Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (121)

d) Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)

Ênfases corretas podem esconder determinados vícios. Quem ousaria discordar da afirmação de que como cristãos devemos buscar a unidade? Porém, olhando essa afirmação com maior atenção, poderemos observar que podemos estar tão desejosos de que haja unidade – o que sem dúvida é um nobre desejo – que nos esquecemos da verdade.

Quem ousaria discordar das observações iniciais de Locke (1632-1704) em sua Carta já mencionada?

Ilustríssimo Senhor,
Já que me pedis a opinião sobre a tolerância recíproca entre os cristãos, eis a minha breve resposta: é para mim o principal critério da verdadeira Igreja. Podem uns vangloriar-se da antiguidade dos lugares e títulos ou do esplendor do culto, outros da reforma de sua disciplina, e todos em geral da ortodoxia da sua fé (com efeito, cada qual é ortodoxo a seus próprios olhos); estas e outras coisas do mesmo gênero são mais características da luta dos homens pelo poder e autoridade do que sinais da Igreja de Cristo. Quem tudo isto possui, mas carece de caridade, de mansidão e de benevolência para com todos os homens em geral, mesmo que não professem a fé cristã, ainda não é cristão.[1]

Na realidade não podemos fazer concessões com aquilo que não nos pertence. Muitas vezes fechamos os nossos olhos à verdade a fim de criar uma unidade artificial, erguida sobre o frágil fundamento da mentira, do engano ou da omissão. Além disso, está na moda ser simpático para com a posição diferente da sua, independentemente do grau de gravidade que você atribui à questão.

Surge, então, mais um tema agradável e, que, aparentemente, por si só, não carece de avaliação: tolerância.

Em nome da unidade – ironiza MacArthur – esses assuntos de doutrina jamais devem ser contestados. Somos encorajados a insistir em nada mais do que uma simples afirmação de fé em Jesus. Além disso, o conteúdo específico da fé deve ser um assunto de preferências pessoais.[2]       

Por trás do conceito de “tolerância” abriga-se, muitas vezes, a simples compreensão da impossibilidade de se chegar à verdade. Hughes chama-nos a atenção para essa acepção de “tolerância”:

A atitude de tolerância com relação a todos os outros pontos de vista passa a ser a regra básica de convivência dentro de uma mentalidade pós-moderna. No entanto, a tolerância não é mais definida como uma graciosa resposta individual para uma pessoa que sustenta pontos de vista errados. A tolerância é agora definida como a expectativa de que toda pessoa chegue a abandonar a ideia de que sua compreensão da verdade tenha mais validade que a perspectiva de outra pessoa.[3]

Não nos iludamos: a chamada tolerância, que tem um apelo tão simpático, tem, na realidade, se tornado em instrumento para neutralizar o conceito de verdade e de mentira ou, como disse Colson (1931-2012), “hoje, a tolerância é usada para chamar o mal de bem e o bem de mal”.[4]

A tolerância – no sentido de você crer de modo diferente do outro, discordar dele, contudo, respeitá-lo como pessoa (tolerância legal e tolerância social)[5] – nunca deve substituir o interesse pela verdade, ou, simplesmente, ter a roupagem daquilo que denominamos de “politicamente correto”. Quanto a este ponto em particular, que Stott chama de “tolerância intelectual”,[6] vale a pena citar as palavras enfáticas de MacArthur: “Passividade em relação ao erro conhecido não é uma opção para o cristão. A intolerância para com o erro encontra-se permeada nas próprias Escrituras. E tolerância para com o erro conhecido é tudo menos uma virtude”.[7]

Na realidade, a tolerância tem respeito para com a verdade e a sua busca. O cristão é chamado a ter compromisso com a verdade e com a tolerância. O mesmo Deus que diz “Eu sou a verdade”, instrui-nos: “Amai os vossos inimigos”.[8]

Portanto, no que se refere à igreja de Cristo, devemos tolerar as pessoas que pensam diferente de nós. Devemos amá-las, contudo, isto não significa que devemos tolerar as suas ideias, quando elas afrontam o nome de Cristo, e põem em perigo a sua igreja. Isso, jamais. “A tolerância bíblica é para as pessoas; a tolerância pós-moderna é para as ideias”, resume MacArthur.[9]

Maringá, 13 de agosto de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]John Locke. Carta sobre a Tolerância, Lisboa: Edições 70, (1987), p. 89.  

[2]John F. MacArthur Jr., Introdução do Editor: In: John F. MacArthur Jr. ed. Ouro de Tolo? Discernindo a Verdade em uma Época de Erro. São José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 10.

[3]John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John MacArthur Jr., ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 373.

[4]Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 180.

[5] Vejam-se: John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 359-360; Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 181.

[6] “Cultivar uma mente tão aberta que seja capaz de abraçar qualquer opinião, por mais falsa ou danosa que seja, nem nunca rejeitar coisa alguma, isso não é virtude; é um vício que denota fraqueza de espírito e de moral. No final, acaba gerando uma confusão sem princípios entre verdade e erro, entre o bom e o mal. Os cristãos, que creem que o bem e a verdade foram revelados em Cristo, não podem aceitar isso” (John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 360).

[7]John F. MacArthur Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica: Uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 50. À frente: “Uma cosmovisão bíblica é incompatível com qualquer tipo de tolerância de mentiras” (John F. MacArthur Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica, p. 68). “Ora, é evidente que a recusa em fazer um julgamento sobre a moralidade de uma ação não é tolerância genuína; é covardia moral, ou preguiça intelectual ou uma completa confusão. A verdadeira tolerância é a concepção de que mesmo se eu acreditar que você está errado, não vou usar de coerção para impor minha crença (agora é evidente que há exceções, como no caso de ações que causem dano a outrem). Uma pessoa realmente tolerante não irá se privar de fazer julgamentos, em vez disso preferirá se privar de usar da força pra fazer com que os outros mudem suas crenças; a sua intenção será, pelo contrário, fazer uso apenas de argumentos persuasivos” (Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa: uma introdução aos principais temas filosóficos, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 86).

[8] Cf. William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 11.

[9]John F. MacArthur Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica: Uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista,p. 23. Da mesma forma escrevera Carson: “As melhores formas de tolerância, em uma sociedade relativamente livre e aberta, são as receptivas e tolerantes com as pessoas, mesmo quando há grande desacordo acerca das ideias delas. Essa tolerância robusta em relação às pessoas, mesmo que nem sempre pelas ideias delas, produz alguma civilidade no discurso público enquanto ainda estimula o debate vigoroso sobre os méritos relativos dessa ou daquela ideia. No entanto, hoje, a tolerância em muitas sociedades ocidentais, foca cada vez mais as ideias, não as pessoas” (D.A. Carson, O Deus amordaçado: o Cristianismo confronta o pluralismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2013, p. 32).

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