A Pessoa e Obra do Espírito Santo (388)

6.4.9.1.7. Na interpretação dos fatos (Continuação)

João Calvino (1509-1564), escreveu com propriedade demonstrando que o Espírito quem deve guiar nossa razão:

Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação, que o apóstolo Paulo chama renovação da mente [Rm 12.2], tem sido ignorada por todos os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo viva e reine.[1]

          O clima intelectual de uma época é sempre fortemente influenciador de nossa estrutura de pensamento e, portanto, de nossas prioridades e valores. A força deste “clima” talvez repouse sobre a sua configuração óbvia e normativa com que ele se apresenta à nossa mente. É quase impossível ter a percepção de algo que nos conduz – como também a nossos parceiros de entendimento – de forma tão suave. Por isso, o simples – ainda que não seja tão simples assim – fato de podermos pensar com clareza, sem esses condicionantes, é uma bênção inestimável de Deus.[2] “O pecado é anti-intelectual”.[3]

          Por vezes, pensamos que o pensar com intensidade é uma tarefa exclusiva para profissionais, quem sabe, filósofos. No entanto, o Cristianismo apresenta um desafio constante ao pensamento, à análise e ponderação.[4] O homem é destinado ao pensamento. Na Criação vemos que Deus planeja, executa e avalia a sua obra (Gn 1.26-31). Ao mesmo tempo, lemos que Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Por isso, não podemos conceber o ser humano no emprego adequado de seus dons, não se valer naturalmente dessa característica divina que lhe foi concedida e, que o caracteriza.[5]

          Adler (1902-2001), resume assim a vocação do ser humano ao pensamento, à filosofia:

Não podemos deixar de repetir que a filosofia é assunto para todos. Ser um ser humano é ser dotado com a propensão de filosofar. Em certa medida, todos nos ocupamos de pensamentos filosóficos durante o curso de nossas vidas. Reconhecer isso não é o bastante. Também é necessário compreender por que é assim e qual é o negócio da filosofia. A resposta, em uma palavra, é ideias. Em duas palavras, é grandes ideias – as ideias básicas e indispensáveis para compreendermos a nós mesmos, nossa sociedade e o mundo em que vivemos.[6]

          Outro aspecto que destaco é que, pelo fato de nosso pensamento fluir com certa facilidade sobre determinados assuntos, termos opiniões formadas ou uma linha de pensamento que nos parece coerente e sensata, nem por isso podemos nos acomodar neles. É preciso que desenvolvamos a arte de pensar sobre o pensar. O pecado também afetou a nossa estrutura de pensamento e consequentemente o ato de pensar e, necessariamente, o processo de reflexão.[7] Muito do que vemos e priorizamos está associado, não ao que vemos, mas, à nossa predisposição intelectual para ver como vemos.[8]

          Como cristãos, talvez por partirmos do pressuposto equivocado de que a fé cristã é apenas uma questão de sentimento, corremos o risco de reduzi-la e às Escrituras a apenas esta esfera da realidade. Deste modo, o nosso cultuar limita-se ao que sentimos, ainda que nada compreendamos ou mesmo, nos esforcemos por isso. Não podemos ser cristãos autênticos sem o cultivo de uma mente que também busque o amadurecimento.[9]

A essência da sabedoria celestial consiste nisto: que os homens, tendo seus corações fixos em Deus por meio de uma fé genuína e não fingida, o invoquem; e que, com o propósito de manter e nutrir sua confiança nele, se exercitem em meditar sinceramente nesses benefícios; e que, então, se lhe entreguem em obediência sincera e devotada.[10]

          Cada época é, de certa forma, cativa de valores que são apresentados com status de racionalidade, objetividade, universalidade e perpetuidade. É extremamente difícil escapar dos encantos sedutores de nossa geração.[11] Contrariamente, o que Paulo instrui a Timóteo é no sentido de que ele reflita sobre o que o apóstolo lhe escreveu buscando a compreensão no Senhor.

          Reflexão e oração caminham juntas. Devemos, portanto, pensar sobre o pensar rogando a Deus a sua iluminação.[12] Deus, por graça, nos dará o discernimento sobre todas as coisas. Pensar, orar e discernir devem ser um prelúdio à submissão sincera. Pense sobre isso.

Maringá, 24 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 184 (Veja-se a nota 5 in loc).

[2]Ver: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 32.

[3]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 72.

[4]“Precisamos pensar profundamente no que significa o cristianismo e sua relação com as questões culturais” (H.R. Rookmaaker, A Arte não Precisa de Justificativa, Viçosa, MG.: Ultimato, 2010, p. 32).

[5] “Não posso conceber um homem sem pensamento: seria uma pedra ou um animal” (Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores, v. 16), VI.339. p. 127. Veja-se também, p. 128 e 130).

[6]Mortimer J. Adler, Como pensar sobre as grandes ideias, São Paulo: É Realizações, 2013, p. 21.

[7] “Os cristãos precisam pensar sobre o pensamento. (…) A maioria dos seres humanos, contudo nunca pensa profundamente sobre o ato de pensar. (…) Devido à devastação intelectual causada pela queda, temos a obrigação de pensar sobre o ato de pensar. Essa é a razão pela qual o discipulado cristão é, também, uma atividade intelectual” (R. Albert Mohler Jr., O modo como o mundo pensa: Um encontro com a mente natural no espelho e no mercado. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 44,45,54).

[8]Recordo aqui o que citamos acima: “Você não precisa acreditar em tudo o que pensa, e a razão é simples: nós vemos o que queremos ver. (…) O nervo óptico, o único nervo com ligação direta com o cérebro, na verdade transmite mais impulsos do cérebro para o olho do que vice-versa. Isto significa que seu cérebro determina o que o olho vê. Você já está precondicionado. É por isso que, se quatro pessoas presenciarem um acidente, cada uma vai relatar algo diferente. Precisamos nos lembrar, e ensinar aos outros, que não devemos acreditar em tudo o que pensamos” (Rick Warren, A batalha pela sua mente. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 27). “Em suas Memórias, Ludwig Richter [1803-1884] lembra uma passagem de sua juventude, quando certa vez, em Tivoli, ele e mais três companheiros resolveram pintar um fragmento de paisagem, todos firmemente decididos a não se afastarem da natureza no menor detalhe que fosse. E embora o modelo tivesse sido o mesmo e cada um tivesse sido fiel ao que seus olhos viam, o resultado foram quatro telas completamente diferentes – tão diferentes quanto as personalidades dos quatro pintores. O narrador concluiu, então, que não havia uma maneira objetiva de se verem as coisas, e que formas e cores seriam sempre captadas de maneira diferente, dependendo do temperamento do artista” (Heinrich Wölfflin, Conceitos Fundamentais da História da Arte, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, (2ª tiragem) 2006, p. 1). (Observo que Wölfflin está associado ao surgimento da história da arte como uma disciplina científica na Alemanha no século XIX. Veja-se: Jean-Claude Schmitt, Imagens: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru,SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 1, p. 591).

[9] “Nossas igrejas estão cheias de pessoas que são espiritualmente nascidas de novo, mas que ainda pensam como não cristãs” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 14). À frente: “Nossas igrejas estão cheias de cristãos intelectualmente preguiçosos” (p. 26).

[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3 (Sl 78.7), p. 202.

[11] “Cada época caracteriza-se por determinadas crenças responsáveis por sua visão de mundo” (Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 19).

[12] “Pensar intensamente sobre a verdade bíblica é o meio pelo qual o Espírito nos mostra a verdade” (John Piper: In: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 64).

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