A Reforma e a Propagação das Escrituras – Por ocasião do Dia da Bíblia

 

A Reforma não trouxe perfeição social ou política, mas ela gradualmente gerou um aperfeiçoamento vasto e único. O que o retorno da Reforma aos ensinamentos bíblicos trouxe para a sociedade foi uma oportunidade para o exercício de uma liberdade tremenda, sem recair no caos. – Francis A. Schaeffer.[1]

 

A Reforma Protestante do século XVI teve como objetivo principal uma volta às Sagradas Escrituras, a fim de reformar a Igreja que havia caído ao longo dos séculos, numa decadência teológica, moral e espiritual.

 

A preocupação dos reformadores era principalmente “a reforma da vida, da adoração e da doutrina à luz da Palavra de Deus”.[2] Desta forma, a partir da Palavra, passaram a pensar acerca de Deus, do homem e do mundo! “A reforma foi acima de tudo uma proclamação positiva do evangelho Cristão”.[3]

 

O princípio protestante do “livre exame” caminhava na mesma direção do espírito humanista de rejeição a qualquer autoridade externa:[4] as coisas são o que são porque são, não porque outros dizem que elas sejam. Isto é válido para as verdades científicas, como para as verdades teológicas: Não é a Igreja que autentica a Palavra por sua interpretação “oficial”, mas, sim, é a Bíblia que se autentica a Si mesma como Palavra autoritativa de Deus[5] e, é Ele mesmo Quem nos ilumina para que possamos interpretá-la corretamente. Na Reforma, “a Palavra de Deus era a única autoridade, e a salvação tinha como base única a obra definitiva do Senhor Jesus Cristo, consumada na cruz”.[6]

 

A questão da interpretação bíblica sempre foi o ponto nevrálgico em toda a história da teologia.[7] Na Reforma deu-se uma mudança de quadro de referência. Por isso, podemos falar deste movimento como tendo um de seus pilares fundamentais a questão hermenêutica.[8] O “eixo hermenêutico” desloca-se da tradição da igreja para a compreensão pessoal da Palavra, contudo, sem desprezar aquela. Há aqui uma mudança de critério de verdade que determina toda a diferença. No entanto, conforme acentua Popkin (1923-2005), Lutero inicialmente confrontou a igreja dentro da perspectiva da própria tradição da igreja, somente mais tarde é que ele “deu um passo crítico que foi negar a regra de fé da Igreja, apresentando um critério de conhecimento religioso totalmente diferente. Foi neste período que ele deixou de ser apenas mais um reformador atacando os abusos e a corrupção de uma burocracia decadente, para tornar-se o líder de uma revolta intelectual que viria a abalar os próprios fundamentos da civilização ocidental”.[9]

 

Partindo desses princípios, a Reforma onde quer que chegasse, se preocupava em colocar a Bíblia na língua do povo – e neste particular a tipografia foi fundamental para a Reforma[10] –, a fim de que todos tivessem acesso à Sua leitura – sendo o “reavivamento” da pregação da Palavra um dos marcos fundamentais da Reforma. “A divulgação da Bíblia na língua vernácula dos povos foi o centro do movimento em todos os países da Europa”.[11] Os Reformadores criam que se as Escrituras estivessem numa língua acessível aos povos, todos os que quisessem poderiam ouvir a voz de Deus e, todos os crentes teriam acesso à presença de Deus. Portanto, “para eles, as Escrituras eram mais uma revelação pessoal que dogmática”.[12] Calvino, por exemplo, entendia que as Escrituras eram tão superiores aos outros escritos que, “Logo, se lhes volvemos olhos puros e sentidos íntegros, de pronto se nos antolhará a majestade de Deus, que, subjugada nossa ousadia de contraditá-la, nos compele a obedecer-lhe”.[13] Contudo, os reformadores esbarraram num problema estrutural: o analfabetismo generalizado entre as massas. A leitura era um privilégio de poucos; de livros, então, restringia-se a médicos, nobres, ricos comerciantes e integrantes do clero.[14]

 

É digno de nota, que antes mesmo do humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536) editar o Novo Testamento Grego (1516)[15] e de Lutero afixar as suas 95 teses às portas da catedral de Wittenberg (31/10/1517), já se tornara visível o esforço por colocar a Bíblia no idioma nativo de cada povo.[16] John Wycliffe (c. 1320-1384), Nicholas de Hereford († c. 1420)[17] e John Purvey (c. 1353-1428) traduziram a Bíblia para o inglês em 1382-1384.[18] Coube a Nicholas a tradução da maior parte do Antigo Testamento.[19] Esta tradução que incluía os apócrifos, foi feita diretamente da Vulgata, sem consultar os Originais Hebraicos e Gregos.

 

Outro ponto que deve ser realçado a esse respeito, é que quanto mais os tempos se avizinhavam do século XVI, verifica-se um desejo mais intenso de ler as Escrituras. Como reflexo disto, “de 1457 a 1517 são publicadas mais de quatrocentas edições da Bíblia”.[20]

 

Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, concluindo o seu trabalho em outubro de 1534. A sua tradução é uma obra primorosa, sendo considerada o marco inicial da literatura alemã.[21]

 

Febvre (1878-1956) diz de forma poética, que o trabalho de Lutero consistiu

 

Numa assombrosa ressurreição da Palavra. Estando o mais distante possível de uma fria exposição, de um labor didático de um filólogo. Também, é mais do que um ‘trabalho de artista’ em busca de um estilo pessoal. É o esforço, sem dúvida dramático, feliz, de um pregador que quer convencer; ou melhor, de um médico que quer curar, trazer aos seus irmãos, os homens, todos os homens, o remédio milagroso que acaba de curá-lo.[22]

 

Agradeçamos a Deus por sua Palavra. Deus mesmo a inspirou, preservou, disponibilizou em nossa língua e, nos assiste com o seu Espírito na leitura e compreensão redentiva de sua mensagem salvadora.

 

 

São Paulo, 5 de dezembro de 2018.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1]Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 63.

[2] Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 36. “A Reforma nada inventou propriamente falando, porquanto só fez rebuscar e reencontrar as raízes próprias da fé cristã, que mergulham tanto no patrimônio judeu integral do Antigo Testamento quanto na herança dos apóstolos e dos discípulos de Jesus Cristo, que nos é transmitida pelo Novo Testamento. A força dos reformadores consiste em nos ter ensinado um método de reinterpretação sempre nova (com referência a situações históricas cambiantes e a culturas diferentes) da eterna e imutável Palavra que Deus dirige a suas criaturas por meio das Escrituras, dinamizadas pelo Espírito Santo” (André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 56-57).

[3] John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 36.

[4] Lacouture, diz que no século XVI, “o livre exame avança nas consciências, em todas as consciências” (Jean Lacouture, Os Jesuítas, Porto Alegre, RS.: L&PM, 1994, v. 1, p. 389). As consequências deste espírito são incalculáveis na formação e transformação de uma cultura. “Ao proclamar, no domínio religioso, o princípio do exame livre (sic), a Reforma atiçou as aspirações à liberdade política. Não é possível limitar esse princípio. Se é proclamado num setor, acaba sempre por transbordar para outro. De fato, muitos protestantes compreenderam muito cedo as conclusões políticas do princípio da liberdade do exame” (Padre R.L. Bruckberger, A República Americana, Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960, p. 30). “Por toda parte nos países protestantes, o exercício do sacerdócio universal dos crentes na Igreja preparara-os para a prática da democracia na vida política, na atividade parlamentar” (André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, p. 95).

[5] Ver: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.12), p. 110.

[6]F.A. Schaeffer, La Fe de los Humanistas, 2. ed. Madrid: Felire, 1982, p. 10.

[7] “Em certo sentido, a história da teologia cristã pode ser entendida como a história da interpretação bíblica” (Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 15).

[8] “A Reforma Protestante foi em sua raiz um evento do domínio da hermenêutica” (Edward A. Dowey Jr., Documentos Confessionais como Hermenêutica: in: Donald K. Mckim, ed. Grandes Temas da Teologia Reformada, São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 13). “A Reforma Protestante foi, em muitos sentidos, um movimento hermenêutico” (Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 159).

[9]Richard H. Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 26.

[10] Escolar escreve: “O livro teve uma influência considerável na difusão da Reforma e na fixação das idéias dos distintos grupos que se separaram da Igreja Romana” (Hipólito Escolar, Historia del Libro, 2. ed. corregida y ampliada, Salamanca/Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez/Pirámide, 1988, p. 387). Esta compreensão não quer indicar, por exemplo, que sem a imprensa não haveria a Reforma; a Reforma protestante não pode ser simplesmente rotulada como “filha da imprensa”… (Vejam-se as pertinentes observações de Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, São Paulo: Hucitec., 1992, p. 409 e 447).

[11] Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês (1630-1654), Recife, PE: Fundarte, (Coleção Pernambucana, 2ª Fase, v. 25), 1986, p. 22,23. Ver também, p. 227,228.

[12] T.M. Lindsay, La Reforma en su Contexto Histórico, Barcelona: CLIE., (1985), p. 475.

[13] João Calvino, As Institutas, I.7.4.

[14] Veja-se: Steven R. Fischer, História da Leitura, São Paulo: Editora UNESP., 2006, p. 205-206.

[15]Novum Instrumentum omne, Basiléia: Froben, 1516. A palavra Instrumentum mais do que um simples sinônimo de Testamentum, significa aqui “Pacto”. (Cf. T.H.L. Parker, Calvin´s New Testament Commentaries, 2. ed. Louisville, Kentucky: Wetminster; John Knox Press, 1993, p. 123). Erasmo de Roterdã (1466-1536) demonstrou a sua preocupação em tornar a Palavra de Deus acessível ao povo.

[16] Léonard (1891-1961) observa que se constitui em “pura lenda o fato de que a Igreja (romana) tenha constantemente mantido seus fiéis afastados das Sagradas Escrituras” (Émile G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro, 2. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: JUERP; ASTE., 1981, p. 28). Do mesmo modo entende Boisset (Veja-se Jean Boisset, História do Protestantismo, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971, (Coleção “Saber Atual”), p. 19).

[17] Ele propôs que o dinheiro da igreja fosse empregado para criar 15 Universidades e umas cem instituições de caridade. (Cf. Christopher Hill, A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 30).

[18] J.R. Branton, Versions, English: In: Geoffrey W. Bromiley, General Editor, The International Standard Bible Enciclopaedia, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1980, v. 4, p. 761. A tradução do Novo Testamento ficou pronta em 1382 e a do Antigo Testamento em 1384. Posteriormente, John Purvey, provavelmente auxiliado por Nicholas de Hereford, fez uma revisão desta tradução em 1388, melhorando-a consideravelmente, procurando colocar a tradução num inglês mais acessível. Todavia, tanto a versão de Wycliff como a revisada de Purvey só circularam em forma manuscrita, já que a imprensa com tipos móveis ainda não fora utilizada no Ocidente. A versão de Purvey só foi impressa em 1731 e a de Wycliff, em 1848. (Veja-se, entre outros: E.J. Goodspeed, Como nos veio a Bíblia, 3. ed. São Bernardo do Campo, SP. Imprensa Metodista, 1981, p. 114-115).

[19] Cf. P.M. Bechtel; P.M. Comfort, Wycliffe: In: J.D. Douglas: Philip W. Comfort, eds. Who’s Who In Christian History, Wheaton, Illinois: Tyndale House Publishers, Inc. 1992, p. 735; E.J. Goodspeed, Como nos veio a Bíblia, p. 114; J.R. Branton, Versions, English: In: George A. Buttrick, Editor. The Interpreter’s Dictionary of the Bible, New York: Abingdon Press, 1962, v. 4, p. 761.

[20] André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 44. Como decorrência disso, há o progressivo interesse comercial, que estimulava alguns impressores a produzirem mais impressões, ainda que com menor qualidade… No entanto, devemos reconhecer que tudo isso preparou o campo para o êxito da Reforma (Veja-se: Hipólito Escolar, Historia del Libro, p. 310ss).

[21]E.J. Goodspeed, Como nos veio a Bíblia, p. 118; Joseph Angus, História, Doutrina e Interpretação da Bíblia, 3. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1971, p. 124; W. Walker, História da Igreja Cristã, II, p. 20; Otto M. Carpeaux; Sebastião U. Leite, Bíblia: In: Antonio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional,  São Paulo: Enciclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1976, v. 4, p. 1352; E.E. Cairns, O Cristianismo Através dos séculos: Uma História da Igreja Cristã, p. 238; K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, 4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. 2, p. 64; Hipólito Escolar, Historia del Libro, p. 390; Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, p. 451,452. Para uma visão panorâmica da história e algumas das principais traduções da Bíblia para o inglês e francês, Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 70-84.

[22] Lucien Febvre, Martín Lutero: um destino, 7. reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 187.

One thought on “A Reforma e a Propagação das Escrituras – Por ocasião do Dia da Bíblia

  • 10 de dezembro de 2018 em 13:39
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