente e purgada dos inconvenientes conforme o padrão de educação adotado. (Platão, A República,378b-e. Veja-se: H. Fries, Teologia: In: H. Fries, ed. Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 5, p. 297. Veja-se também, Theología: In: F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, p. 228). Na Grécia antiga, “teologia” e “teólogo”, passaram por diversas mutações; os poetas foram os primeiros a se intitularem de “teólogos” (Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (v. 2), XVIII.14),e a teologia referia-se às discussões filosóficas a respeito dos deuses e do mundo: teogonias e cosmogonias. Devemos lembrar que mesmo havendo uma hierarquia entre os deuses gregos (“Cronos” = “tempo” e depois “Zeus” = “Céu brilhante”), “qeo/j” não denotava uma unidade monoteísta mas sim, a concepção conexa e integrada de vários deuses; a totalidade das divindades.

            A palavra “Teologia” parece ter sido incorporada à linguagem cristã nos séculos IV e V, referindo-se à genuína compreensão das Escrituras Sagradas (Veja-se por exemplo a forma empregada por Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica,Madrid: La Editorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos), 1973, I.2.3; II, prólogo 1; III.24.13). O Evangelista João foi cognominado pelos “Pais da Igreja” de “o teólogo”, porque ele tratou mais detalhadamente das “relações internas das pessoas da Trindade” (A.H. Strong, Systematic Theology,35. ed. Valley Forge, PA.: The Judson Press, 1993, p. 1). Posteriormente, este mesmo título seria dado a Gregório de Nazianzo (c. 330-389), especialmente devido à sua defesa da divindade de Cristo (distinção homologada em Calcedônia, 451) (Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 26).Durante a Reforma, Melanchthon denominaria com grande ênfase a Calvino de “o Teólogo” (Philip Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 260; Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), v. 1, p. 446)

[3] Platão, A República, 377a.

[4] Platão, A República,378e.

[5]Platão, Timeu, 28. Veja-se também, Rudolf Otto, O Sagrado,São Bernardo do Campo, SP.: Imprensa Metodista; Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985, p. 96.

[6] Platão, Timeu, 29-30. Agostinho aventa a possibilidade de Platão ter tido contato com as Escrituras (Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (v. 1), VIII.11). Acredita que Platão possa ter conhecido o profeta Jeremias no Egito (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.29. p. 135).

[7] Ver: Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 54ss.

[8]Cicero, The Nature of the Gods,I.32. Veja-se: W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 230-231.

[9] Cf. Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 16.

One thought on “O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (5)

  • 6 de junho de 2022 em 14:15
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