A Pessoa e Obra do Espírito Santo (389)

6.4.9.2. Confere dons à igreja[1] 

Os cristãos não só professam crer no Espírito Santo, mas são também os receptores de Seus dons – Charles Hodge.[2]

Satanás pode imitar muitos dos dons do Espírito Santo. – Lloyd-Jones (1899-1981).[3]  

Enquanto um dos servos de Deus prega fielmente a Palavra e é zeloso em guiar seu povo a uma vereda certa, há bem poucos que tentam ajudá-lo. A maioria fará tudo quanto pode para lançar tudo de ponta cabeça. Enquanto alguém com muito esforço e dificuldade carrega uma pedra, outros arrancarão três com o fim de impedir o prosseguimento da obra. Tais coisas são corriqueiras hoje. Por isso devemos labutar com ousadia para construir este templo espiritual de Deus e que nenhuma dificuldade nos impeça de prosseguir, pois Deus nos dá graça para terminar enquanto não formos ociosos e negligentes. – João Calvino[4]

Conforme já tratamos, no Antigo Testamento encontramos com frequência a ação do Espírito associada à vida intelectual de diversos homens (Vejam-se: Jó 32.8; 35.10,11/Gn 2.7; Ex 31.2-6; 35.31-35; Nm 11.17,25-29; 27.18-21/Dt 34.9). O Espírito é o autor de toda vida intelectual e artística. Nele temos o sentido do belo e sublime como expressão da santa harmonia procedente do Deus Triúno, que é perfeitamente Belo em sua Santidade e Majestade.

          Referindo-se à obra de Bezalel e Aoliabe, Ferguson escreve:

A beleza e a simetria da obra executada por esses homens na construção do tabernáculo não só deram prazer estético, mas um padrão físico no coração do acampamento que serviu para restabelecer expressões concretas da ordem e glória do Criador e suas intenções em prol de sua criação.[5]

          Calvino entendia que a arte e as demais coisas que servem ao uso comum e conforto desta vida são dons de Deus; portanto, devemos usá-las de forma legítima a fim de que o Senhor seja glorificado.[6]

          Quanto mais o homem se aprofunda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos da divina sabedoria”.[7]

          Conforme já enfatizamos, ainda que as artes não tenham poder redentivo, não sendo este o seu propósito, elas contribuem para temperar a nossa vida com mais encanto e beleza, quer pelo que reproduz (o seu tema), quer pela forma de fazê-lo (habilidade). A beleza da arte não está simplesmente em sua temática, mas, também, na qualidade daquilo que reproduz e reinventa a partir da natureza que a alimenta.

          A Escritura nos mostra que Deus como autor de toda beleza, aprecia o belo. A beleza não tem existência própria e autônoma; ela provém de Deus, daí o perigo de fazermos a separação entre beleza e Deus, correndo o risco de adorar a criação em lugar do Criador (Rm 1.25).

          Como demonstramos, a arte é uma expressão de percepção de mundo. Esta percepção está longe de ser neutra. Por isso, toda arte é existencial e axiológica. Aqui temos um ponto final. Contudo, se pessoas são levadas a Cristo por meio desta música, desse quadro ou daquela poesia, não torna a minha arte melhor ou pior. Isso, ainda que relevante, não muda a essência do que fiz (qualidade), do princípio que me orientou (a Palavra) e do seu objetivo final que é glorificar a Deus.

          Somos filhos de Deus, criados não por qualquer um, mas, pelo próprio Deus (Sl 100.3). Deus nos recria em Cristo, o Deus Encarnado, não simplesmente para uma admiração recíproca, mas, para que caminhemos nas boas obras preparadas de antemão, as quais, devido às nossas limitações, nem sempre nos parecerão belas, contudo, foram ordenadas por Deus. Os caminhos propostos pela Sabedoria de Deus são belos (Pv 3.17).[8] A grande beleza estética na vida do homem está em obedecer a Deus, seguindo os Seus caminhos!

          Os talentos que os seres humanos têm, inclusive para a arte, provém de Deus que, em sua graça comum, mune a todos com talentos para que a vida em sociedade seja menos cinzenta, com o domínio monocromático do pecado.

          Em passagem magistral, analisando Gênesis 4.20, Calvino destaca o fato de que mesmo na amaldiçoada descendência de Caim, há espaço para a graça de Deus, concedendo-lhe dons que permitissem a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida presente. “Verdadeiramente é maravilhoso que esta raça que tinha caído profundamente de sua integridade superaria o resto da posteridade de Adão com raros dons”.[9]

          Entende que Moisés registrou isso para realçar a graça de Deus que não se tornou vã sobre estes homens, visto que “havia entre os filhos de Adão homens trabalhadores e habilidosos, que exerceram sua diligência na invenção e no cultivo da arte”.[10] Por isso, as “artes liberais (Humanidades) e ciências chegaram até nós pelos pagãos. Realmente, somos compelidos a reconhecer que recebemos deles a astronomia e outras partes da filosofia, a medicina e a ordem do governo civil”.[11]

          Entrando agora na esfera da graça especial, digo que a Igreja de Cristo é uma comunidade carismática porque todos os seus membros receberam dons (xa/risma) para o serviço de Deus na Igreja.    “A igreja é uma, porque o Espírito habita em todos os crentes. A igreja é multifacetada, porque o Espírito distribui diferentes dons aos crentes. De forma que o dom do Espírito (que Deus nos dá) cria a unidade da igreja, e os dons do Espírito (que o Espírito dá) diversifica o ministério da igreja”, comenta Stott.[12]

          Os dons concedidos pelo Espírito, longe de servirem para confusão ou vanglória, devem ser utilizados com humildade (1Co 4.7/2Co 5.18),[13] para a edificação e aperfeiçoamento dos santos (1Co 12.1-31/Ef 4.11-14/Rm 12.3-8).[14]

          Calvino (1509-1564) acertadamente diz que “se a igreja é edificada por Cristo, prescrever o modo como ela deve ser edificada é também prerrogativa dele”.[15]

          Conforme vimos, acentua Kuyper (1837-1920): “Os carismata ou dons espirituais são os meios e o poder divinamente ordenados pelos quais o Rei habilita a sua Igreja a realizar sua tarefa na terra”.[16] O Carisma tem sempre um fim social: a Igreja; a comunhão dos santos.[17] E também, como elemento de ajuda na proclamação do Evangelho (Hb 2.3-4).[18]

Maringá, 26 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Veja-se uma boa abordagem deste assunto, apesar de algumas interpolações na edição brasileira nem sempre identificáveis com clareza, em: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã ‒ Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 526-537

[2] Charles Hodge, Teologia Sistemática,São Paulo: Hagnos, 2001, p. 391.

[3] D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 92.

[4] João Calvino, Sermões sobre Tito,  Brasília, DF.: Monergismo,  2019, p. 58 (Edição do Kindle).

[5]Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 26. “Deus quis que a vocação artística fosse exercida como um aproveitamento obediente e edificante de matérias, sons, formas, paisagens, palavras, gestos e outras coisas semelhantes que Ele colocou sob os cuidados dos homens e das mulheres” (C.G. Seerveld, Arte: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 121).

[6]Cf. João Calvino, As Institutas,I.11.12; John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 4.20), p. 217-218; v. 3, (Ex 31.2), p. 291.

[7] João Calvino, As Institutas,I.5.2.

[8]“Os seus caminhos são caminhos deliciosos (~(;nO) (no`am) (= belos, amáveis), e todas as suas veredas, paz” (Pv 3.17).

[9]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 4.20), p. 217.

[10] John Calvin, Calvin’s Commentaries, v. 1, (Gn 4.20), p. 218.

[11]John Calvin, Calvin’s Commentaries, v. 1, (Gn 4.20), p. 218. “É bem verdade que os que receberam instrução sobre as artes liberais, ou que provaram algo delas, têm nesse conhecimento uma ajuda especial para aprofundar-se nos segredos da sabedoria divina” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1. p. 63). Vejam-se também: João Calvino, As Institutas, I.5.2; II.2.12-17.

[12]John Stott,Batismo e Plenitude do Espírito Santo, 2. ed. (ampliada), São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 64.

[13] “Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se ponha num nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A genuína base da humildade cristã consiste, de um lado, em não ser presumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos; e, de outro, se Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à conta da divina graça” (João Calvino,Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134-135).

[14]Obviamente, não estamos trabalhando aqui com as categorias de Max Weber (1864-1920), que define Carisma como         “…uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (…) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como ‘líder’”  (Max Weber, Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva,Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1991, v. 1, p. 158-159). Como o próprio Weber explica, “O conceito de ‘carisma’ (‘graça’) foi tomado da terminologia do cristianismo primitivo” (Ibidem., p. 141). Weber tomou a palavra emprestada em Rudolph Sohm (1841-1917), da sua obra Direito Eclesiástico para a Antiga Comunidade Cristã (Cf. Ibidem.,p. 141). A análise das questões relativas ao domínio carismático, “estão no centro das reflexões de Weber” (Julien Freund, A Sociologia de Max Weber,Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 184). Sobre o conceito de Sohm, veja-se: https://www.jstor.org/stable/1202395 (Consultado em 12.01.2022).

[15]João Calvino, Efésios,São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.12), p. 125.

[16] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, Chattanooga: AMG. Publishers, 1995, p. 196.

[17] Veja-se: Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 229.

[18] Vejam-se: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.4), p. 56; João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 36.

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