Uma oração intercessória pela Igreja (98)

        7.4.2. As insondáveis riquezas de Cristo[1] 

           A primeira e maior verdade acerca da salvação é que ela nos revela a glória de Deus, a majestade, o esplendor de Deus. – D.M. Lloyd-Jones.[2]

            O Apóstolo nos fala sobre a “riqueza da glória” (18). Entendemos que ele se refere à glória de Deus que se manifesta na vida dos santos.

            O Evangelho anunciado é caracterizado pelo apóstolo de: O Evangelho da glória de Cristo” (2Co 4.4) e, “O Evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11).

            Conforme já vimos, Deus, o nosso Pai, é o Deus glorioso, o Pai da glória (Mt 6.9,13), Aquele que habita o céu. Não é demais recordar um privilégio do qual já usufruímos: Nós nos relacionamos com o “Pai da glória” (Ef 1.17).

            O Deus a quem oramos é o Deus glorioso, Aquele que manifestou a Sua glória em nossa salvação.       Portanto, nós podemos chamá-lo de Pai, porque Ele, na manifestação da Sua glória, nos salvou, tornando-nos Seus filhos (Jo 1.12-13; Gl 3.26). A nossa salvação se constitui na maravilhosa demonstração da glória de Deus.

            A glória da graça de Deus se revela de forma inimaginável para todos que conheciam anteriormente a vida daqueles que hoje constituem a Igreja. A transformação foi e continua sendo radical demais para que possamos equiparar a quaisquer outras. As categorias de que dispomos, por mais sofisticadas que sejam, não dão conta de explicar o que aconteceu conosco. Somente um Deus glorioso em Si mesmo poderia se revelar glorioso em Sua graça operando do modo que fez, nos tornando instrumentos de louvor de Sua glória.

            Isto tudo foi possível no “Amado”, em Cristo Jesus, o Senhor da glória (Ef 1.6,12).[3] Somente Deus com tal amor pelo Seu povo poderia revelar-se gloriosamente desta forma (Jo 3.16).

            A glória do Evangelho começa em Deus Pai. O Evangelho é glorioso porque pertence e origina-se em Deus. “…. O evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11).

            O Evangelho também é “da Glória de Cristo”, porque Jesus Cristo é Deus: “é a imagem de Deus” (2Co 4.4). “O Evangelho não começa nem mesmo pelo Senhor Jesus Cristo, começa por Deus o Pai. Sempre e em toda parte da Bíblia começa por Deus o Pai, e nós devemos fazer o mesmo, porque essa é a ordem presente na Trindade santa e bendita: Deus o Pai, Deus o Filho, Deus o Espírito Santo”, conclui Lloyd-Jones.[4]

          7.4.3.1. A Gloriosa Singularidade da Pessoa e Obra de Cristo

            Uma das expressões mais completas das “insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8) é-nos manifestada no fato da encarnação do Verbo eterno de Deus. Por isso é que o Evangelho é a Boa Nova da glória de Cristo e da glória de Deus: Jesus Cristo é Deus. Jesus Cristo é o cerne, a parte mais importante e definitiva da boa nova.

            Em Cristo resplandece a Majestade Divina: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). Somente Deus é glorioso.[5]

            O Evangelho nos enriquece. Jesus Cristo, o Senhor da glória, rico em Sua glória eterna (1Co 2.8; Tg 2.1/Jo 17.1-5)[6] fez-se pobre por amor do Seu povo a fim de que fôssemos enriquecidos na plenitude de Sua graça:[7] “Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico (plou/sioj), se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos (ploute\w) (2Co 8.9).

            Na realidade, a sua humilhação (encarnação e morte) e exaltação (ressurreição, glorificação e ascensão) não afetaram a essência da Sua natureza Divina. Conforme já vimos, Owen escreveu com discernimento bíblico e teológico:

Quando Ele tomou sobre Si a forma de um servo em nossa natureza, Ele se tornou aquilo que nunca havia sido antes, mas não deixou de ser aquilo que sempre tinha sido em Sua natureza divina. Ele, que é Deus, não pode deixar de ser Deus. A glória da Sua natureza divina estava velada, de forma que aqueles que O viram não acreditaram que Ele era Deus. Suas mentes não podiam entender algo que eles nunca haviam conhecido antes, que uma e a mesma pessoa pudesse ser Deus e homem ao mesmo tempo. Todavia, aqueles que creem sabem que Ele, que é Deus, humilhou-se ao assumir a nossa natureza, a fim de salvar a Igreja para a eterna glória de Deus.[8]

            Na carta aos Efésios, à frente, Paulo se considera um agraciado em poder anunciar o Evangelho aos gentios, levando a Boa Nova de salvação a qual tem em seu conteúdo essencial a incompreensível, inexaurível e inenarrável riqueza de Cristo.[9] Diz então, de forma reverente e entusiasta: “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis (a)necixni/astoj)[10] riquezas (plou=toj) de Cristo” (Ef 3.8).

            Não podemos pensar nesta insondável riqueza sem termos nossos olhos voltados para a encarnação do Verbo; a perfeição única e inexplicável de Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus que se encarnou para morrer pelo Seu povo, nos restaurando à comunhão com Deus.

            Paulo fala de Cristo como o rico e glorioso mistério que agora foi revelado aos gentios pelo Evangelho: “O mistério que estivera oculto dos séculos e das gerações; agora, todavia, se manifestou aos seus santos; aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza (plou=toj) da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.26-27).

            Em outro lugar diz de forma sublime: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade (eu)se/beia):[11] Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16).

            A nossa relação correta com Deus e com o nosso próximo (este é o sentido bíblico da palavra piedade) começa pela compreensão correta da grandeza do mistério da encarnação.

            Calvino (1509-1564) comentando esta passagem escreveu:

A descrição mais adequada da pessoa de Cristo está contida nas palavras ‘Deus se manifestou em carne’. Em primeiro lugar, temos aqui uma afirmação distinta de ambas as naturezas, pois o apóstolo declara que Cristo é ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Em segundo lugar, ele põe em evidência a distinção entre as duas naturezas, pois primeiramente o denomina de Deus, e em seguida declara sua manifestação em carne. E, em terceiro lugar, ele assevera a unidade de sua Pessoa, ao declarar que ela era uma e mesma Pessoa que era Deus e que se manifestou em carne. Nesta única frase, a fé genuína e ortodoxa é poderosamente armada contra Ário, Marcião, Nestório e Êutico. Há forte ênfase no contraste das duas palavras: Deus e carne. A diferença entre Deus e o homem é imensa, e todavia em Cristo vemos a glória infinita de Deus unida à nossa carne poluída, de tal sorte que ambas se tornaram uma só.[12]

            O propósito não revelado de Deus e, da mesma forma, a Sua vontade revelada no Evangelho, são por demais majestosos para poder ser plenamente compreendido e “rastreado” por nós em toda a sua complexidade. O contraste deste conhecimento em relação ao nosso é intensamente perceptível.

            Paulo extasiado com isso, em forma de doxologia, resume: “Ó profundidade da riqueza (plou=toj), tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis (a)necixni/astoj), os seus caminhos!” (Rm 11.33).

            O Evangelho revela esta sabedoria que, por não ser compreendida pelo homem natural em sua maneira limitada, finita e deturpada de pensar, soa como loucura (1Co 1.18-25). Mas para nós, que pela graça conhecemos, ainda que parcialmente, o Evangelho é o anúncio da sabedoria de Deus em sua riqueza insondável.

           7.4.3.2. A Riqueza da Misericórdia de Deus em Cristo

             Por meio do Evangelho Deus revela aspectos gloriosos da riqueza de Sua misericórdia em determinar salvar os pecadores justamente condenados, atraindo-os para Si.

            Paulo diz que Deus é rico em sua bondade, tolerância e longanimidade visando conduzir os homens ao arrependimento: “Ou desprezas a riqueza (plou=toj) da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?” (Rm 2.4).

            Na salvação do Seu povo Deus demonstra a riqueza de Sua glória em manifestação de misericórdia. A sua misericórdia revela também o seu amor eterno que envolve o decreto salvador materializando-se na encarnação de Cristo: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas (plou=toj) da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (Rm 9.22-23).

            Em Cristo temos de forma plena a riqueza da graça de Deus manifestada sobre o povo de Deus:

5 nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, 6 para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 7 no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza (plou=toj) da sua graça, 8 que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria e prudência. (Ef 1.5-8).

            A misericórdia de Deus consiste em que seu Filho nos imputou a sua glória, levando sobre si a nossa desonrosa vergonha. Ele efetuou uma troca magnífica para nós, jamais imaginada por homem algum: Ele assumiu a nossa humanidade pecaminosa, pagou as nossas dívidas, garantiu definitivamente o nosso perdão e nos comunicou a glória de sua herança.

            Nas palavras de Bonhoeffer (1906-1945), “O misericordioso [Jesus Cristo] empresta a honra própria ao decaído e toma sobre si a sua vergonha”.[13]

Maringá, 10 de julho de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]Vejam-se: D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, especialmente, p. 53-55; John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, especialmente, p. 17ss; J.I. Packer, O Plano de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), especialmente, p. 19ss.

[2] D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 125.

[3]Veja-se: David M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, p. 123-131.

[4]D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, p. 45.

[5] Conforme já citamos: “Não há glória real senão em Deus” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.17), p. 46). “Os filósofos pagãos não condenam toda ambição por glória. Entre os cristãos, porém, quem quer que seja ávido por glória é com justa razão acusado de ser possuidor de fútil e louca ambição, porquanto se divorcia da genuína glória. Para nós só a glória de Deus é legítima. Fora de Deus só há mera vaidade” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 5.26), p. 173). “Todas as glórias dos homens e dos anjos, colocadas em seu devido lugar, abrem caminho à glória de Cristo, para que somente ela venha a brilhar acima de todos eles incomparavelmente e sem impedimento algum” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.21), p. 47).

[6]“Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8). “Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas” (Tg 2.1). “Tendo Jesus falado estas coisas, levantou os olhos ao céu e disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti, assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer; e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.1-5).

[7]“A encarnação – e o entendimento de seu propósito, a crucificação – é o clímax da graça condescendente de Deus” (William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 1.14), p. 117).

[8]John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 30.

[9] Stott faz boas analogias com a palavra grega (Veja-se: John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1986,p. 84).

[10]*Rm 11.33; Ef 3.8. A palavra aparece em três textos da LXX (Jó 5.9; 9.10; 24.34): “Ele faz coisas grandes e inescrutáveis (a)necixni/astoj) e maravilhas que não se podem contar” (Jó 5.9). “Quem faz grandes coisas, que se não podem esquadrinhar (a)necixni/astoj), e maravilhas tais, que se não podem contar (Jó 9.10).

[11]*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11.

[12]João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.16), p. 100.

[13] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 61. “Misericórdia é o princípio eterno da natureza de Deus que o leva a buscar o bem temporal e a salvação eterna dos que se opuseram à vontade dele, mesmo a custo do sacrifício próprio” (Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 431).

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