Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (122)

d) Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)

A “unidade” que se “consegue” em detrimento da verdade não é produzida pelo Espírito, portanto, não é unidade, é apenas um ajuntamento circunstancial, formado de partes desconexas sem um elemento central que os preserve ali.[1] Uma “unidade” obtida por estes meios seria pagar um preço excessivamente alto e, o pior, sem verdadeiros frutos duradouros.[2]

Não podemos sustentar uma unidade que negue a Trindade, a suficiência das Escrituras ou a obra expiatória de Cristo. Esta não seria a unidade do Espírito, pelo menos, não a do Espírito Santo. No entanto, sem perceber, muitos crentes se detêm em ouvir pregadores que “dizem verdades”, mas, que na realidade, negam doutrinas fundamentais da fé cristã. É preciso discernimento quanto a isso, para que não estejamos, involuntariamente, patrocinando heresias em nome de uma suposta unidade cristã.

Outras vezes, para manter uma suposta unidade, loteamos a igreja visível distribuído cargos e iguarias reais a fim de manter uma paz inexistente que cada vez mais desperta nos famintos de poder maiores e insaciáveis pretensões. Nesse caso, invertemos a ordem: ao invés de pessoas, a despeito de suas falhas, dignificarem cargos, os cargos que dignificam as pessoas. Por isso aspiro o poder para me dignificar e fortalecer e, talvez, sem perceber, terei de fazer novas concessões para ali permanecer. Mas essa, não é uma questão teológica, mas moral.

Calvino (1509-1564) sustenta que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da Igreja, além do mais, todos, sem exceção estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância”.

São palavras do Apóstolo: “Todos quantos somos perfeitos sintamos o mesmo; se algo entendeis de maneira diferente, também isto vos haverá de revelar o Senhor” [Fp 3.15]. Não está ele, porventura, a suficientemente indicar que o dissentimento acerca destas cousas não assim necessárias não deve ser matéria de separação entre cristãos? Por certo que estará em primeira plana que em todas as cousas estejamos em acordo; mas, uma vez que ninguém há que não esteja envolto de alguma nuvenzinha de ignorância, impõe-se que ou nenhuma igreja deixemos, ou perdoemos o engano nessas cousas que possam ser ignoradas não somente inviolada a suma da religião, mas também aquém da perda da salvação.
Mas, aqui, não quereria eu patrocinar a erros, sequer os mais diminutos, de sorte que julgue devam ser fomentados, com agir com complacência e ser-lhes conivente.[3] Digo, porém, que não devemos por causa de quaisquer dissentimentozinhos abandonar irrefletidamente a Igreja, em que somente se retenha salva e ilibada essa doutrina, mercê da qual se mantém firme a incolumidade da piedade e conservado é o uso dos sacramentos instituído pelo Senhor.[4]
Não vejo, porém, nenhuma razão por que uma igreja, por mais universalmente corrompida, desde que contenha uns poucos membros santos, não deva ser denominada, em honra desse remanescente, de santo povo de Deus.[5]
Contanto que a religião continue pura quanto à doutrina e ao culto, não devemos deixar-nos abalar em demasia ante os erros e pecados que os homens cometem, como se com isso a unidade da Igreja fosse dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as épocas nos ensina quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a Igreja de Deus, que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente e resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um grande número de hipócritas ímpios ou pessoas perversas. (…) Mas Cristo, em Mateus 25.32, com justa razão alega ser seu, com toda propriedade, o ofício peculiar de separar as ovelhas dos cabritos; e por isso nos admoesta que devemos suportar os maus, e que não está em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem amadurecidas e chegue o tempo próprio de purificar a Igreja. Ao mesmo tempo, os fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar todos os seus esforços para que a Igreja de Deus seja purificada das corrupções que nela ainda persistem.
(…) O sagrado celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado antes do último dia, quando Cristo, em sua vinda, lançará fora a palha. Mas Ele já começou a fazer isso através da doutrina do seu Evangelho, que chama crivo de joeirar. Não devemos, pois, de forma alguma ser indiferentes acerca desse assunto; ao contrário, devemos antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que todos nós que professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e imaculada. Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou seja, que Ele os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua ímpia presunção em irreverentemente intrometer-se na sociedade dos santos.[6]
Todavia, ainda quando a Igreja seja remissa em seu dever, não por isso será direito de cada um em particular a si pessoalmente assumir a decisão de separar-se.[7]

Maringá, 13 de agosto de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 209-220.

[2]Analisando a reprimenda feita por Paulo a Pedro, Calvino comenta: “Cegar a consciência dos santos, porém, através da obrigação de guardar a lei e silenciar a doutrina da liberdade era pagar pela unidade um preço demasiadamente alto” (João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.14), p. 64-65).

[3] “Paulo, pois, nos ensina (Ef 5.11) que, quando não reprovamos os maus, essa é uma espécie de comunhão com as obras infrutíferas das trevas. É certamente um modo de agir muito perverso quando certas pessoas, buscando alcançar o favor humano, indiretamente desdenham de Deus; e todos são coniventes em fazer com que seus negócios sejam do agrado dos perversos. Davi, contudo, sente deferência, não tanto pela pessoa do perverso, mas pelas suas obras. O homem que vê o perverso sendo honrado, e pelos aplausos do mundo se torna ainda mais obstinado em sua perversidade, e que de bom grado dá seu consentimento ou aprovação, com isso não estará enaltecendo o vício, em vez da autoridade, e o envolvendo de soberano poder?” (João Calvino,O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 1999, v. 1, (Sl 15.1), p. 293).

[4] João Calvino, As Institutas,IV.1.12. Em outro lugar: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único Deus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da Igreja. Nem sempre encontramos nas igrejas tal pureza como era de se desejar. Ainda a mais pura tem suas máculas, e algumas têm não só umas poucas manchas aqui e ali, mas são quase que completamente deformadas. Não devemos ficar tão desconcertados pelo ensino e vida de alguma sociedade que, se não ficamos satisfeitos com tudo o que se procede ali, então prontamente negamos ser ela uma igreja” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25).

[5] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 50.4), p. 401.

[6] João Calvino,O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 15.1), p. 287-289.

[7] J. Calvino, As Institutas,IV.1.15. Em outro lugar Calvino diz: “Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 1.1), p. 53).

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