“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (145)

c) Louvando a Deus  (Continuação)

A Presença do pensamento de Agostinho

Quanto à questão da música na Igreja, Calvino seguiu de perto o pensamento de Agostinho (354-430) que, nas Confissões, havia dito:

Quando ouço cantar essas vossas santas palavras com mais piedade e ardor, sinto que o meu espírito também vibra com devoção mais religiosa e ardente do que se fossem cantadas doutro modo. Sinto que todos os afetos da minha alma encontram, na voz e no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas próprias modulações, vibrando em razão dum parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe. Mas o deleite da minha carne, ao qual se não deve dar licença de enervar a alma, engana-me muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-me humildemente atrás da razão, negam-se a acompanhá-la. Só porque, graças à razão, mereceram ser admitidos, já se esforçam por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem consentimento, mas advirto depois.

Outras vezes, preocupando-me imoderadamente com este embuste, peco por demasiada severidade. Uso às vezes de tanto rigor que desejaria desterrar meus ouvidos e da própria igreja todas as melodias dos suaves cânticos que ordinariamente costuma acompanhar o saltério de Davi. Nessas ocasiões parece-me que o mais seguro é seguir o costume de Atanásio, bispo de Alexandria. Recordo-me de muitas vezes me terem dito que aquele prelado obrigava o leitor a recitar os salmos com tão diminuta inflexão de voz que mais parecia um leitor que um cantor.

Porém, quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos da vossa Igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume.[1]

            A seguir, Agostinho relata o seu impasse:

Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares efeitos que a experiência nos mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, inclino-me a aprovar o costume de cantar na Igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afetos da piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Neste caso, por castigo, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro.[2]

            Assim, Calvino escreveu:

Nem, contudo, aqui condenamos a voz ou o canto, senão que antes, muito os recomendamos, desde que acompanhem o afeto da alma. Ora, assim exercitam a mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual, como é escorregadia e versátil, facilmente se afrouxa e a variadas direções se distrai, a menos que seja de variados adminículos sustentada. Ademais, como em cada parte de nosso corpo, uma a uma, deva luzir, de certo modo, a glória de Deus, convém especialmente seja a língua, que foi criada peculiarmente para declarar e proclamar o louvor de Deus, adjudicada e devotada a este ministério, quer cantando, quer falando.[3]

E, certamente, se a essa gravidade que convém à vista de Deus e dos anjos haja sido temperado o canto, por um lado, concilia dignidade e graça aos atos sacros, por outro, muito vale para incitar os ânimos ao verdadeiro zelo e ardor de orar. Contudo, impõe-se diligentemente guardar que não estejam os ouvidos mais atentos à melodia que a mente ao sentido espiritual das palavras. […] Aplicada, portanto, esta moderação, dúvida nenhuma há de que seja uma prática muito santa e sadia, da mesma forma que, por outro lado, todos e quaisquer cantos que hão sido compostos apenas para o encanto e o deleite dos ouvidos nem são compatíveis com a majestade da Igreja, nem podem a Deus não desagradarem sobremaneira”.[4]

            Em outro lugar:

E, na verdade, conhecemos por experiência que o canto possui grande força e poder de comover e inflamar o coração dos homens para invocar e louvar a Deus com zelo mais veemente e ardoroso. Há sempre a considerar-se que o canto não seja frívolo e leviano; pelo contrário, tenha peso e majestade, como diz Santo Agostinho. E, assim, haja grande diferença entre música feita para alegrar os homens à mesa ou em casa e os salmos que se cantam na Igreja, na presença de Deus e de Seus anjos… se bem que o uso do cântico vai bem mais longe. Mesmo nas casas e nos campos é-nos ele um incitamento e dir-se-á um órgão para louvar a Deus e elevar-Lhe o coração para que nos console enquanto meditamos em Seu poder, bondade, sabedoria e justiça. Mais necessário é isso do que se poderia dizer. Acima de tudo, não é sem causa que o Santo Espírito nos exorta tão cuidadosamente pelas Sagradas Escrituras a regozijar-nos em Deus e que toda nossa alegria a isso se reporte, como a seu verdadeiro fim. Sabe Ele quanto somos inclinados a regozijar-nos em frivolidades. Tanto quanto, pois, nos inclina e induz nossa própria natureza a procurar todos os meios de alegria leviana e viciosa, apresenta-nos o Senhor nosso, para detrair-nos e demover-nos das seduções da carne e do mundo, todos os meios possíveis, a fim de ocupar-nos nessa alegria espiritual que Ele tanto no recomenda. Ora, entre outras coisas própria para recrear o homem e proporcionar-lhe prazer, a música é ela dom de Deus delegado a este uso. Eis porque tanto mais devemos tomar tanto a dela não abusarmos, temendo conspurcá-la e contaminá-la, convertendo-a à condenação nossa onde foi dedicada a nosso proveito e benefício. Outra consideração não houvesse senão esta, deve-nos ela bem mover a moderar o uso da música, de sorte a fazê-la servir a tudo que é decente e não nos seja ocasião de soltar-nos a rédea à dissolução, ou de efeminar-nos em deleites desregrados, e que seja instrumento de devassidão nem de qualquer impudicícia.[5]

            Continua:

Eis porque devemos ser tanto mais diligentes em regulá-la, de tal sorte que nos seja ela útil e de maneira alguma perniciosa. Por esta razão, queixaram-se frequentemente os antigos doutores da Igreja de que o povo de seu tempo era dado a canções indecorosas e impudicas, que não sem causa consideram e chamam veneno mortal e satânico para corromper o mundo. Ora, falando particularmente da música, admito-lhe duas partes: a letra, ou conteúdo e matéria; em segundo lugar, o canto, ou melodia. Verdade é que toda conversa má (como diz São Paulo) perverte os bons costumes; quando, porém, se lhe associa a melodia, muito mais profundamente penetra ela o coração e de tal modo se instila dentro de nós que, assim como por um funil é o vinho entornado na vasilha, assim também, por meio da melodia, são lançados ao fundo do coração o veneno e a corrupção. Quê se há, pois, de fazer? É de ter canções não apenas decorosas, mas também santas, que nos sejam como aguilhões a instigar-nos a orar e louvar a Deus, a meditar em Suas obras, a fim de amá-lo, temê-lo, honrá-lo e glorificá-lo… Eis porque exorta Crisóstomo tanto a homens como a mulheres e crianças a acostumarem-se a cantá-las, para que lhes seja isso como pia meditação e associá-los à companhia dos Anjos. Quanto ao mais, importa lembrar-nos do que São Paulo diz: que as canções espirituais se não podem cantar bem senão de coração. O coração, porém, requer o entendimento. E nisto (diz Santo Agostinho) está a diferença entre o canto dos homens e o cantar das aves, um pintarroxo, um rouxinol, um papagaio, cantarão bem, mas sem entenderem o que cantam. Ora, o próprio dom do homem é cantar, sabendo o que está a dizer; ao entendimento deve seguir-se o coração e a afeição, o que se não pode dar a menos que tenhamos o cântico impresso em nossa memória para jamais cessar de cantar.[6]

Maringá, 05 de setembro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Agostinho, Confissões,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 6), 1973, X.33. p. 219-220. Compare com a descrição que Agostinho faz de festivais pagãos obscenos dos quais ele na juventude participara com satisfação (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (v. 1), II.4, p. 71-72). Essa luta era comum. Os Pais tendiam a combater as músicas seculares por serem de origem pagã, cheias de frivolidades e com uma conotação idólatra, Veja-se: Johannes Quasten, Music & Worship in Pagan & Christian Antiquity, p. 121ss. Beeke informa “que o Sínodo de Laodicéia (350 DC) e o Concílio de Bracatara (563 DC) proibiram o canto de hinos não escriturísticos”.  (Joel Beeke, Psalm Singing in Calvin and the Puritans. In: The Outlook, Middleville, Mi.: Reformed Fellowship, Inc.,  2010, v. 60, July-august (Disponível em: https://www.reformedfellowship.net/psalm-singing-in-calvin-and-the-puritans) (Consultado em 05.09.2020).

[2] Agostinho, Confissões,X.33. p. 220. Sobre os instrumentos, veja-se: Agostinho, A Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã, São Paulo: Paulus, 2002, (Patrística; 17), II.17-18. p. 114-115

[3] J. Calvino, As Institutas,III.20.31. Vejam-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 113-114.

[4] J. Calvino, As Institutas,III.20.32.

[5] Carta ao leitor de sua obra, A forma das orações e canções eclesiásticas, com o modo de administrar os sacramentos e de consagrar o casamento segundo o costume da Igreja. (1543). In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 6, col. 169.

[6] In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 6, col. 170-171.

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