A Pessoa e Obra do Espírito Santo (376)

 6.4.9.1.2. A pregação do Evangelho pelo poder de Deus e a perseguição (Continuação)

3) Fidelidade, perseguição, crescimento e consolo

A Igreja no Novo Testamento logo enfrentou uma série de perseguições geradas, num primeiro momento, pelos judeus que incitavam as autoridades romanas. Para citar apenas algumas, temos a perpetrada contra Estevão, que morreu apedrejado (At 7.1-60); a de Herodes Agripa I, que prendeu a Pedro e decapitou Tiago (At 12.1-3); Paulo, o antigo perseguidor do Evangelho, foi aquele que mais sofreu perseguições (At 9.23-25,29; 14.2-7,19; 16.19-24; 17.4-9, 13-15; 21.30-32).

          Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um resumo do que havia sofrido pelo evangelho de Cristo (2Co 11.23-33). Contudo, havia nele, uma visão constante que transpunha o sentimento de dor e angústia. Na prisão, escreveu aos filipenses:“Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho”(Fp 1.12) e, diz mais: “Alegrai-vos sempre no Senhor, outra vez digo, alegrai-vos”(Fp 4.4). O evangelho prosseguia em sua caminhada vitoriosa a despeito dos obstáculos erguidos contra ele. Paulo estava convencido, e demonstrava isto na prática, que Deus nos faz vencer os obstáculos que estão à nossa frente.

          A perseguição não se encerrou no primeiro século; a Igreja ao longo de toda a história tem sido alvo de ataques físicos, morais, intelectuais e espirituais; todavia, ao lado dessas afrontas, ela tem podido desfrutar da presença confortadora do Espírito Santo. O Espírito que habita em nós, nos conforta em todos os momentos, nos amparando quando parece que não temos onde ou em quem nos apoiar.

          “Assim, o Espírito Santo é o autor imediato de toda a verdade, de toda a santidade, de toda a consolação, de toda a autoridade e de toda a eficiência nos filhos de Deus, individualmente, e na Igreja, coletivamente”, aplica Hodge.[1] De fato, o Senhor Jesus não nos deixou órfãos. Ele, ele mesmo, está conosco aqui e agora e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31).

          Os registros históricos que temos a partir do segundo século informam-nos de que, apesar de perseguidos, os cristãos davam o seu testemunho, sendo muitas vezes martirizados – aliás, a palavra grega “mártir” significa “testemunha” –, vemos também que o seu comportamento era contagiante por meio de uma conduta diferente, que procurava se pautar pela Palavra de Deus.

          Aqui se torna oportuno transcrever parte de um documento anônimo, escrito ao que parece no final do 2° século, intitulado Carta a Diogneto,que consistia numa explicação do pensamento, conduta e fé cristã, dirigida a um pagão que, impressionado com o testemunho cristão, queria saber mais a respeito dessa religião.[2]

Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis; amam a todos e são perseguidos por todos (…). Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.[3]

          Antes de 313, quando o Imperador Constantino (c. 274-337) promulgou a liberdade de culto pelo Édito de Milão (313), no qual declarava o fim das perseguições aos cristãos e a restituição de suas propriedades,[4] o Cristianismo como religião “subversiva”, realizava as suas reuniões secretamente; agora, os cristãos dispõem de templos[5] e podem adorar publicamente.

          Eusébio de Cesaréia, no início do quarto século, descreve o trabalho dos Evangelistas:

Efetivamente, muitos dos discípulos de então, feridos em suas almas pela palavra divina (…) logo empreendiam viagem e realizavam obra de evangelistas, empenhados em pregar a todos os que não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por escrito os evangelhos divinos.[6]

          Mesmo com uma história de discriminação, perseguição e martírio, o Cristianismo cresceu. Em 330, Constantino inaugurou a cidade de Constantinopla transferindo a capital de Roma para a nova cidade. Numa carta a Eusébio, bispo de Cesaréia, Constantino pedindo com urgência a preparação de 50 Bíblias para a nova capital, revela algo a respeito do crescimento do número de cristãos e de igrejas:

Com a ajuda da providência de Deus, nosso Salvador, são muitíssimos os que se hão incorporado à santíssima Igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, pois, mui conveniente que, respondendo ao rápido progresso da cidade sob todos os aspectos, se aumente também o número de Igrejas.[7]

          O Cristianismo tornara-se popular, sendo seus cultos muito concorridos.

          No entanto, nem tudo era tranquilo. Se por um lado as perseguições cessaram, por outro, vemos que, no quarto e quinto séculos, tornam-se evidentes a influência das religiões de mistério no culto. O antigo respeito para com os mártires transformou-se em culto, surgindo a partir daí um “cristianismo popular de segunda classe”.

          Aos poucos os novos convertidos tendiam a transferir a Deus, aos apóstolos e mártires, parte da reverência dos antigos cultos prestados a poderes miraculosos que atribuíam aos seus antigos deuses pagãos. Partindo dessa prática foi apenas um passo para que os apóstolos, os anjos e Maria passassem a ser adorados. O culto cristão pouco a pouco se paganizara.

          Calvino nos orienta pastoralmente: “A Igreja será sempre libertada das calamidades que lhe sobrevêm, porque Deus, que é poderoso para salvá-la, jamais suprime dela sua graça e sua bênção”.[8] Portanto, “se algo de adverso lhe houver ocorrido, aqui também o servo do Senhor de pronto elevará a mente para com Deus, cuja mão muito vale para imprimir-nos paciência e serena moderação de ânimo”.[9]

          As perseguições geradas pelo Evangelho se constituem em evidência de que a nossa proclamação tem sido fiel e, ao mesmo tempo, em oportunidade para que testemunhemos: “Antes, porém, de todas estas coisas, lançarão mão de vós e vos perseguirão (diw/kw), entregando-vos às sinagogas e aos cárceres, levando-vos à presença de reis e governadores, por causa do meu nome; 13 e isto vos acontecerá para que deis testemunho (martu/rion) (Lc 21.12-13).

          O Espírito alimenta a Igreja, fazendo-a crescer espiritual e numericamente. Creio que o crescimento significativo ocorre nesta ordem. Quando a Igreja conhece a Palavra e a pratica, prega com maior autoridade e, enquanto anuncia e vive o evangelho, o Senhor, por sua misericórdia, acrescenta o número de salvos. É justamente isto que vemos em Atos: a Igreja pregava a Palavra com fidelidade, vivendo o evangelho com sinceridade e o Espírito fazendo a Igreja crescer.

          A melhor estratégia é a do Espírito Santo e o método infalível de Deus é a pregação fiel da Palavra. A pregação do evangelho compete ordinariamente a nós; é função exclusiva da Igreja; não há outra entidade, agremiação ou organização a que Deus tenha incumbido deste privilégio responsabilizador. “A Igreja é uma instituição especial e especialista, e a pregação é uma tarefa que somente ela pode realizar”.[10] No entanto, o crescimento, é obra do Espírito (At 2.47; 4.4; 6.7; 9.31; 12.24; 14.1; 16.4-5).[11]

          Observemos, também, que, muitas vezes, a responsabilidade do não crescimento da Igreja está em nós, que nos entregamos a uma letargia espiritual, não amadurecendo em nossa fé e, consequentemente, não apresentando um testemunho genuíno (Vejam-se: Hb 5.11-14/1Co 3.1-9; Ef 4.11-16). Devemos aproveitar as oportunidades que Deus nos dá, aprendendo a Palavra, fortalecendo a nossa fé, sendo educados por Deus e, assim, viver de modo digno do Senhor, testemunhando o Evangelho com fidelidade e autoridade.

Maringá, 08 de janeiro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Charles Hodge, Teologia Sistemática,São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 396.

[2] Veja-se: Carta a Diogneto, I: In: Padres Apologistas,São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.

[3] Carta a Diogneto, V.1-11,17: In: Padres Apologistas, p. 22-23.

[4]Vd.Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica,Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), X.5.2-14. Sobre outras disposições de Constantino em favor dos cristãos, Vd.Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, X.5.15-17.

[5] É digno de nota que, o imperador Alexandre Severo (reinou durante o período de 222-235), foi o primeiro a construir um “templo cristão” (Cf. H.H. Halley, Manual Bíblico,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1971, p. 672). Todavia, ele “tinha em sua capela estátuas de Orfeu, Alexandre o Grande, de vários imperadores romanos e de Jesus. (sic!)” (K.S. Latourette, Historia del Cristianismo,4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. 1, p. 126).

[6]Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), III.37.2.

[7]Eusebio, The Life of Constantine,IV.36: In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (reprinted), 1978, v. 1, p. 549.

[8] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 3.8), p. 88. “Sempre que nossas mentes se agitam e caem em perplexidade, devemos trazer à memória a seguinte verdade: sejam quais forem os perigos e apreensões que porventura nos ameacem, a segurança da Igreja que Deus estabeleceu, por mais dolorosamente abalada ela seja, por mais poderosamente assaltada, jamais poderá ser demasiadamente enfraquecida e envolvida em ruína” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 48.8), p. 362). Ver também: João Calvino,As Institutas,I.17.6.

[9] João Calvino, As Institutas,I.17.8. Veja-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos,(Sl 25.4), v. 1, p. 541; João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 46.3), p. 331.

[10] D. Martyn Lloyd-Jones, Pregação e Pregadores, São Paulo: Fiel, 1984, p. 23.

[11]“Louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2.47). “Muitos, porém, dos que ouviram a palavra a aceitaram, subindo o número de homens a quase cinco mil” (At 4.4). “Crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé” (At 6.7). “A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número” (At 9.31). “Entretanto, a palavra do Senhor crescia e se multiplicava” (At 12.24). “Em Icônio, Paulo e Barnabé entraram juntos na sinagoga judaica e falaram de tal modo, que veio a crer grande multidão, tanto de judeus como de gregos” (At 14.1). “Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que as observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém. Assim, as igrejas eram fortalecidas na fé e, dia a dia, aumentavam em número” (At 16.4-5).

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