A lenda do Corpus Christi e o significado real da Ceia do Senhor (3)

5. Testemunho de nossa esperança

A Igreja desfruta da Ceia em todos os tempos, declarando a sua fé e esperança no regresso triunfante de Cristo, aguardando alegremente o momento em que poderá participar com Ele “o vinho novo do novo reino”.[1] A participação da Ceia é um ato de testemunho e renovação da nossa esperança na promessa de Cristo: “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha (1Co 11.26). “E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai” (Mt 26.29).

 

A impossibilidade de o Senhor beber novamente do fruto da videira em companhia de Seus discípulos é acompanhada da promessa: “até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai”. A igreja é intimada a viver alegremente nesta promessa anunciando a sua vinda e aguardando o novo banquete, quando beberemos o vinho novo com o nosso Anfitrião.

 

Portanto, na Ceia, declaramos ao mundo que a História tem sentido, porque ela caminha de forma realizante para a volta majestosa de Cristo. Neste ato, está embutida a certeza de que Cristo é o centro da História para onde tudo converge; que os fatos não ocorrem por acaso, mas que são dirigidos por Deus para o Seu propósito final.

 

Sem Cristo, a História permanece como um enigma para todos nós. Jesus Cristo é o centro não apenas do calendário. Ele é o centro significativo da História. Sem Cristo não há futuro para nenhum de nós: O nosso futuro ampara-se nos feitos vitoriosos de Cristo.

 

Na Ceia, nós, como “representantes do novo povo de Deus”,[2] declaramos a nossa esperança no regresso de Cristo, fundamentados na Sua Promessa.

 

Aguardamos, portanto, as Bodas do Cordeiro, a qual, a Ceia, antecipa e se alegra:

 

Depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão, dizendo: Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder são do nosso Deus, 2 porquanto verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua prostituição e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos. 3 Segunda vez disseram: Aleluia! E a sua fumaça sobe pelos séculos dos séculos. 4 Os vinte e quatro anciãos e os quatro seres viventes prostraram-se e adoraram a Deus, que se acha sentado no trono, dizendo: Amém! Aleluia! 5 Saiu uma voz do trono, exclamando: Dai louvores ao nosso Deus, todos os seus servos, os que o temeis, os pequenos e os grandes. 6 Então, ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de muitas águas e como de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso. 7 Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe a glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro, cuja esposa a si mesma já se ataviou, 8 pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo, resplandecente e puro. Porque o linho finíssimo são os atos de justiça dos santos. 9 Então, me falou o anjo: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E acrescentou: São estas as verdadeiras palavras de Deus. 10 Prostrei-me ante os seus pés para adorá-lo. Ele, porém, me disse: Vê, não faças isso; sou conservo teu e dos teus irmãos que mantêm o testemunho de Jesus; adora a Deus. Pois o testemunho de Jesus é o espírito da profecia. (Ap 19.1-10).

 

6. Confiança exclusiva em Cristo

 

Paulo adverte os coríntios: “Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice; pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si” (1Co 11.27-29).

 

Ninguém de fato poderia participar da Ceia de forma “digna” se dependesse exclusivamente dos seus merecimentos. A Ceia sempre realça a graça e a misericórdia de Deus. O nosso Anfitrião que nos convida, é Quem nos veste adequadamente e nos serve. Estes são os bem-aventurados que põem a sua confiança unicamente na misericórdia de Deus.

 

Por intermédio da Ceia, Deus nos desafia a confessar a nossa dependência total e exclusiva dele. A nossa dignidade provém não de nossa “santidade” pessoal, mas, sim, de sermos “santificados em Cristo”; em sermos lavados pelo sangue de Cristo, em sermos revestidos com os méritos de Cristo. Jesus Cristo é que é a nossa justiça; não a nossa fé ou obras.[3]

 

7. Manifestação de nossa união

 

Em uma antiga liturgia da Igreja Reformada Holandesa usada na Ceia do Senhor, apontando para a unidade que existe entre Cristo e a Sua Igreja e, entre os cristãos, os fiéis confessavam na Ceia:

 

Assim como, de muitos grãos, uma farinha é moída e um pão é assado e como, de muitas uvas, espremidas juntas, surge um só vinho, com todas as uvas misturadas juntamente, assim também todos aqueles que, pela fé, são incorporados em Cristo, devem ser, juntos, um só corpo.[4]

 

“A Ceia devia ser distribuída em reunião pública da Igreja, para nos ensinar sobre a comunhão em virtude da qual nos unimos todos em Jesus Cristo”, ensina João Calvino (1509-1564).[5]

 

Na Ceia o Senhor Se reúne pactualmente[6] com a Sua igreja e Sua igreja, como povo eleito e redimido, se reúne com o Seu Senhor (Ap 3.20). Nesta reunião revelamos a nossa irmandade sob o mesmo Senhor. A Santa Ceia destrói barreiras sociais, culturais, raciais, políticas e econômicas. Todos estão unidos na mesma fé, comendo do mesmo pão e bebendo do mesmo vinho, que simbolizam o sacrifício de Cristo por nós. Esta comunhão é propiciada por Cristo que nos amou e Se entregou por nós (Gl 2.20).

 

Paulo desenvolve esta ideia em outro lugar:

 

16 Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão (koinwni/a) do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão (koinwni/a) do corpo de Cristo? 17 Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão (1Co 10.16-17).

 

Diz ainda: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1Co 12.13).

 

Calvino, comentando sobre aquele que se ausenta da Ceia, perdendo o privilégio de participar da mesma, conclui: “porque ao fazê-lo se priva da comunhão da Igreja, na qual reside todo nosso bem”.[7]

 

8. Imperativo à santidade

 

Jesus instituiu a Ceia na mesma noite em que foi traído por um dos Seus discípulos (1Co 11.23). Judas Iscariotes, ao que parece, não participou da mesma, visto ter se ausentado antes (Ver: Jo 13.27,30). Participar da Ceia indignamente significa traí-Lo como Judas o fez, desconsiderando o seu sacrifício remidor. Por isso, a Palavra nos intima ao exame criterioso de nossa vida: “aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente (*a)naci/wj),[8] será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se (dokima/zw), pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice; pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si” (1Co 11.27-29).

 

Notemos que o que Paulo ordena é que nos examinemos a nós mesmos, não a nossos irmãos. Acho bastante improvável que o irmão faltoso de 1Co 5, enquanto estivesse “entregue à Satanás”, fizesse parte daqueles aos quais Paulo recomendaria, “examine-se, pois, o homem a si mesmo”. Certamente este já estaria excluído da Ceia. Paulo recrimina a igreja de Corinto justamente por não ter removido de seu meio quem tal ato praticou, tornando-se, por isso mesmo, cúmplice: “Geralmente, se ouve (a)kou/w) que há entre vós imoralidade (pornei/a) (impureza,[9] devassidão,[10] prostituição,[11] relações sexuais ilícitas[12]) e imoralidade (pornei/a) tal, como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai. 2E, contudo, andais vós ensoberbecidos (fusio/w)[13] e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou? 3Eu, na verd ade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente” (1Co 5.1-3).[14]

 

É certo que o Conselho da igreja não tem poderes nem condições de examinar minúcias do coração humano, contudo, ele pode e deve estar atento a evidências tangíveis e concretas de uma indignidade notória. Pode ser considerada uma atitude misericordiosa e responsável no sentido de preservar o irmão faltoso, que está sob disciplina, privá-lo de participar indignamente do Sacramento da Ceia.

 

Por outro lado, dizer que o exame é individual e não de um Concílio, parece-me ir além do texto. O contexto se refere aos membros da igreja, ainda que falhos, porém, em comunhão regular, mas, que estavam se portando indignamente na Ceia (1Co 11.20-22).

 

O Catecismo Maior de Westminster é bastante claro quanto a isso:

 173. Alguém que professa a fé, e deseja participar da Ceia do Senhor, pode ser excluído dela?

Os que forem achados ignorantes ou escandalosos, não obstante a sua profissão de fé e o desejo de participar da Ceia do Senhor, podem e devem ser excluídos desse sacramento, pelo poder que Cristo legou à sua Igreja, até que recebam instrução e manifestem mudança. 1Co 11.29; 1Co 5.11; Mt 7.6; 1Co 5.3.[15]

 

Portanto, a nossa participação na Ceia é um convite irrestrito a uma análise introspectiva, direcionada pela Palavra, dentro dos padrões das Escrituras. Isto pode ser extremamente difícil[16] e doloroso, porém, devemos buscar instrução na Palavra sob a orientação do Espírito ao fazê-lo.

 

O que não podemos fazer é participar da Ceia de forma desleixada. É preciso que tenhamos em vista o seu alto valor, entendendo-a e, de fato, considerando-a uma Ceia santa, distinta de todas as outras pelo seu rico significado para a Igreja.

 

Por sua vez, como nos lembra Morris:

 

Há um sentido em que todos têm que participar indignamente, pois ninguém jamais pode ser digno da bondade de Cristo para conosco. Mas noutro sentido podemos vir dignamente, isto é, com fé, e com a devida realização de tudo que é pertinente a tão solene rito. Negligenciar nisto é vir indignamente no sentido aqui censurado.[17]

 

Ou, como disse Calvino (1509-1564): “A fé, ainda que imperfeita, transforma o indigno em digno”.[18]

 

Ao participarmos da Ceia, devemos sair desejosos de nos aproximar mais de Cristo, crescendo na Sua graça e conhecimento (2Pe 3.18), buscando uma vida de santidade, tendo nele mesmo o padrão absoluto (Rm 8.29). Isto ocorre, não por um ato mecânico e externo, antes, pelo Espírito que opera em nós de forma poderosa e eficaz nos conduzindo neste propósito.[19]

 

Maringá, 19 de junho de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

 


 

[1] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 546.

[2]J. Jeremias, Isto é o Meu Corpo, p. 51.

[3] Vejam-se: J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 11.28), p. 364; João Calvino,  Pequeno tratado da Santa Ceia (1541): In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 157, 159.

[4]Apud Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 587.

[5]João Calvino, As Institutas, (2006), IV.18.7. “Além disso, nos exorta a abraçarmo-nos mutuamente em uma unidade tal como a que une e liga os membros de um mesmo corpo. Nenhum incentivo mais forte ou agudo poderia ser dado para mover e incitar entre nós uma caridade mútua do que o convite de Cristo, ao dar-se a nós, a não apenas seguir seu exemplo, dando-nos e entregando-nos mutuamente uns aos outros, mas porque ele se faz comum a todos, ele também nos faz um em si mesmo” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 29, p. 77).

[6]Veja-se: James Bannerman, A Igreja de Cristo: Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da igreja cristã, (v. 1 e 2), Recife, PE.: Editora Os Puritanos, 2014, p. 605.

[7] Juan Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena, p. 28.

[8] Este advérbio só ocorre aqui. Há uma variante textual em 1Co 11.29 que, evidentemente não fazia parte do texto original, sendo acrescentada apenas para ficar mais explícito o texto. Veja-se: Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2000 (1Co 1.29), p. 496.

[9]1Co 6.13,18; 7.2.

[10] Ap 17.2.

[11]2Co 12.21; Cl 3.5; 1Ts 4.3, etc.

[12] Mt 5.32; At 15.20, etc.

[13] Característica comum entre os coríntios:* 1Co 4.6,18,19; 5.2; 8.1; 13.4; Cl 2.18.

[14] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Espírito Santo, igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, mais especificamente, p. 431-432.

[15] Veja-se também: O Diretório de Culto de Westminster, São Paulo: Os Puritanos, 2000, especialmente, p. 47-48. Temos um bom comentário do texto do Catecismo em: Johannes G. Vos, Catecismo Maior de Westminster comentado, São Paulo: Os Puritanos; CLIRE, 2007, p. 560-565).  Hodge parece-me ambíguo na questão da interpretação da disciplina eclesiástica. (Veja-se: Charles Hodge, Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, especialmente, p. 1481-1482).

[16] “O olho pode ver tudo, menos a si mesmo” (Thomas Watson, A Ceia do Senhor,  Recife, Pe.: Os Puritanos, 2015, p. 48).

[17] Leon Morris, 1 Coríntios: Introdução e Comentário, São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1981, (1Co 15.27), p. 131. Do mesmo modo: R.C. Sproul, O que é a Ceia do Senhor?  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014, p. 66.

[18]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 11.28), p. 364.

[19] Veja-se: João Calvino, Pequeno tratado da Santa Ceia (1541): In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 154-155, 158.

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