“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (148)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

Os prisioneiros de Lyon

Em 7 de julho de 1553, Calvino escreve mais uma carta aos “prisioneiros de Lyon” que aguardavam a sua condenação por terem aderido à Reforma Protestante. Esta ele dirige em especial a dois deles: Denis Peloquin de Blois e Louis de Marsac. A certa altura, diz:

Meus irmãos (…), estejam certos de que Deus, que se manifesta em tempos de necessidade e aperfeiçoa Sua força em nossa fraqueza, não vos deixará desprovidos daquilo que poderosamente glorificará o Seu nome. (…) E como você sabe, temos resistido firmemente as abominações do Papado, a menos que nós renunciássemos o Filho de Deus, que nos comprou para Si mesmo pelo precioso preço. Medite, igualmente, naquela glória celestial e imortalidade para as quais nós somos chamados, e é certo de alcançar pela Cruz –– por infâmia e morte. De fato, para a razão humana é estranho que os filhos de Deus sejam tão intensamente afligidos, enquanto os ímpios divertem-se em prazeres; porém, ainda mais, que os escravos de Satanás nos esmaguem sob seus pés, como diríamos, e triunfem sobre nós. Contudo, temos meios de confortar-nos em todas as nossas misérias, buscando aquela solução feliz que está prometida para nós, que Ele não apenas nos libertará mediante Seus anjos, mas pessoalmente enxugará as lágrimas de nossos olhos.[1] E, assim, temos todo o direito de desprezar o orgulho desses pobres homens cegos, que para a própria ruína levantam seu ódio contra o céu; e, apesar de não estar neste momento em suas condições, nem por isso deixamos de lutar junto com vocês em oração, com ansiedade e suave compaixão, como companheiros, percebendo que agradou a nosso Pai celeste, em Sua bondade infinita, unir-nos em um só corpo sob Seu Filho, nossa cabeça. Pelo que eu lhe suplicarei que possa garantir a vocês essa graça; que Ele os conserve sob Sua proteção e lhes dê tal segurança disso que possam estar aptos a desprezar tudo o que é deste mundo. Meus irmãos os saúdam mui afetuosamente, e assim também muitos outros. –– Seu irmão, João Calvino.[2]

            Louis de Marsac, na prisão, responde-lhe:

Senhor e irmão, eu não posso expressar o grande conforto que recebi… da carta que você enviou para meu irmão Denis Peloquin que passou-a a um de nossos irmãos que estavam numa cela abobadada acima de mim, e leu-a para mim em voz alta, porque eu não pude lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa em meu calabouço. Então, eu lhe peço que persevere nos ajudando com semelhante consolação, pois isso nos convida a chorar e orar.[3]

            Posteriormente, Louis de Marsac, Etienne Gravot de Gyen, e Marsac, primo de Louis serão condenados à morte, sendo queimados: Morreram cantando o Salmo 9.[4] Aliás, o canto em meio às chamas tornou-se um testemunho fervoroso da fé calvinista na França.

Mártires franceses morrem cantando

            O cantar salmos se constituiu em um ponto fundamental de identidade entre os Calvinistas na Europa e, posteriormente nos Estados Unidos.[5]  Os Salmos se tornaram em “verdadeiros hinos de batalha”;[6] um cântico de combate, mas, também de consolo diante das perseguições e iminente morte.[7]

Em Meaux, 14 mártires morreram cantando o Salmo 79.[8]

Do mesmo modo, Leith (1919-2002) comenta que,

O cântico dos salmos contribuiu para moldar o caráter e a piedade reformada e sua influência dificilmente poderia ser superestimada. Os salmos eram as orações do povo na liturgia de Calvino. Por meio deles, os adoradores respondiam à Palavra de Deus e afirmavam sua confiança, gratidão e lealdade a Deus.[9]         

O cântico de salmos tornou-se essencial para a piedade calvinista. Os protestantes franceses, ao serem levados para a prisão ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veemência que foi proibido por lei cantar salmos e aqueles que persistiam tinham sua língua cortada. O salmo 68 era a Marselhesa huguenote.[10]

            De fato, na França, em diversas ocasiões os protestantes foram atacados enquanto prestavam culto a Deus, orando, lendo a Palavra e cantando salmos. Depois de narrar algumas dessas perseguições, Baird (1828-1887) constata: “A Liturgia do protestantismo francês foi banhada com o sangue de seus mártires”.[11]

Mártires franceses no Brasil

            Do mesmo, no Brasil, quando os calvinistas franceses Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon não negaram à sua fé diante de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), foram presos.[12] Jean Crespin registra: “Entretanto, os condenados consolavam-se e regozijavam-se em suas cadeias, orando e cantando, com extraordinário fervor, salmos e louvores a Deus”.[13]

            Na manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558, quando Jean du-Bourdel, o autor da Confissão de Fé,[14] ia sendo conduzido ao rochedo para ser executado, acompanhado por Villegaignon e seu pajem, narra Crespin:

Ao passar junto da prisão em que estavam os seus companheiros, gritou-lhes em alta voz que tivessem coragem, pois iam ser logo libertados desta vida miserável. E, caminhando para a morte, entoava salmos e louvores a Deus, o que causava grande espanto a Villegaignon e ao carrasco.[15]

            Creio que para os propósitos deste texto, essas notas históricas são suficientes.

            Pelo que pudemos ver até aqui, torna-se evidente que a Igreja cristã ao longo da história, expressou a sua fé de modo vivo e vibrante por meio dos hinos, elaborando a sua teologia de forma clara e simples, a fim de que todos pudessem entendê-la e cantá-la.[16] A música foi empregada não simplesmente pela música, antes, de tal forma, que estivesse a serviço da mensagem, da letra, do próprio Evangelho.[17]

            É maravilhoso louvar a Deus com as suas próprias palavras inspiradas e registradas nas Escrituras. Contudo, devemos observar que os hinos da Igreja não precisam estar limitados aos Salmos canônicos, mesmo reconhecendo o seu indiscutível valor como Palavra inspirada de Deus. Além disso, deve ser destacado, que muitos dos salmos refletem de modo evidente, a expressão de fé de servos de Deus na Antiga Aliança, que ainda não se plenificara em Cristo, Aquele que selou a Nova Aliança com o seu próprio sangue.

O cântico inclusivo, não exclusivo, dos salmos é essencial, visto que os Salmos, por mais ricos que sejam, anteveem realidades que já se concretizaram no Novo Testamento e, por isso também, não dão conta de esgotar aspectos da revelação de Deus e, a experiência teológica e vivencial cristã.

Essa compreensão amplia de forma bíblica a experiência cristã, tão pobremente delineada em muitos de nossos cânticos, proporcionando ao fiel uma dimensão mais intensa da vida cristã em sua mente e emoção, se materializando em sua obediência a Deus no exercício das suas múltiplas vocações em sua existência. Afinal, a piedade, que encontra o seu fundamento na fé,[18] para tudo é proveitosa, por isso, como disse Voetius (1589-1676), “deve ser unida à ciência”. [19] 

A Igreja revelava a sua unidade espiritual no culto público, quando os fiéis se reuniam unanimemente para louvar o Senhor que os atraíra para si os regenerando e os guiando.

Maringá, 11 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Comentando o Salmo 56.8, Calvino assim se expressou: “…. Se Deus concede tal honra às lágrimas de seus santos [lembrar-se delas], então pode ele contabilizar cada gota do sangue que eles derramaram. Os tiranos podem queimar sua carne e seus ossos, mas seu sangue continua a clamar em altos brados por vingança; e as eras intervenientes jamais poderão apagar o que foi escrito no registro divino das memórias” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 56.8), p. 501).

[2] John Calvin, To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 320.

[3]In: To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 320. Calvino atendeu à solicitação e, em 22/08/1553, escreveu-lhes novamente (Ver: John Calvin, To Denis Peloquin and Louis de Marsache, “Letters,” John Calvin Collection,[CD-ROM], nº 323).

[4]John Ker, Psalms in history and biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 26. (https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/page/26) (Consulta feita em 05.09.2020); W. Stanford Reid, the battle hymns of the lord: Calvinist psalmody of the Sixteenth Century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth Century essays and studies, St. Louis: foundation for reformation research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 45.  (disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents). (Consulta feita em 05.09.2020).

[5] Cf. Charles Garside, Jr., The Origins of Calvin’s Theology of Music: 1536-1543, Philadelphia: The American Philosophical Society, 1979, p. 5.

[6] W. Stanford Reid, the battle hymns of the lord: Calvinist psalmody of the sixteenth century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth century essays and studies, St. Louis: foundation for reformation research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 46.(disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents).

[7] Veja-se: John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 121, 184, 188.  https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/).

[8]John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 26.  https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/page/106); W. Stanford Reid, The Battle Hymns of the Lord: Calvinist Psalmody of the Sixteenth Century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth Century Essays and Studies, St. Louis: Foundation for Reformation Research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 46.  (Disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents); Carl Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 339.

[9] John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 301. Ver alguns exemplos significativos em: Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 67ss.

[10]John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,p. 299. Do mesmo modo: Carl Lindberg,  As Reformas na Europa,  São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 339. Ver: Emily R. Brink, The Genevan Psalter: In: Emily B. Brink; Bert Polman, eds. Psalter Hymnal Handbook, Grand Rapids, Michigan: CRC Publications, 1998, p. 34. Foi o próprio Calvino que adaptou a melodia de um dos corais de Greiter ao Salmo 68. (Cf. Henriqueta R.F. Braga, Contribuição da Reforma ao Desenvolvimento Musical: In: Bill H. Ichter, org. A Música Sacra e Sua História,Rio de Janeiro: JUERP., 1976, p. 77). O hino de Lutero baseado no Salmo 46 foi chamado por H. Heine (1797-1856) de “Marselhesa da Reforma” (Cf. W.J.R.T., Hymnology: In: Rev. John McClintock; James Strong, eds. Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical Literature, [CD-ROM], (Rio, WI., Ages Software, 2000), v. 4, p. 130).

[11]Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 65.

[12] O alfaiate André Lafon terminou por ser persuadido a retratar-se. Foi poupado. Permaneceu então preso na fortaleza “como alfaiate do almirante e de toda sua gente” (Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,Rio de Janeiro: Typo-Lith, Pimenta de Mello & C., 1917, p. 81).

[13]Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,p. 74. Ver também: Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil,3. ed., São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1960), p. 245.

[14] Elaborada entre 04/01/1558 e 09/02/1558. Ver: Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, p. 63-64.

[15]Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, p. 77.

[16] Veja-se: Ralph P. Martin, Adoração na Igreja Primitiva,São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 63-64.

[17] Veja-se: Parcival Módolo, “Impressão” ou “Expressão” O Papel da Música na Missa Romana Medieval e no Culto Reformado: In: Teologia e Vida, São Paulo: Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, 1/1 (2005), p. 111-128.

[18] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 78.21), p. 213.

[19] Apud Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In: Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *