A Pessoa e Obra do Espírito Santo (163)

6.3.2.3. Vocação eficaz: Da eternidade para eternidade em santidade  (Continuação)

A certeza do cuidado de Deus é suficiente para acalmar a nossa ansiedade e a nos alegrar em Deus. Conforta-nos pastoralmente Calvino:

Não há outro método de aliviar nossas almas da ansiedade, senão repousando sobre a providência do Senhor (…). Nossos desejos e petições devem ser oferecidos com a devida confiança em sua providência, pois quem há que ore com clamor de espírito e que, com inusitada ansiedade e vencido pela inquietação, parece resolvido a ditar termos ao Onipotente? Em oposição a isso, Davi a recomenda como sendo a devida parte da modéstia em nossas súplicas para que transfiramos para Deus o cuidado daquelas coisas que pedimos, e não pode haver dúvida de que o único meio de refrear nossa excessiva impaciência é mediante a absoluta submissão à divina vontade quanto às bênçãos que queremos nos sejam concedidas.[1]

          Daí a importância de mantermos nossa fé amparada em Deus, que cuida de nós não nos sendo indiferente: “…. Quando nada senão destruição se manifestar ante nossos olhos, para qualquer lado que nos viremos, lembremo-nos de erguê-los em direção do trono celestial, donde Deus vê tudo o que se faz aqui em baixo”.[2]

          Qual a implicação ética disso tudo? Indiferença? Não. Analisemos este ponto.

            A compreensão de Calvino a respeito da direção de Deus sobre todas as coisas, ao contrário do que poderia parecer, não o leva à ociosidade ou a um tipo de perspectiva fatalista afirmando que nada podemos fazer a não ser nos contentar com o que está previamente fixado por uma causa sobrenatural. Pelo contrário, sua compreensão de providência de Deus inspira-o ao trabalho, consciente de que somos instrumentos de Deus para a execução do seu sábio e eterno propósito.

Esta doutrina tem, portanto, uma “urgência pragmática” para todo o povo de Deus. O tempo é um recurso precioso que Deus nos concede para o progresso em todas as esferas de nossa vida.[3]

          A ética de Calvino leva em questão duas necessidades básicas:

1) A consideração sobre o drama da existência humana, sujeita ao pecado e à morte. O pecado afetou a integralidade do homem;[4]     

2) Explorar as implicações de nossa fé: responsabilidade humana.[5]

          O pecado tende a anestesiar a nossa consciência nos acomodando à paisagem de miséria cotidiana nas diversas molduras de nossa existência. A Palavra, no entanto, desperta as nossas consciências.

          Portanto, a certeza do cuidado de Deus não nos deve conduzir à letargia, antes a nos tornar agentes deste cuidado. Devemos ter em vista que o cuidado de Deus envolve pessoas das quais Ele cuida e, ao mesmo tempo, pessoas por meio das quais Ele assiste. Deste modo, somos agentes ordinários de Deus − ainda que não tenhamos o discernimento constante deste fato em nossas ações − no seu socorro. Muitas vezes em nossas ações ordinárias estamos sendo agentes de Deus em resposta a orações dos fiéis.

Existe ética porque há um Deus providente. A ética cristã é uma resposta à certeza do cuidado de Deus. Somos responsáveis diante de Deus por levar adiante o que nos compete, dentro de nossa esfera. Instrui-nos Calvino: “Se o Senhor nos confiou a proteger a nossa vida, que a cerquemos de cuidados; se oferece recursos, que os usemos; se nos previne de perigos, a eles não nos arrojemos temerariamente; se fornece remédios, não os negligenciemos”.[6]

          A ética cristã é fortemente marcada pela certeza de que a nossa salvação é por graça; pertence totalmente a Deus. Ao mesmo tempo, é regida pela consciência da necessidade de sermos obedientes à Lei de Deus: “Um cristão medirá todas as suas ações por meio da lei de Deus, seus pensamentos secretos estarão sujeitos à sua divina vontade”.[7]

          A salvação é totalmente pela graça, contudo, esta salvação, libertação do domínio do pecado, não nos conduz a uma ética anomista (sem lei),[8] antes a um compromisso de fé, de busca de coerência entre o crer, fazer e ensinar, na certeza de que somos agentes da providência de Deus, convictos de que temos a responsabilidade de viver a altura de nossa fé no Senhor Jesus Cristo, moldando a nossa ética pela Palavra de Deus. Em outras palavras: a santificação se reflete em nossa ética.

          Jamais devemos perder de vista a nossa herança preparada por Deus desde a eternidade para os seus filhos. Deus nos chamou à glória. Paulo ora neste sentido. Contudo, esta alegre expectativa não deve nos afastar de nossos compromissos no Reino, dentro da esfera que Deus nos coloca na história. Somos chamados a viver a nossa fé agora, sabendo que somos forasteiros aqui, contudo, também devemos ser conscientes de que Deus nos chama a atuar aqui e agora com os valores celestiais.

Maringá, 19 de abril de 2021.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 55.22), p. 488-489. “O Deus que governa o mundo por sua providência o julgará com justiça. A expectativa disto, devidamente apreciada, terá um feliz efeito na disposição de nossa mente, acalmando a impaciência e restringindo qualquer disposição ao ressentimento e retaliação em face de nossas injúrias” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.12), p. 584). “Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (…) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.11), p. 193-194).

[2]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 9.6), p. 184.

[3] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Fortuna e a Providência: Maquiavel e Calvino, dois olhares sobre a História e a Vida: In: IV Congresso Internacional de Ética e Cidadania – Filosofia e Cristianismo, 2008, São Paulo: Mackenzie, 2008, v. 4, p. 6-9.

[4] Vejam-se: João Calvino, As Institutas, II.1.9,12 II.3.5; O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431; (Sl 62.9), p. 579; Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.1), p. 51; (Ef 2.2), p. 52; (Ef 4.17), p. 134-135. “Por causa do coração, totalmente embebido com o veneno do pecado, o homem nada pode gerar além dos frutos do pecado” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 5, p. 16).

[5]Veja-se: Erich Fuchs, L’Éthique de Calvin: Calvinisme et Capitalisme: In: Martin E. Hirzel; Martin Sallmann, eds. Calvin et le Calvinisme, Genève: Labor et Fides, 2008, p. 223ss.

[6]João Calvino, As Institutas, I.17.4. Veja-se: também, As Institutas, I.17.9.

            “Aquele que limitou a nossa vida, confiou-nos também a solicitude por ela, o cuidado dela; deu-nos os meios para preservá-la; e nos habilitou a prever os perigos, para que não nos surpreendam, dando-nos ao contrário remédios para capacitar-nos a preveni-los.

            “Agora se vê qual é o nosso dever. Se o Senhor nos dá a nossa vida para que dela cuidemos, que a preservemos; se nos dá os meios para fazê-lo, que os utilizemos; se Ele nos mostra os perigos, que não nos atiremos loucamente e sem propósito; se Ele nos oferece remédios, que não os menosprezemos” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 77).

[7] João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 31

[8]“Não pense que o Evangelho que o liberta da maldição da lei é uma licença para você desprezar e ignorar a lei” (R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 14).

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