Uma oração intercessória pela Igreja (97)

         7.4.1.4. Riqueza da glória da sua herança nos santos (18) (Continuação)

               A compreensão de Calvino a respeito da direção de Deus sobre todas as coisas, ao contrário do que poderia parecer, não o leva à ociosidade ou a um tipo de perspectiva fatalista afirmando que nada podemos fazer a não ser nos contentar com o que está previamente fixado por uma causa sobrenatural. Pelo contrário, sua compreensão de providência de Deus inspira-o ao trabalho, consciente de que somos instrumentos de Deus para a execução do seu sábio e eterno propósito.

           Esta doutrina tem, portanto, uma “urgência pragmática” para todo o povo de Deus. O tempo é um recurso precioso que Deus nos concede para o progresso em todas as esferas de nossa vida.[1]

            A ética de Calvino leva em questão duas necessidades básicas:

1) A consideração sobre o drama da existência humana, sujeita ao pecado e à morte. O pecado afetou a integralidade do homem;[2]        

2) Explorar as implicações de nossa fé: responsabilidade humana.[3]

            O pecado tende a anestesiar a nossa consciência nos acomodando à paisagem de miséria cotidiana nas diversas molduras de nossa existência. A Palavra, no entanto, desperta as nossas consciências.

            Portanto, a certeza do cuidado de Deus não nos deve conduzir à letargia, antes a nos tornar agentes deste cuidado. Devemos ter em vista que o cuidado de Deus envolve pessoas das quais Ele cuida e, ao mesmo tempo, pessoas por meio das quais Ele assiste. Deste modo, somos agentes ordinários de Deus − ainda que não tenhamos o discernimento constante deste fato em nossas ações − no seu socorro. Muitas vezes em nossas ações ordinárias estamos sendo agentes de Deus em resposta a orações dos fiéis.

           Existe ética porque há um Deus providente. A ética cristã é uma resposta à certeza do cuidado de Deus. Somos responsáveis diante de Deus por levar adiante o que nos compete, dentro de nossa esfera. Instrui-nos Calvino: “Se o Senhor nos confiou a proteger a nossa vida, que a cerquemos de cuidados; se oferece recursos, que os usemos; se nos previne de perigos, a eles não nos arrojemos temerariamente; se fornece remédios, não os negligenciemos”.[4]

            A ética cristã é fortemente marcada pela certeza de que a nossa salvação é por graça; pertence totalmente a Deus. Ao mesmo tempo, é regida pela consciência da necessidade de sermos obedientes à Lei de Deus: “Um cristão medirá todas as suas ações por meio da lei de Deus, seus pensamentos secretos estarão sujeitos à sua divina vontade”.[5]

            A salvação é totalmente pela graça, contudo, esta salvação, libertação do domínio do pecado, não nos conduz a uma ética anomista (sem lei), antes a um compromisso de fé, de busca de coerência entre o crer, fazer e ensinar, na certeza de que somos agentes da providência de Deus, convictos de que temos a responsabilidade de viver a altura de nossa fé no Senhor Jesus Cristo, moldando a nossa ética pela Palavra de Deus. Em outras palavras: a santificação se reflete em nossa ética. Toda genuína compreensão da Palavra tem implicações éticas: Doutrina é vida!.

            Jamais devemos perder de vista a herança preparada por Deus desde a eternidade para os seus filhos. Deus nos chamou à glória. Paulo ora neste sentido. Contudo, esta alegre expectativa não deve nos afastar de nossos compromissos no Reino, dentro da esfera que Deus nos coloca na história.[6] Somos chamados a viver a nossa fé agora, sabendo que somos forasteiros aqui, contudo, também devemos ser conscientes de que Deus nos chama a atuar aqui e agora com os valores celestiais, até que Ele mesmo dê como concluída a sua obra em nós e nos conduza à glória.

Maringá, 10 de julho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Fortuna e a Providência: Maquiavel e Calvino, dois olhares sobre a História e a Vida: In: IV Congresso Internacional de Ética e Cidadania – Filosofia e Cristianismo, 2008, São Paulo: Mackenzie, 2008, v. 4, p. 6-9.

[2] Vejam-se: João Calvino, As Institutas, II.1.9,12 II.3.5; O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431; (Sl 62.9), p. 579; Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.1), p. 51; (Ef 2.2), p. 52; (Ef 4.17), p. 134-135. “Por causa do coração, totalmente embebido com o veneno do pecado, o homem nada pode gerar além dos frutos do pecado” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 5, p. 16).

[3]Veja-se: Erich Fuchs, L’Éthique de Calvin: Calvinisme et Capitalisme: In: Martin E. Hirzel; Martin Sallmann, eds. Calvin et le Calvinisme, Genève: Labor et Fides, 2008, p. 223ss.

[4]João Calvino, As Institutas, I.17.4. Veja-se: também, As Institutas, I.17.9.

            “Aquele que limitou a nossa vida, confiou-nos também a solicitude por ela, o cuidado dela; deu-nos os meios para preservá-la; e nos habilitou a prever os perigos, para que não nos surpreendam, dando-nos ao contrário remédios para capacitar-nos a preveni-los.

            “Agora se vê qual é o nosso dever. Se o Senhor nos dá a nossa vida para que dela cuidemos, que a preservemos; se nos dá os meios para fazê-lo, que os utilizemos; se Ele nos mostra os perigos, que não nos atiremos loucamente e sem propósito; se Ele nos oferece remédios, que não os menosprezemos” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 77).

[5] João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,São Paulo: Novo Século, 2000, p. 31

[6] “Na Teologia Reformada, a ética não tem autonomia. Recebe toda sua substância e sua vida da teologia, da qual depende totalmente a este respeito. A ética não existe sem a teologia” (André Biéler, Calvino, o profeta de La era industrial: fundamentos y método de La ética calviniana de la sociedad, México, D.F.: Casa Unida de Publicaciones, 2015, p. 27).

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