“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (147)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

As obras de Calvino em geral tiveram um grande sucesso editorial.[1] Contabiliza-se a impressão de cerca de 27.400 exemplares do Saltério de Genebra nas impressoras de Genebra apenas em alguns meses[2] (1562?).[3] Foram impressas 24 edições somente nas tipografias de Paris.[4] Posteriormente os Salmos de Marot foram anexados em forma de apêndice ao Catecismo de Genebra, tornando-se uma marca característica da expressão de fé no culto reformado.[5]

            Comentando o Livro de Gênesis, Calvino diz:

Embora a invenção da harpa e de similares instrumentos de música, possa servir antes ao deleite e ao prazer que à necessidade, ainda assim não se pode tê-los por de todo supérfluos e ainda menos merece ser condenados.[6] É verdade que se impõe condenar a voluptuosidade que não se afina com o temor de Deus e o benefício comum da comunidade humana. A música, entretanto, é de tal natureza que pode ser aplicada aos exercícios de piedade e pode beneficiar aos homens, escoimada dos viciosos engodos e, também, da vã deleitação que detrai os homens de melhores exercícios para ocupá-los com a vaidade.[7]

            Uma citação recorrente é a descrição emocionada de um jovem francês refugiado, que visitou a Igreja de Calvino em Estrasburgo e mais tarde (1545) compartilha suas impressões a um amigo na Antuérpia:

Aos domingos […] cantamos algum salmo de Davi ou outra oração extraída do Novo Testamento, aquele salmo ou oração se canta por toda a assembleia, tanto homens quanto mulheres com um belo acordo, algo bonito de presenciar. Você deve imaginar cada um tendo um hinário[8] em sua mão, daí por que eles não perdem contato entre si. Nunca pensei que pudesse ser tão agradável e delicioso como é. Inicialmente, por cinco ou seis dias, enquanto olhava para este pequeno grupo, daqueles expulsos de seu país por haverem defendido a honra de Deus e seu evangelho, eu comecei a chorar, não de tristeza, mas de alegria por ouvi-los todos cantando tão sinceramente   enquanto cantavam agradecendo a Deus por tê-los levado a um lugar onde seu nome é honrado e glorificado.  Jamais uma criatura poderia crer na alegria experimentada por alguém em cantar os louvores e maravilhas do Senhor em língua materna, como alguém os canta aqui.[9]

            Os salmos tiveram um papel extremamente marcante na formação espiritual dos Reformados, constituindo-se também, em uma de suas grandes demonstrações de fé.

            Schaff (1819-1893) resume:

A introdução do Saltério na língua vernácula foi um dos mais importantes feitos, e o começo de um longo e heroico capítulo na história do culto e da vida cristã. O Saltério ocupa um lugar tão importante na Igreja Reformada como os hinos entre os Luteranos.[10] Ele foi a fonte de conforto e força para a Igreja dos Huguenotes do Deserto, e para os Covenanters[11] presbiterianos da Escócia, nos dias de amargo sofrimento e perseguição.[12]

Maringá, 11 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Febvre e Martin falando sobre o Catecismo escrito por Calvino e as Institutas, resumem:   “De 1550-1564 [ano da morte de Calvino], serão publicadas 256 edições, das quais 160 em Genebra. A Institution chrétienne é, então, sozinha, objeto de 25 reedições, nove latinas e dezesseis francesas das quais a maioria provém dos prelos genebrinos; e, mais ainda talvez, o Catéchisme par demandes et réponses que Calvino publica em 1541….” (Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, São Paulo: Hucitec., 1992, p. 442-443). Wendel nos diz que a primeira edição da Instituição se esgotou em menos de um ano (François Wendel, Calvin,New York: Harper & Row, Publishers, 1963, p. 113; Justo L. Gonzalez, A Era dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1986 (Reimpressão), p. 111). (Vejam-se: Também, T. George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 177-178; Philip Benedict,  Christ’s Churches Purely Reformed: A Social History of Calvinism, New Haven:  Yale University Press, 2002, p. 90-93). No entanto, “a partir de 1542 organiza-se a caça ao livro genebrino; em 1548 proíbe-se que sejam introduzidos no reino [França) livros impressos em Genebra, quaisquer que sejam” (Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, São Paulo: Hucitec., 1992, p. 443). As medidas intensificam-se, mas, sem sucesso (Cf. Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, p. 445). O recurso para difusão passa a ser o contrabando.     Como curiosidade cito que a palavra colportor que deriva do francês colporteur, significa “levar no pescoço”. Esse nome está associado ao costume dos colportores valdenses de levar os escritos sagrados debaixo da roupa (‘porteur à col”) presos por uma correia em forma de alça que passa pelo pescoço.

[2] Cf. Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, São Paulo: Hucitec., 1992, p. 446; E. William Monter, Calvin’s Geneve, New York: John Wiley & Sons Inc., 1967, p. 181; Carl Lindberg, As Reformas na Europa, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 2001, p. 338. Foram publicadas 25 edições já no primeiro ano de sua edição. Nos quatro anos seguintes foram publicadas 62 edições. (Vejam-se mais detalhes In: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 336). Curiosamente, Schaff diz que o “Saltério de Genebra” nunca se tornou popular. (Ver: Philip Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 265-266). Talvez Schaff possa estar se referindo ao possível fato do “Saltério Genebrino”, mesmo tendo sido traduzido para vários idiomas, jamais ter usufruído maciçamente do gosto popular, o que de fato não é impossível, tendo acontecido fatos semelhantes em nossa própria igreja no Brasil.

[3] Cf. David H. Hall, A Herança de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 29.

[4] Cf. Emily R. Brink, The Genevan Psalter: In: Emily B. Brink; Bert Polman, eds. Psalter Hymnal Handbook, Grand Rapids, Michigan: CRC Publications, 1998, p. 32.

[5] Cf. Nota ao Livro dos Salmos,de João Calvino, v. 3, Sl 92.4, p. 462 extraída do livro Thomas Worton, ed., Warthon’s History of English Poetry,v. 3, p. 164-165.

[6] Em outro ponto: “A invenção das artes e outras coisas que servem ao uso comum e ao conforto desta vida é um dom de Deus que não é de desprezar e uma virtude digna de louvor” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 4.20), p. 217).

[7]John Calvin, Calvin’s Commentaries, v. 1, (Gn 4.20), p. 218.

[8] Esse Hinário,  fora composto por Calvino e impresso em Estrasburgo em 1539, intitulado: “Alguns Salmos e Cânticos adaptados para o canto”. (Veja um exemplar do original em: https://pt.calameo.com/read/005091999e8246bfa2a8e. Consulta feita em 11.09.2020). Para uma boa síntese da história do Saltério, veja-se: http://psalmen.wursten.be/pidoux_history_of_the_genevan_psalter.htm (Consulta feita em 11.09.2020).

[9] Alfred Erichson, L’Église Française de Strasbourg au Seizième Siècle d’Après des Documents Inédits,  Strasbourg: Librairie C. F. Schimidt, 1886, p. 21-22. Esse documento é citado em vários lugares, apenas de forma mais abreviada. Vejam-se, por exemplo:  T. George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 181; John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 147; Philip Schaff, History of the Christian Church, v. 8, p. 373; Felipe Fontes; João Almeida, A igreja local e a música no culto: O canto calvinista e os desafios contemporâneos, Editora Monergismo. Edição do Kindle, 2020, p. 43 (Posição 802 de 5675).

[10]Lutero foi o criador do primeiro hinário alemão (1524), e, depois, também elaborou o Hinário de Wittenberg (1529). Ele pode ser considerado o fundador da hinologia alemã e o grande difusor da música na Igreja. Lutero compôs 36 hinos e várias melodias, as quais adaptou aos hinos.

[11] Presbiterianos escoceses que lutaram contra o estabelecimento do sistema episcopal de governo na Igreja da Escócia. Sustentavam a manutenção do presbiterianismo, conforme fora acordado pelos Parlamentos da Escócia e Inglaterra, respectivamente em 1638 e 1649.

[12] Philip Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 374.

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