A Pessoa e Obra do Espírito Santo (151)

6.3.2.1. A Palavra como instrumento eficaz do Trino Deus

A pregação externa, eu reconheço, não pode fazer nada separadamente ou por si mesma; mas como é um instrumento do poder divino para nossa salvação, e pela graça do Espírito um instrumento eficaz, o que Deus uniu não o separemos (Mt 19.6) – João Calvino.[1]  

A vocação é um ato exclusivo de Deus. O Espírito de Deus por meio da Palavra nos chama eficazmente. O Espírito nos regenera,[2] nos atraindo a Cristo, nos capacitando a responder com fé, atendendo ao seu chamado. Em outras palavras, Deus chama eficazmente os seus eleitos (Ef 1.4-5).

Mas, o que significa vocação? Tomemos aqui a definição de Hoekema (1913-1988): “[Vocação eficaz é] a ação soberana de Deus através do Espírito Santo, pela qual Ele habilita o ouvinte do convite do Evangelho a responder ao apelo em arrependimento, fé e obediência”.[3]

Assim como a eleição eterna, o chamado de Deus não cai no vazio porque Ele é poderoso para levar adiante o seu propósito salvador. “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados (kale/w) à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9).

O Senhor não somente nos convida, antes, opera o seu chamado de modo gracioso, poderoso e eficaz, quebrando toda a resistência pecaminosa de nossa parte.

O homem natural está tão dominado pelo seu pecado, tão prazerosamente cativo à vontade de Satanás, que jamais poderia desejar a sua salvação já que a sua sensação é autonomia (2Tm 2.25-26).[4]

O pecado é enganoso justamente pela capacidade que tem de nos socializar em seu domínio, não nos deixando enxergar o nosso estado terminal.

O pecado entre as suas artimanhas de sobrevivência e fortalecimento, se vale da concessão da falsa sensação de liberdade. Todos queremos ser livres.  O trágico é que justamente o pecado, o mais escravizador de todos os senhores (Jo 8.34), que nos conduz a todo tipo de amarras, nos levando a multifacetados vícios escravizantes, faz-nos pensar que a liberdade buscada, o sentido da vida perseguido, está justamente no vício. Que tragédia! O supremo encarcerador nos fascina com a promessa de total liberdade. É precisamente por isso que, dominados por  esse engano, o governo de Cristo é considerado como “laços” e “algemas” (cordas, correntes) pelos incrédulos (Sl 2.3).

Aqui, o pregador deve atuar considerando essas duas realidades que temos tratado com insistência: O pecador jamais atenderá à mensagem que anunciamos. Deus é poderoso para, por meio do Evangelho, método que Ele mesmo estabeleceu, alcançar a todos a quem Ele destinou fazê-lo.

Calvino afirma esta mesma verdade de forma inversa: “O reino do céu deveras se nos abre pela pregação externa do evangelho, mas ninguém entra nele a menos que Deus lhe estenda sua mão; ninguém se aproxima a menos que seja interiormente atraído pelo Espírito”.[5]

Deus transforma as nossas vozes que podem apenas alcançar os ouvidos dos homens, e as transporta poderosamente para o coração homem, os fazendo ter consciência de sua situação e a desejarem desesperadamente a salvação.

Paulo enfatizando a liberdade soberana de Deus na manifestação de sua vontade e graça, escreve: “Que nos salvou e nos chamou (kale/w) com santa vocação (klh=sij); não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).

Jesus Cristo já dissera aos judeus incrédulos que o interpelaram: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10.27). (Vejam-se também: Rm 8.30; Jo 6.44; 16.13-14; Rm 4.17).[6]

O autor de nossa eleição é o autor de nosso chamado (Rm 8.29-30).[7] O instrumento ordinário determinado por Deus para este chamado, é o Evangelho, o qual compete à Igreja anunciar fiel, intensa e sinceramente a todas as pessoas, independentemente de raça, classe social, cor de pele ou idade (Is 45.22; 55.1,6,7; Mt 11.28; Mc 16.15-16; Ap 22.17).[8]

Por isso mesmo, devemos compreender a evangelização como sendo a proclamação essencial[9] da Igreja de Cristo, que consiste no anúncio de Suas perfeições e de Sua obra salvífica, conforme ensinadas nas Sagradas Escrituras, reivindicando pelo Espírito, que os homens se arrependam de seus pecados e creiam salvadoramente em Cristo.

A igreja em sua missão é agente da Trindade enviada ao mundo com a nobre tarefa de representar o seu Senhor conclamando os homens ao arrependimento e à fé, a fim de que crendo, sendo assim reconciliados com Deus por meio de Cristo, sejam incorporados à igreja, o Corpo de Cristo, passando a ter comunhão com o Senhor e os demais membros, aguardando em adoração e proclamação a vinda do Reino.

 Esta é a nossa tarefa. Todavia, o chamado interno, que é poderosamente eficaz (“vocação eficaz”), é operado pelo Espírito Santo em nosso coração que nos regenera, nos convence por meio da Palavra, conduzindo-nos ao arrependimento e fé em Cristo Jesus. Somente o Espírito torna o Verbum Dei externum em Verbum Dei internum. Deus opera em nosso coração mudando a nossa disposição criando fé. Somente Deus pode operar esta transformação vital.[10]

Nas palavras de Cristo, vemos os dois aspectos da mesma operação divina, conforme diversos outros textos das Escrituras:

37Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. (…) 44 Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. 45 Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim. (…) 65 E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. (Jo 6.37,44-45,65).

Na Oração Sacerdotal, Jesus Cristo diz que seus discípulos pertencem a Deus desde a eternidade (Jo 17.6). Notemos então, que Deus chama os seus por meio da Palavra. A transmissão da Palavra faz parte do propósito eterno de Deus.[11] É um elo fundamental dentro da consecução do Pacto da Graça, tendo em Jesus Cristo o seu fiel despenseiro.

Os gentios, extasiados com a mensagem da graça também destinada a eles, vibram. Lucas registra: Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48).[12]

Calvino (1509-1564) insiste: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”.[13]

As Escrituras apontam para Cristo fornecendo-nos um conhecimento fidedigno. Ele nos conduz ao Pai: pertencemos a Deus. Fomos chamados por intermédio da Palavra. Paulo tem esta consciência: “Para o que também vos chamou (kale/w) mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2.14).

Os Cânones de Dort (1619)descrevem a forma como a graça de Deus opera em nosso chamado:

Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles a verdadeira conversão da seguinte maneira: ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação e poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que possam entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas, pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até os recantos mais íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e enternece o que está duro, circuncida o que está incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava morta, mas ele a faz reviver; era má, mas ele a torna boa; estava indisposta, mas ele a torna disposta; era rebelde, mas ele a faz obediente, ele move e fortalece esta vontade de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras.[14]

Olhando por outro ângulo, entendemos que esta é a mais nobre tarefa da Igreja: glorificar a Deus por meio de sua obediência, anunciando fielmente a Palavra para que os pecadores eleitos sejam reunidos e possam, juntamente conosco, glorificar a Deus por sua maravilhosa graça, cultuando-o em Espírito e verdade.

Maringá, 05 de abril de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]John Calvin, Commentary of a Harmony of the Evangelists, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. 17/1),1996, (Lc 1.16), p. 19.

[2] “Seria tolice um pregador chegar a um enterro e encorajar os cadáveres a levar uma vida reta. Para que as palavras pudessem fazer algum efeito, os cadáveres teriam de reviver. Só assim poderiam responder” (James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 445).

[3] A.A. Hoekema, Salvos pela Graça,São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 93.

[4]25 Disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade,  26 mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade” (2Tm 2.25-26).

[5] John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19/1, (At 14.27), p. 31.

[6]13 quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. 14 Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14). “Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí.), perante aquele no qual creu, o Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4.17).

[7]A Confissão de Westminster declara: “Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação” (X.1). “Na verdade, o Senhor chama eficazmente só os eleitos” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 153). “O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa salvação” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 128). Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, 2. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 82-83.

[8] Vejam-se: Os Cânones do Dort, São Paulo: Cultura Cristã, (s.d.), II. Art. 5; L. Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990,p. 463-465; A.A. Hoekema, Salvos pela Graça,São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 77-86.

[9]Coloquei a evangelização como uma “proclamação essencial”, por entender que a Igreja por si só já é um testemunho do “Evangelho de Deus” e, como tal, faz parte da sua essência anunciá-lo como realidade historicizada. João Calvino observou com precisão, que uma das marcas da Igreja de Cristo, é a “pregação pura da Palavra de Deus” (Veja-se: As Institutas,Dedicatória, 10; IV.1.9-12; IV.2.1).

[10]Veja-se: R.C. Sproul, Somos todos teólogos: uma introdução à teologia, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2017, p. 330-332.

[11]Quanto à conexão entre pregação e salvação, veja-se: Hermisten M. P. Costa, Efésios – O Deus Bendito, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 98ss.

[12] Calvino resume: “Ora, há a vocação universal, pela qual, mediante a pregação externa da Palavra, Deus convida a si a todos igualmente, ainda aqueles aos quais a propõe como aroma de morte [2Co 2.16] e matéria da mais grave condenação. A outra é a vocação especial, da qual digna ordinária e somente aos fiéis, enquanto pela iluminação interior de seu Espírito faz com que a Palavra pregada se lhes assente no coração. Contudo, às vezes também faz participantes dela aqueles a quem ilumina apenas por um tempo; depois os abandona ao mérito de sua ingratidão e os fere de cegueira mais profunda” (João Calvino, As Institutas (2006), III.24.8).

[13]João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374. A vocação eficaz do eleito “não consiste somente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). “A pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faça indesculpáveis diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir aonde quer que Deus a chame” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.43), p. 79).

[14] Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, (s.d.), III-IV, Art. 11.

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