Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (52)
Quando tratamos deste tema, devemos ter em mente que a questão primeira não é a quantidade ou intensidade de nossos pecados, mas, o fato de que pecamos – e, diferentemente da compreensão de determinados pensadores humanistas, inclusive cristãos[1] –; a gravidade do pecado está no ponto de que todo pecado é primeiramente contra Deus, o eternamente santo,[2] que não tolera o mal (Hc 2.13). O que intensifica ainda mais a complexidade de nossa rebelião é o mal uso que fazemos de seus esplêndidos dons que nos foram conferidos[3] e, o fato de rejeitarmos o seu infinito amor plenificado em Jesus Cristo.[4]
Schaeffer (1912-1984) coloca a questão nestes termos:
Nós pecamos deliberadamente contra o santo de Deus; é por isso que a nossa situação é desesperadora. (…)
O problema não está na quantidade de pecados que praticamos, mas em quem ofendemos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe. E, a partir do momento em que pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe, nosso pecado é infinito.[5]
O problema é que o pecado não nos deixa perceber as suas consequências: estamos totalmente alienados de Deus. O pecado faz conosco o que determinados remédios fazem como efeito colateral: mascaram os sintomas, tornando a possível enfermidade imperceptível.
Rebelião contra Deus
Portanto, o grande problema do homem é a sua permanente rebelião contra Deus.[6] Pecado consiste basicamente numa atitude errada para com Deus. “Pecado não é tanto uma expressão do que fazemos quanto uma expressão do nosso relacionamento com Deus”, interpreta Lloyd-Jones.[7]
A Palavra de Deus ao povo de Israel permanece como verdade para todos aqueles que ainda se encontram distantes dele: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Is 1.2).
Todos, sem exceção, estão nesta situação, até que conheçam, pela fé, salvadoramente a Cristo.
O homem desde a queda encontra-se sob o domínio do pecado e, por isso mesmo é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evangelho.
O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana; por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13)[8] e, nada pode fazer – e na realidade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6). Agora “O homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”, interpreta Calvino.[9]
Perdemos a nossa percepção espiritual
A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espiritual. As cousas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16).
O homem pelo seu próprio conhecimento não pode conhecer a Deus.
É por isso que a loucura de Deus, que tanto humilha o homem em sua tentativa de autossuficiência, é o caminho estabelecido por Deus para conhecê-Lo salvadoramente (1Co 1.21).
A nossa lógica, resultante de Graça Comum de Deus, tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e do que somos.
Calvino resume:
O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade.[10]
Ainda que o homem não seja absolutamente mau – não é tão mau quanto poderia -, é extensivamente mau; todo o seu ser está contaminado pelo pecado.[11] O pecado nos domina completamente.
Na linguagem do profeta Isaías, “Toda a cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6).
O Reformador João Calvino é enfático em lugares diferentes:
Não teremos uma ideia adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente corrompidos.[12]
Nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira divina.
Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão.[13]
Maringá, 11 de outubro de 2019.
Rev.
Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Dentro desta perspectiva limitante do sentido do pecado, incluímos, entre outros, Cecil Osborne (1904-1999), que seguindo o pensamento de Erich Fromm (1900-1980), (“Pecado não se dirige primariamente contra Deus, mas contra nós mesmos” (Erich Fromm, Psicanálise e religião, 2. ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 105). Do mesmo modo, ver a obra de Fromm, Análise do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), 218p), escreveu: “Pecado é essencialmente um erro contra si mesmo ou contra outro ser humano” (Cecil Osborne, A Arte de Compreender-se a Si Mesmo, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 139). Do mesmo modo, esse conceito tem sido amplamente difundido por um discípulo de Norman Vincent Peale, Dr. Robert Schuller, que enfatiza: “o pecado é uma ofensa psicológica a si mesmo” (Vejam-se as pertinentes críticas a esta posição em: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 78ss).
[2] “O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta surgida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como oposição àquela santidade” (John Murray, Redenção: consumada e aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 29). “Jamais compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não aprendermos a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 64).
[3]Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 101-102.
[4] “O incrédulo despreza o amor de Deus. Se este amor fosse pequeno, seria um pecado pequeno ignorá-lo. Se é grande, é grande pecado rejeitá-lo. Mas o fato é que este amor é infinito. Isso faz da rejeição deste amor um pecado de proporções infinitas” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 19). “Como o amor de Deus é infinito, desprezar esse amor é pecado de proporções infinitas No entanto, é o que fazem aqueles que, por sua descrença, rejeitam o Filho de Deus, dom do Seu amor. (…) Rejeitar este amor é incorrer no banimento eterno da presença de Deus. Responder com fé e amor é herdar a vida eterna. Nada pode ser mais urgente do que a escolha de uma destas atitudes” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 72).
[5]Francis Schaeffer, A obra consumada de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 75.
[6]“O pecado é antes um poder militante diametralmente oposto à vontade divina e seus propósitos” (Gustaf Aulén, A fé cristã, São Paulo: ASTE., 1965, p. 143).
[7]D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 25-26.
[8]“Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “…. o SENHOR (…) disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade….” (Gn 8.21). “…. as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (…) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “…. todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; (…) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (…). E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).
[9]João Calvino, Instrução na fé, Goiânia: Logos Editora, 2003,Cap. 5, p. 16.
[10]João Calvino, Instrução na fé, Cap. 4, p. 15. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 338.
[11]“Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza” (J. Calvino, As Institutas, II.1.10). Vejam-se: Confissão de Westminster,VI.2; IX.3; Catecismo Menor de Westminster,Questão 18; Catecismo de Heidelberg,Questões 5 e 7; Cânones de Dort,III e IV; L. Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 248; W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 6-7; Duane E. Spencer, TULIP: Os Cinco Pontos do Calvinismo à Luz das Escrituras,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 39; L. Boettner, La Predestinación, Grand Rapids, Michigan: SLC. (s.d.), p. 55-73; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p.101-119; Edwin H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la Verdad, 1976, p. 11-36; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, Cap. XX, p. 312-321; John L. Dagg, Manual de Teologia, São Paulo: Fiel, 1989, p. 126-130.
[12]João Calvino, O livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A depravação (…) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur Jr., Sociedade sem pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).
[13]João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.7), p. 266-267.
Edificante palavra.
Profundidade e simplicidade.
Característica do nobre Pastor e professor, Hermisten Maia.
Ore por mim. Abraço.